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CAPÍTULO III – IDENTIDADE E REABILITAÇÃO

3.1 O Significado do Trabalho na Vida Cotidiana e as Marcas da Identidade

Eu empreguei vinte anos da minha vida de escola, como educadora dentro de sábado, domingo, trabalhando, eram vários programas que eu tinha e a vida afetiva ficava de lado, às vezes a vida familiar, eu ia viajar, mas preocupada que eu tinha que voltar logo, porque eu não tinha terminado tal coisa, por uma cobrança muito infeliz, porque eu acho que você faz por sua conta o seu trabalho, a responsabilidade é outra. (Professora – 5, depoimento colhido em outubro de 2012)

Para entender a reabilitação, é necessário compreender os caminhos que levam a ela, ou seja, o processo de adoecimento do trabalhador intrinsicamente ligado à organização do trabalho. Sobre a reabilitação, refere-se, a Monitora -14, como (...) um lugar que tira daqui e

coloca lá e esquece e fica lá e se esquece da pessoa. A pessoa não sabe como é que está o posicionamento e o emocional.

Seligmann-Silva (2011, p. 162) define a organização do trabalho “(...) como a forma de conceber os conteúdos das atividades de trabalho, bem como a sua divisão entre os trabalhadores”. Observa-se que a organização do trabalho sofre modificações, com a chegada do trabalhador que passou pela reabilitação, como verifica-se na divisão das tarefas. Quando

eu fui reabilitada, fiquei um mês arquivando documentos que estavam acumulados, aquele serviço que ninguém queria fazer, passaram para mim. (Professora – 5, depoimento colhido em outubro de 2012). O relato evidencia como foram as atividades desenvolvidas nos primeiros dias de trabalho após o processo de reabilitação. Durante a divisão das tarefas, a professora assumiu atividades que eram desprezadas pelos demais trabalhadores.

Há outros elementos identificados na organização do trabalho que também refletem as modificações do mundo do trabalho. Assim, alteram-se as formas de trabalho e apresentam-se novas tecnologias e a substituição do artesanal pelo industrializado; as transformações, no decorrer dos últimos anos, modificam os processos de organização do trabalho. “(...) Em geral, pode-se afirmar que o número de tarefas envolvendo habilidades padrões genéricas relacionadas a computadores está crescendo rapidamente.” (HUWS, 2009, p. 47).

Um desafio apresentado aos sujeitos que passam a desenvolver suas atividades na área administrativa é o uso do computador. Nas funções anteriores, nem sempre era necessário utilizá-lo com frequência, como se verifica nas pesquisadas: monitor de CEC, professor de Ensino Fundamental e merendeira. As novas funções exercidas pelos sujeitos pesquisados, em sua maioria, envolvem atividades ligadas a serviços administrativos e burocráticos, como: atendente, escriturária, assistente pedagógica e auxiliar de coordenadora pedagógica. Em todas é imprescindível o uso da tecnologia para a execução das atividades. Assim, durante o período de reabilitação profissional, também pode ser necessário buscar novas habilidades e conhecimentos, que fazem parte do processo de reconstrução da identidade profissional.

Apesar de ser fácil o acesso a cursos de capacitação em informática16 sem custos para os servidores públicos municipais, por causa de parcerias com instituições de ensino possibilitadas durante o processo de reabilitação profissional, não deixa de ser um novo desafio ao trabalhador alcançar a revolução tecnológica contidas nas dinâmicas do trabalho contemporâneo no serviço público reflexo da restruturação empresarial imposta pelo sistema capitalista.

Mas é diferente a adaptação e o ritmo de trabalho de um trabalhador que não está habituado com as novas tecnologias dos demais trabalhadores treinados no uso de recursos tecnológicos. “As habilidades requeridas para operar um computador e seus numerosos acessórios de comunicação não devem ser, obviamente, confundidas com a totalidade dos requisitos de um dado emprego.” (HUWS, 2009, p. 48).

As mudanças na rotina de trabalho advindas das atividades administrativas também envolvem outros desafios, como ter boa comunicação para atendimento ao público, adequadas leitura e escrita para anotação de recados e elaboração de memorandos e ofícios, enfim, a nova função envolve também aprender novas habilidades que proporcionem bom desempenho desse trabalhador que venha a suprir as necessidades da vaga oferecida pela gestão pública.

Retoma-se a reflexão de que o processo de adoecimento do trabalhador está intrinsecamente relacionado às diversas desregulamentações das relações de trabalho no processo de organização do trabalho na sociedade capitalista. Faz-se necessário a conexão “(...) diante das mudanças que ocorreram na produção social capitalista, evidenciam-se os altos índices de desemprego, de precarização do trabalho e, consequentemente, o recuo dos

16 O programa de reabilitação profissional da Prefeitura Municipal de Piracicaba, no ano de 2012 através de uma parceria entre a ENFERMAP, colégio técnico especializado em escolas técnicas e profissionalizantes, localizado no centro de Piracicaba e a SEMTRE - Secretaria Municipal de Trabalho e Renda, disponibilizou cursos de capacitação profissional a servidores públicos que estavam participando do processo de reabilitação profissional.

sindicatos nas lutas sociais do trabalho” (LARA; CANOAS, 2010, p.139) para compreensão desse processo.

Considera-se que no Brasil, a precarização do trabalho se constitui como um novo fenômeno, cujas principais características, modalidades e dimensões sugerem um processo de precarização social inédito no pais nas últimas duas décadas, revelado pelas mudanças nas formas de organização/gestão do trabalho, na legislação trabalhista e social, no papel do estado e suas políticas sociais, no novo comportamento dos sindicatos e nas novas formas de atuação de instituições públicas e de associações civis. (DRUCK, 2009, p. 2).

Tanto o desemprego como a precarização do trabalho causam a insegurança social do trabalhador, que fica desprotegido diante da falta de garantias mínimas dadas pelas proteções sociais. Para Castel (2005, p. 75), “Ser protegido significaria então ser justamente provido do

minimum de recursos para sobreviver numa sociedade que limitaria suas ambições de garantir um serviço mínimo contra as formas extremas de privação”.

Na precarização, o que se verifica é um “(...) fenômeno central que se generaliza por toda parte (...)” (DRUCK, 2009, p. 3) e assim atinge todos os trabalhadores.

Em um contexto societário de transformações no trabalho de tal monta, marcado pela retração e, mesmo, pela erosão do trabalho contratado e regulamentado, bem como dos direitos sociais e trabalhistas, ampliam-se também as relações entre trabalho e adoecimento, repercutindo na saúde física e mental dos trabalhadores, nas formas de objetivação e subjetivação do trabalho. (RAICHELIS, 2011, p. 421). Quando o trabalhador fica sem emprego, perde todos os direitos inerentes ao cargo que ocupava; perde também a sua proteção social para a sociedade e não é mais considerado como trabalhador, sendo marginalizado no seu dia a dia, até mesmo nas relações sociais com sua família, por não conseguir garantir a subsistência. É primordial resistir e preservar seu emprego, para evitar a marginalização. No serviço público, o trabalhador sofre também a pressão de ter que se manter em um trabalho. Mesmo que esteja causando sofrimento e dor, ficar desempregado ainda se torna pior opção. Concordando com essa ideia, Silva (2012, p. 48) considera em seu estudo que

(...) por conta de vários fatores estruturais da forma de organização do trabalho, do avanço tecnólogico e da própria lógica da sociedade capitalista o serviço público passa a ser um dos poucos setores com favoráveis condições de trabalho, principalmente a estabilidade no emprego.

A estabilidade que caracteriza o emprego público, em momentos de crise financeira e desemprego, torna-o muito atrativo. E como desperdiçar o cargo que conquistou em concurso público muito concorrido, com enormes filas de espera por outros trabalhadores? Quantos trabalhadores desempregados, excluídos socialmente, querem um serviço no qual tem garantida a subsistência?

Na realidade, ao sublinhar as duas categorias de análises, precarização do trabalho e desemprego, não se está falando de assuntos diversos ou contraditórios e, tampouco, estanques. Está se falando de um sistema que transformou homens e mulheres em trabalhadores assalariados e os meios de subsistência e de trabalho em capital. Criou-se um ambiente ideológico favorável ao desenvolvimento de uma forma de subjetividade alicerçada nos valores e ideais gerados pela sociedade do capital. Transformaram-se as relações de trabalho para garantir o processo de valorização e acumulação capitalista, incrementou-se a produção e diminui o tempo socialmente necessário para produzir determinado produto. Diminui também a necessidade de grande parte dos trabalhadores, transformando-os em desempregados. (LOURENÇO, 2013, p.134).

A Merendeira – 14, mesmo descontente com seu trabalho atual, não conta com a alternativa de aposentar-se, devido à preocupação com manter a subsistência,

Porque diminui o salário. E se diminui o salário, aí vai, e daí eu fico sem salário, porque 90% do funcionalismo tem empréstimo. (...) Eu tenho, se não tivesse, eu já pediria logo a aposentadoria, eu falaria... Eu vou me aposentar, vou receber o meu salário, eu não sei quanto vai ser, mas eu tenho dívida /empréstimo para pagar, então não ia dar para eu viver, então descontando tudo isso aí, tem que se virar, não tem, daí eu iria ganhar muito mais e não teria esses empréstimos para descontar. Isso dá um desfalque, que misericórdia. Então, tem que ir, mas se não fosse isso, eu parava sim, parava sim, só que no momento não dá, não dá por causa disso. (Merendeira – 14, depoimento colhido em outubro de 2012).

O trabalhador, quando se sujeita a um trabalho precário, também está exposto a uma série de riscos, dependendo das particularidades do cargo e do ambiente de trabalho. Riscos de sofrer um acidente de trabalho, do adoecimento por processos de trabalho desgastantes, falta de equipamentos de segurança e proteção, da terceirização com salários insuficientes, falta de treinamento, entre outros. A Merendeira -16 relata que trabalha mesmo com dor e que as pessoas não acreditam na sua doença.

(...) imagina, com dor, tenho cara de que estou com dor, eu não tenho cara de que estou com dor, mas eu estou com dor, então, só eu sei da minha dor, isso ninguém quer saber, não importa, você está aqui, você tem que fazer, vai ter que limpar o chão, vai ter que lavar o prato, vai, e eu não tive problema, se eu estiver aqui, ou em qualquer lugar. (Merendeira – 16, depoimento colhido em outubro de 2012).

Entre os riscos com consequências mais drásticas, aponta-se o de perder a capacidade laboral, ou seja, tornar-se incapacitado para algumas atividades.

Entretanto, é preciso enfatizar a prevenção para garantir a saúde do trabalhador, “(...) A sujeição de quem trabalha, determinadas por questão de sobrevivência, aos baixos salários, às péssimas condições de trabalho e à exploração já significa, a vivência do já representam em si o estatuto da precariedade do trabalho.(...)” (LOURENÇO, 2013, p. 134). Faz-se necessária a reflexão sobre os meios de preservação da saúde do trabalhador que evitariam o adoecimento e as reabilitações profissionais precoces. Segundo as autoras Lourenço e Bertani (2010, p. 187):

A questão da reabilitação profissional esbarra em um paradoxo: reabilitar individualidades, sem perder o contexto coletivo, ou seja, é necessário prever ações de assistência à saúde aos lesionados, mas também registrar essas ocorrências e intervir de modo que novos agravos sejam evitados.

Nesse sentido, é importante pensar a prevenção; pesquisar os fatores que levaram à reabilitação profissional se faz primordial, para entender como se deu o adoecimento e a perda da capacidade laboral. Com uma análise minuciosa do processo de trabalho e de um olhar histórico sobre a trajetória profissional dos trabalhadores adoecidos, para entender os diversos fatores que influenciaram no adoecimento e os levaram à reabilitação profissional.

A reabilitação profissional também pode ser considerada um fator positivo para o trabalhador, enquanto possibilidade de prever meios de proteger sua integridade física e mental. “Caberia ao Estado compensar as ‘falhas do mercado’ e fornecer redes de proteção social aos pobres vulneráveis para lidar com o risco.” (IAMAMOTO, 2010, p.17). À medida que a reabilitação profissional possibilita a inserção do trabalhador no mercado de trabalho, amenizam-se os riscos das situações de vulnerabilidade social e miserabilidade.

Chama-se a atenção para a reabilitação profissional no serviço público, que garante ao trabalhador o retorno ao trabalho, ou seja, o salário, a subsistência, mas o que se observa nas narrativas dos sujeitos é que sentem falta de serem considerados úteis, valorizados, reconhecidos, palavras narradas para indicar o significado do trabalho em suas vidas, que vai além da subsistência. Confirma-se a ideia de Antunes (2010) que cita o trabalho como força vital e centro da vida dos trabalhadores.

De tal modo, a organização moderna do trabalho caracteriza-se por relações que enfatizam a produtividade com processos de trabalho que aceitam a racionalização das tarefas, jornadas de trabalho ampliadas, tarefas intensificadas e repetitivas.

As alterações do processo produtivo repercutem na organização de trabalho, complementando. Rosenfield (2009, p. 173) alerta que “(...) Um contexto de precarização e flexibilização do emprego associado a mudanças na organização do trabalho nas sociedades capitalistas impõe um novo padrão de implicação no emprego por parte dos funcionários”.. Chama-se a atenção que o trabalho tornou-se mais variado e complexo exigindo maior investimento subjetivo e de mobilização da inteligência. (ROSENFIELD, 2009).

Pochmann (2002, p. 106) traz mais elementos das mudanças na organização de trabalho,

(...) com o processo de mecanização e generalização do trabalho assalariado de maneira contínua e concentrada sobretudo nas grandes empresas, a partir da difusão da produção em massa de bens padronizados e de demanda estável, a regularização do tempo de trabalho se transformou numa exigência da lógica patronal de inovar a administração do trabalho.

Pochmann (2002) revela que essa assincronia na evolução recente do tempo de trabalho são formas de disciplinar e controlar o trabalhador. A remuneração por metas, trabalho no domicílio, a internet, entre outros, são meios de manter o trabalhador plugado, ampliando o tempo de trabalho, pois mesmo fora do local continua preocupado em atingir as metas estabelecidas pela empresa.

As novas configurações do trabalho levam à intensificação dos , com a ampliação do tempo e, consequentemente, resultam na fadiga mental e física do trabalhador. A autora Seligmann-Silva (2011, p. 142) explica que “Várias mediações podem ser identificadas nos processos coletivos e individuais que conduzem ao desgaste mental vinculado ao trabalho (...)” e complementa: “(...) o desgaste pode ser entendido a partir de experiências que se constroem diacronicamente, ao longo das experiências de vida do indivíduo”.

Ao introduzir na discussão as experiências e peculiares da organização do serviço público, relatada pelas vozes do sujeito da pesquisa, visualizam-se esses processos de trabalho.

Por mais alienado que seja o trabalho, por mais antipáticas que sejam estas ou aquelas pessoas, sempre a carga afetiva despejada entre as escrivaninhas ou as bancadas é grande: sedução ou intriga, afeto ou picardia, fofoca ou solidariedade,

carinho ou demagogia, sorriso ou polidez. Não se trata de um mero acidente cultural, estamos falando nem mais nem menos da sobrevivência. (CODO et al., 1993, p. 190).