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CAPÍTULO III – IDENTIDADE E REABILITAÇÃO

3.3 A Importância do Cotidiano para o Conhecimento da Realidade

O cotidiano proporciona conhecimento do sujeito, do coletivo, da realidade e de seus círculos históricos, aspectos indispensáveis para a compreensão desses sujeitos, na qual mergulhamos por meio da nossa prática e retornamos à base teórica com o novo olhar. Essa ligação entre a prática e o cotidiano é fundamental para entendermos a identidade.

A princípio, pensar no cotidiano parece ato relacionado à simplicidade do dia a dia de cada um, porém, é no cotidiano que se localizam muitos acontecimentos que nos levam a obter consciência política e possibilitam uma leitura crítica da realidade, por meio do desvendamento das forças sociais existentes.

Para Heller (2008, p. 31), “A vida cotidiana é a vida de todo homem (...)” e ninguém pode desligar-se desse cotidiano; nesse sistema dinâmico de acontecimentos é que entendemos a história de vida de cada um, onde o homem pode expressar sua individualidade através de suas escolhas e experiências. “A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. (...).”

O homem é um ser único, e cada um de nós tem as próprias particularidades; ao mesmo tempo, é um

(...) ser genérico, já que é produto e expressão de suas relações sociais, (...) mas o representante do humano-genérico não é jamais um homem sozinho, mas sempre a integração (tribo, demos, estamento, classe, nação, humanidade) – bem como, frequentemente várias integrações – cuja parte consciente é o homem e na qual se forma sua “consciência de nós”. (HELLER, 2008, p. 36).

Essa integração significa que estamos sempre em relação uns com os outros, num processo de construção e reconstrução desse ser social e da realidade.

As possibilidades da vida cotidiana vão criando condições para as transformações na sociedade. Segundo Martinelli (2009, p. 4) ), “As relações estrutura, conjuntura, cotidiano instituem-se como formas de acesso às múltiplas determinações da realidade, pela mediação dos contextos, acontecimentos, atores, forças sociais em presença, (...)”. Nesse sentido, partindo do princípio dialético de que nada é natural, e sim histórico, entendemos que nada se constrói no coletivo, sem antes ser pensando no campo subjetivo. Os trabalhadores, ao se apropriarem de suas histórias, desmistificando fatos que levaram à alienação de sua real situação do adoecimento no trabalho, seguem um processo de tomada de consciência de classe.

Recuperar o sujeito com sua plenitude histórica, evita o ocultamento desses sujeitos e a perda de suas identidades, além de situações que levem a perpetuar relações de dependência e subalternidade. São “(...) pessoas submetidas à perda cultural e à invalidação de seus conhecimentos e valores”. (CHAUÍ, 1993, p. 38).

Romper com esses ciclos de dependência, requer ver a história como um processo revelador. A história constrói-se a partir dos sujeitos, assim, as lutas pessoais se transformam em lutas sociais, em um movimento de busca de novas formas de vida.

Retomamos a categoria trabalho, que tem sido apontada como a questão social contemporânea. Por meio dele, o homem transforma-se e transforma a natureza, onde o sujeito se reconhece enquanto cidadão. De acordo com Antunes (2009), uma vida desprovida de sentido no trabalho acaba por não encontrar um sentido fora dele, assim, a reflexão sobre possibilidades de transformação do cotidiano deve considerar práticas profissionais que visem a um novo metabolismo social. Olhar o cotidiano como espaço de transformação, para construir nova sociabilidade, com novas identidades, que tenham a liberdade como valor ético central.

Continuando, Antunes (2009) afirma que o trabalho é parte integrante da própria sociabilidade humana, e através dele determinamos nosso modo de vida, nossas relações

sociais e a formação da própria consciência. Ao passar pelo processo de reabilitação, deve ocorrer a modificação do modo de vida, a fim de atender a uma nova condição do trabalho e de vida.

A interrupção do trabalho, ao deixar de exercer a função habitual do dia a dia para passar pelo processo de reabilitação, aponta para uma mudança que afeta as relações sociais construídas no cotidiano dos trabalhadores. É preciso aceitar uma nova condição; o processo de aceitação é necessário, para manter-se enquanto trabalhador. A Merendeira – 7 aponta a repercussão no cotidiano doméstico

(...) fiquei assim. Não conseguia mais andar, pernas pesadas. Sabe! Chegava em casa. Deitada no sofá, não conseguia levantar, se eu estava levantada, não conseguia deitar. Dificuldade para abaixar, de pegar as coisas. Perdi muito movimento de pegar coisas pesadas, não tinha aquela força de antes. (Merendeira – 7, depoimento colhido em outubro de 2012).

Para entender o adoecimento dos trabalhadores do serviço público, é preciso compreender a dimensão ético-afetiva do adoecer (SAWAIA, 2006). Nas histórias profissionais, identificamos a relação do trabalho com o adoecimento e a influência do processo saúde-doença. O conceito que utilizamos para o estudo, vai além da definição clássica da OMS17, como o estado de completo bem-estar físico, mental e social. Concorda-se, no estudo, com a referência conceitual de Sawaia (2006, p. 157) que define saúde como “uma questão eminentemente sócio-histórica e, portanto, ética, pois é um processo da ordem da convivência social e da vivência pessoal”.

O relato da Monitora –14 sinaliza que se culpava muito no período do adoecimento.

Aprendi a ser objetiva, mas aconteceu isso, e por mais que tenha história de vida, por mais que tenha coisas, fatos pessoais. Eu aprendi a ver que não era só eu. Antes, eu me punia muito (...) (Monitora – 14, depoimento colhido em outubro de 2012). Segundo Sawaia (2006,

p. 157), “Em quase todas as doenças encontram-se relações curiosas entre o que se passa na cabeça das pessoas e a evolução de sua doença física. (...)”.

17 O conceito foi escrito em 1946, durante Conferência Internacional da Saúde e encontra-se nos princípios da Constituição da Organização Mundial de Saúde. A Constituição foi publicada pela United Nations World Heath Organization (1948). Official Reccord of the World Hearth Organization, n. 2, Procceding and Final Acts of the International Health Conference held in New York from 19 june to 22 july 1946. Disponível em: <www.who.int/governance/eb/who_constitution_en.pdf>. Tradução está na biblioteca digital da Universidade de São Paulo (USP). Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS- Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude- omswho.html>. Acesso em: 26 maio 2013.

Várias frases ouvidas durante a pesquisa revelam o sofrimento ético-politico. “Consciência, atividade e afetividade se encadeiam e se determinam, reciprocamente”. (SAWAIA, 2006, p.167).

O ambiente de trabalho também é um local que pode gerar ou não possibilidades de luta dos trabalhadores por melhores condições no processo de trabalho. “A falta de sentido da tarefa individual e o desconhecimento do sentido da tarefa coletiva só tomam a sua verdadeira dimensão psicológica na divisão e na separação dos homens”. (DEJOURS, 1992, p. 40). O fato de resistir ao individualismo pode ser uma forma de ser solidário aos outros trabalhadores que enfrentam as mesmas circunstâncias. O pensar coletivo possibilita torna-se solitário com os colegas de trabalho. Segundo Sawaia (2006, p. 167), “Trabalhar no local definidor de identidade social e individual, envolvendo o indivíduo e seus pares, (...) pode ser um ato libertador da ditadura imposta sobre nossas necessidades, emoções e ações (...)”.

A direção da vida profissional supõe, para cada trabalhador, uma trajetória própria. Embora mantendo a estrutura do cotidiano profissional, cada qual deverá apropriar-se, a seu modo, da realidade e impor-lhe a marca de sua personalidade.

O adoecimento coloca-se como consequência do afastamento do trabalhador do sentindo de seu trabalho, diluindo assim sua identidade profissional, pois o trabalho é uma forma de suspensão da vida cotidiana, e deve ser visto além de mero meio de subsistência. Por meio do trabalho transformamos e ocupamos um lugar na sociedade. Assim, a passagem do singular para o genérico, como a inserção enquanto classe trabalhadora, mas a suspensão enquanto superação, está relacionada à consciência de classe, em uma perspectiva revolucionária de elevação da consciência do ser homem total.

Para Heller (2008, p. 61), “(...) A condução da vida supõe, para cada um, uma vida própria, embora mantendo-se a estrutura da cotidianidade, cada qual deverá apropriar-se a seu modo da realidade e impor a ela a marca de sua personalidade.(...)”. Assim, o trabalho livre e criador pode resultar em uma forma de suspensão do cotidiano. Heller (2008, p. 61) cita três formas de suspensão da vida cotidiana: a arte, a ciência e a moral; conforme a suspensão se torna frequente, o homem consegue sair da vida cotidiana e retorna com a reapropriação do ser genérico, retomando o cotidiano de maneira mais rica e profunda da essência humana.

(...) a condução da vida não pode se converter em possibilidade social universal a não ser quando for abolida e superada a alienação. Mas não é impossível empenhar-se na condução da vida mesmo enquanto as condições gerais econômico-sociais ainda favorecem a alienação. (HELLER, 2008, p. 61).

Nessa perspectiva, deve-se construir uma nova cultura política de liberdade e valores humanos que levem a avançar além da efetivação de direitos sociais e a investir em um novo comportamento político, desfavorecendo as relações alienantes do mundo do trabalho capitalista.

3.4 Os Movimentos das Trajetórias Profissionais à Luz das Identidades Profissionais