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A Regulamentação do Acesso à Terra: a Lei Imperial nº 601 de

No documento Posturas do Recife Imperial (páginas 141-146)

AS POSTURAS MUNICIPAIS DO RECIFE INTEGRANDO A LEGISLAÇÃO URBANA IMPERIAL

3.1 A LEGISLAÇÃO IMPERIAL REGULAMENTANDO A TERRA URBANA Os instrumentos legais estabelecidos, ao longo do século XIX, para regulamentar as

3.1.2 A Regulamentação do Acesso à Terra: a Lei Imperial nº 601 de

A questão da titularidade da terra no Brasil, após a Independência e com a suspensão do processo de doação de terras por sesmarias, em 1822276, só vem a ser regulamentada com a Lei

n.º 601 de 18.09.1850277 - também denominada Lei das Terras - que passa a se constituir o

estatuto fundamental do regime de terras do país, já, então, definido a partir do instituto da propriedade privada. A Carta Constitucional de 1824 (art. 179, inciso 22)278 já trazia expressa a

garantia, em toda a sua plenitude, do direito de propriedade privada ao sesmeiro legalizado, salvo a faculdade de expropriação do poder público, se este assim o exigisse. Distingue, desde então, o domínio público do domínio particular e mantém os direitos patrimoniais de cada um.

“É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público, legalmente verificado, exigir o uso e emprego da propriedade do cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os casos com que terá lugar esta única exceção e dará as regras para se determinar a indenização”.

A Lei de Terras de 1850 não se volta unicamente para as questões das sesmarias, ao contrário, a sua face mais importante é aquela que regulamenta as futuras apropriações de terras. Proíbe as aquisições de terras devolutas279 por qualquer outro título que não seja o de

274 Já, no século XX, esse instituto legal torna-se alvo de questionamento, sobre sua razão de existir,

especialmente porque findaram as condições que fundamentaram a sua instituição, especialmente no que se refere às condições de defesa da costa brasileira.

275 Atos específicos às “terras de marinha” são sucessivamente criados para disciplinar a matéria, até que o

Decreto-Lei n.º 9760, de 1946 revoga toda a legislação anterior, mantendo nas novas disposições um dos fatores mais polêmicos que consiste na linha de demarcação dessas terras estipulada em 1831.

276 Pouco antes de proclamada a independência do Brasil, a Resolução de 17 de Julho de 1822 pôs termo final ao

regime das “sesmarias”. Cerca de vinte anos depois, por Avisos de 6 de Junho e de 8 de Julho de 1842, o Governo imperial solicitou à Seção dos Negócios do Império do Conselho de Estado, que formulasse uma proposta de reforma legislativa sobre sesmarias e colonização. Tal proposta foi apresentada à Sessão, por Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Cesário de Miranda Ribeiro em 8.08.1842. . No ano seguinte, Rodrigues Torres submeteu ao conhecimento do Legislativo um Projeto (n.º 94) sobre a matéria, que veio a germinar a Lei de Terras promulgada em 1850 (R.CIRNE, 1988 p. 63)

277 Um estudo aprofundado sobre a questão das terras, incluindo o sistema sesmarial, no Brasil foi realizado por

R.C. LIMA (1988) e C.PORTO (1980).

278 Senado Federal. Constituições do Brasil. Brasília, 1996, p. 34.

279 Denomina-se terras devolutas às terras devolvidas, face à anulação do termo de doação das terras por sesmarias,

compra (art. 1) e autoriza o governo a vender as terras devolutas em hasta pública, ou fora dela, quando e como julgasse mais conveniente, fazendo previamente medir, dividir, demarcar e descrever a porção das mesmas terras, que tivesse de ser exposta à venda, guardadas as regras dispostas na própria lei (art. 14).

Como M.MARX (1991 p.119) ressalta, ao estabelecer, como única forma possível de

adquirir ou transmitir a outrem, que não os herdeiros, a compra e venda de terras, a Lei n.º 601 de 1850 calca-se na afirmação do liberalismo, na experiência da Revolução Francesa, assim como no importante trato da questão que se dava com a conquista das imensas terras da América do Norte. Por outro lado, como ele próprio afirma, considerando o impacto dessa Lei no campo, é importante notar que seu efeito não foi a distribuição mais ampla das terras, quiçá

almejada pelo poder central, mas, ao contrário, redundou num esforço das características de alta

concentração delas nas mãos de muito poucos, geralmente os mesmos.

Um importante aspecto desta Lei, ainda a ser ressaltado, refere-se à sua repercussão nas cidades, provocando uma mudança nas relações, até então estabelecidas, bem como definindo aquelas a se estabelecerem entre os confinantes, ou entre os proprietários e os núcleos de povoação, mesmo vindouros. A Lei decreta que as terras alienadas ficariam sujeitas: (1) a ceder terreno para estradas públicas; (2) a dar servidão gratuita aos vizinhos, quando lhes fosse indispensável para sair numa estrada pública; (3) a consentir a tirada de águas desaproveitadas e a passagem delas, precedendo a indenização das benfeitorias e do terreno ocupado (art. 16).

Nessa mesma direção, a Lei reserva as terras que, pelo governo, fossem julgadas necessárias: (1) para a colonização dos indígenas; (2) para a fundação de povoações, abertura de estradas e quaisquer outras servidões, e (3) assentos de estabelecimentos públicos; para a construção naval (art. 12). Os instrumentos normativos que regulamentam a Lei n.º 601, de 1850, especificam as condições de sua aplicação280.

Essas medidas provocam impacto nas Câmaras Municipais e naqueles cujas terras lhes haviam sido concedidas, o que leva M.Marx (1991, p. 119) a comentar:

280 O Decreto n.º 1318 de 30.01.1854, manda executar a Lei lhe dá regulamento; o Regulamento de 8.05.1854

dispõe provisoriamente sobre as medições e demarcações das terras devolutas; a Portaria n.º 385 de 19.12.1855, manda observar, provisoriamente, as instruções práticas organizadas pela Repartição Geral das Terras, para execução dos artigos do regulamento de 8.05.1854; e o Decreto n.º 6.129 de 23.02.1876, organiza a Inspetoria Geral das Terras e Colonização. Posteriormente o Decreto 3.787 de 19.01.1867 dá regulamento às colônias do Estado, sendo provisoriamente suspenso pelo Decreto de 20.12.1879. (LIMA, R.C., 1988 p.71)

“De um lado e de outro – da parte do município, calcado em tão parcas e tênues normas legais, e da parte dos concessionários de datas de chãos citadinos – percebe-se, nessa época, uma atenção nova e muito maior para com a estipulação, e exata estipulação, do que respectivamente lhes pertencia: do rossio em suas partes urbana e rural, assim como das datas novas e daquelas já há muito obtidas, transmitidas e até mesmo edificadas; uma atenção nova para com os limites entre esses dois tipos diferentes de chão, o público e o de domínio privado. Não que não houvesse a consciência da diferença entre ambos antes, porém agora torna-se mais importante e mais urgente estabelecer a sua demarcação. Algo de novo se anuncia ...”

Este algo novo torna-se mais preciso com os diversos instrumentos normativos que regulamentam a Lei de Terras. A própria Lei procura tornar nítida a linha divisória entre terras de domínio do Estado e as de domínio do particular, incorporando ao domínio do Estado todas as terras devolutas (art. 3), ou seja:

x aquelas que não se achassem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem

tivessem sido havidas por sesmarias ou outras concessões do governo geral ou provincial, não incursas em comisso, por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura;

x as que não se achassem dadas por sesmarias ou outras concessões do governo, que, apesar

de incursas em comisso, fossem revalidadas por lei;

x as que não se achassem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal,

fossem legitimadas pela lei; e

x aquelas que não se encontrassem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou

municipal.

Ao mesmo tempo em que proíbe a aquisição de terras por outro título que não seja o de compra e venda, a Lei de Terras, também concede oportunidades, não só aos sesmeiros irregulares, através da revalidação das sesmarias ou de outras concessões que se achassem cultivadas (art. 4º), como também aos posseiros, cuja posse mansa e pacífica seria legitimada, mediante a comprovação de cultivo ou benfeitoria, ou, ainda, moradia habitual (art. 5º).

Passam, então, a compor o quadro fundiário brasileiro, regulamentado pela Lei Imperial n.º 601 de 1850: as terras de sesmeiros regulares, sesmeiros irregulares e posseiros; as terras devolutas (devolvidas) e as terras públicas – de domínio público para uso institucional ou para uso comum - entre as quais se inserem as “terras de marinha”.

Essa fase de transição, na qual se muda a idéia de domínio relativo para a de propriedade absoluta da terra, provoca uma multiplicação dos pedidos de demarcação de propriedades. O

argumento da ocupação “mansa e pacífica” passa a ser utilizado para regularizar as ocupações em terras não inseridas no domínio público, uma vez que a burocracia exigida na tramitação do processo de doação de terras, no período colonial, e o longo período sem qualquer instrumento de regulamentação da titularidade da terra, no início do Império, havia induzido a ocupação de quantidade considerável de terras devolutas, sem nenhuma formalização. No caso do Recife, especificamente, grande parte de seu território passa a ser de domínio do Império, na condição de “Terras de Marinha”. E a disposição de legitimar a posse “mansa e pacífica” dessas terras de maré passa a fundamentar o argumento dominante dos pedidos de aforamento

Diante das dificuldades institucionais enfrentadas, a demarcação das “terras de marinha” vai se processando à medida que os pedidos de aforamento passam a surgir, partindo especialmente daqueles que tinham algum interesse em explorar os mangues, em vez de partir daqueles que o ocuparam de forma “mansa e pacífica”, como se encontrava disposto na Lei de Terras de 1850. Esse processo assume relevância a partir do final do século XIX, com a expansão do Recife por sobre os seus imensos alagados, então povoados de mocambos.

Reduto da população pobre da cidade, os mangues do Recife já vinham sendo ocupados, desde o século XVII, mediante uma luta miúda, sem confrontos, apenas estabelecida contra a água do rio e contra a maré. Os mocambos confundiam-se com a sua densa vegetação e os seus moradores se alimentavam da riqueza que aqueles alagados ofereciam, passando a viver numa estreita dependência deles, num processo que Josué de CASTRO(1960) denominou de o ciclo do

caranguejo. Assim surgiram o Coque, os Coelhos, a Ilha de Joaneiro, e outras favelas que, hoje,

ainda guardam a história remota da ocupação das áreas pobres do Recife.

Num período de dezessete anos, transcorrido entre 1871 - quando é promulgada a Lei do Vente Livre - e 1888 – quando é abolida a escravatura - toda a massa operária escravizada se transforma, juridicamente, em indivíduos livres. E, nas palavras de Daniel Uchoa CAVALCANTI

(1965 p.30), livres do capitão do mato, do cipó-pau, do couro-crú. Quase de repente, os mangues do Recife ficam ao dispor da população negra e mestiça que, mesmo livre perante a lei, continua escrava do poder econômico, senhorial. A grande seca do Nordeste em 1877-79, também, contribui para o afluxo migratório para o Recife, cujos mangues passaram a abrigar aqueles que, sem posses, buscavam um espaço de moradia e fonte de alimento.

Estimativas da população do Recife, no século XIX, apresentam um crescimento significativo da população da cidade, que passa de 34.000 habitantes, no ano de 1822, início do período imperial, para 150.000 habitantes, em 1893, logo após o término do Império. O grande incremento populacional, contudo, se dá nos últimos vinte anos desse intervalo considerado, quando a população recifense acresce 50% de seu volume281.

É nesse terceiro quartel do século XIX, que os mangues do Recife ganham visibilidade. Inicialmente, por confrontar-se com o interesse de uma população mais abastada, que passara a identificar o potencial dos alagados: como via fluvial para indústrias ou comércios instalados às suas margens; como reservas de madeira exploráveis para aproveitamento em fornalhas e curtumes; ou como manancial de peixes a serem cultivados em viveiros. Posteriormente, tal visibilidade se amplia com a emergência do interesse pelos alagados para empreendimentos imobiliários, quando torna-se sistemático aterrar mangues e loteá-los ou, mesmo, loteá-los sem aterrar; construir mocambos e alugá-los ou comprá-los para convertê-los em fonte de rendimentos - através da cobrança do aluguel do chão - ou em prova de benfeitoria282.

Em ambos os casos, para os interessados em explorar economicamente os mangues, seria possível reivindicar pacificamente no judiciário o pleno direito de uso da terra, como o fizeram, valendo-se de uma posição social e financeira mais favorável que a dos habitantes dos alagados e por terem acesso à informação e aos trâmites burocráticos. E, sobre esta questão, J.A.FALCÃONETO& M.A.SOUZA(1985, p. 76) comentam:

“Assim, o direito exercido pela população pobre e baseado na posse real das áreas alagadas começou a ser ameaçado por um direito de outra natureza, fundamentado nos trâmites burocráticos previstos em lei. Ao direito de usar para morar começa a se contrapor o direito de gozar e dispor.”

A disputa por essas terras chega a provocar choques entre os pretensos posseiros, bem como entre esses e os moradores dos mocambos. Mas, também, estabelece pactos entre novos posseiros e os habitantes dos alagados, que passam a pagar a eles o “aluguel do chão”. Desse modo, vai sendo formalizada a posse das terras de mangue, sobre as quais o Recife moderno haveria de crescer.

281 Estimativa de COWELL, B. Cityward migration in the nineteenth century: case of Recife, Brazil. Atlanta:

Emory University, p. 47. Citado por S.ZANCHETI (1989 p. 136) 282 Para um detalhamento deste processo ver D.U.CAVALCANTI (1965)

3.2 A LEGISLAÇÃO PROVINCIAL DE PERNAMBUCO ESTRUTURANDO O

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