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CAPÍTULO III – IDENTIDADE E REABILITAÇÃO

3.2 A Identificação com o Trabalho que Exercia Antes do Processo de Reabilitação

As nove mulheres entrevistadas relatam que gostavam muito das funções exercidas antes do adoecimento. Amava. (...) é que o meu trabalho era com crianças, então até hoje

sempre gostei. (...) (Monitora -14, depoimento colhido em outubro de 2012). E que, ao interromper essa trajetória profissional, ocorreram várias mudanças nas relações sociais e no modo de vida: (...) mas eu me adaptei bem, assim, que eu não posso é carregar peso, carregar

criança (...) (Merendeira – 7, depoimento colhido em outubro de 2012). O cotidiano doméstico e as relações familiares também refletem essas mudanças. Chego mais cansada em casa (...) (Merendeira – 7). Relatam, também, que antes tinham um retorno do trabalho exercido com a antiga função, ou seja, sentiam-se reconhecidas em suas funções, como se confirmam nas histórias profissionais.

Destacam-se algumas passagens sobre essa identificação com a antiga função.

Gostava muito dela, com a relação das crianças, principalmente do retorno, porque com crianças você trabalha e tem o retorno, você não tem o reconhecimento como salário, mas tem o reconhecimento dos alunos e seus familiares, da comunidade, isso faz falta. Mas, eu hoje vejo que não foi possível continuar. Mas eu gostava muito mesmo. (Merendeira – 7, depoimento colhido em outubro de 2012).

A Monitora – 19 também sente muita falta de trabalhar com as crianças, e relata que sentiu muito a mudança de função.

Sentia. Porque era uma coisa que eu me via ali dentro, eu me via dentro da vida de cada criança. Eu crescia com aquelas crianças. Eu sentia que minha força vinha daquelas crianças, minha força para trabalhar, para crescer.

Foi por causa dessas crianças que eu fui estudar, fui me atualizar, foi por causa dessas crianças. Foi na época que vivi com elas, foi muito bom. (Monitora – 19, depoimento colhido em novembro de 2012).

Mudou. Mudou, porque a parte doméstica eu tenho muito pouco coisa que eu posso fazer em casa, tem coisas que não dá para fazer, minha casa é enorme, agora está mais enorme ainda. Tem muito pouca coisa que eu posso fazer, às vezes minha filha vem ajudar.

Na parte profissional, eu achei que sou uma pessoa fácil de fazer amizade, cultivo amizade, então, aqui onde estou e onde fiquei, nossa, conheci muitas pessoas boas, muitas pessoas que me deram muita força. Então, nessa parte, eu também fiz muita amizade, muitas experiências. Eu pude ajudar muitas pessoas nesse lugar que eu fiquei, então, foi bom nessa parte. (Monitora – 14, depoimento colhido em outubro de 2012).

Continua a Monitora – 20:

Identificação. Para mim era tudo. Porque, a partir do momento em que eu entrei para trabalhar com os alunos, com as crianças, eu entrei para trabalhar como monitora de educação infantil, (...). No meu trabalho, eu queria ser sempre a melhor. (...) Como gostava da função, sempre vou ser a melhor do mundo.. Vou ser lembrada sempre. (Monitora – 20, depoimento colhido em outubro de 2012). Também identificam-se, nos relatos, os aspectos positivos com a mudança:

Na verdade, a reabilitação para mim trouxe muitas coisas boas, (...) Estava tomando remédios para depressão. Então, para mim, o trabalho tinha perdido o sentido, de todos os anos que achei que tinha sido produtiva, eu acabei achando que não tinha mais. Então, a reabilitação veio trazer o lado bom, veio mostrar que eu tenho alguma produção. (Professora – 10, depoimento colhido em outubro de 2012). Mudou porque eu voltei a viver como eu vivia antes. (...), em casa estou muito mais calma, estou mais tranquila. Na época em que eu estava mal, antes da readaptação, eu era um poço de estresse, coisa que queria bater... Hoje eu não tenho mais esse hábito, já melhorei demais. (Monitora – 20,depoimento colhido em outubro de 2012).

Identificam-se possibilidades de recomeço, de novas perspectivas profissionais e de superação do processo de adoecimento.

Mudou só hoje, eu estou aqui, gosto daqui, tenho amizade e tudo, é de mim eu me relaciono bem com as pessoas. Eu não sou uma pessoa de difícil convivência. Tem gente que é, tem gente que não consegue conviver com ninguém, eu não sei o que se passa, mas tudo bem. Eu tenho uma amizade muito boa aqui, é só que cada um na sua função. Quer dizer, tem uma trabalhando lá, eu não posso chegar lá e ficar, não posso porque a outra está trabalhando, agora, se eu trabalho aqui com três, (...), eu não reclamo , eu não reclamo. (Merendeira – 16, depoimento colhido em outubro de 2012).

Foi muito bom o período da reabilitação, mas eu tinha medo de voltar para a escola, porque eu via o ambiente de escola muito pesado, o que não deveria ser (...) todas as suas conquistas profissionais, tudo aquilo que o profissional que atua na sua área e tal. Então serviu de motivação para eu voltar. Foi muito difícil, mas (...). E a gente se sente responsável, tanto que depois você tem contato com aluno, a gente tem, sente, às vezes (...) sinto uma parcela de responsabilidade, agora, eu

tenho um grupo de reforço, que não estava previsto quando eu voltei, para mim, é ótimo, faz bem. (Professora – 6, depoimento colhido em novembro de 2012).

Identifica-se que foi um processo de aceitação de uma nova condição laboral. Eu

empreguei vinte anos da minha vida de escola, como educadora, dentro de sábado, domingo trabalhando, eram vários programas que eu tinha e a vida afetiva ficava de lado (...). (Professora – 5, depoimento colhido em outubro de 2012). A Professora – 5 ressalta que se dedicou por muito tempo, anos de dedicação, na função exercida, a trajetória profissional de cada sujeito expressa a dificuldade de deixar a função exercida, foram anos, capacitações, conquistas profissionais, experiências, relações de afetividade e amizade, entre outros elementos, que marcaram a construção de suas identidades profissionais, ao longo de anos de trabalho no serviço público,

Levou bastante tempo, não queria mesmo, não queria me desprender... Fazia tudo com muito gosto, com muita vontade, sabe.Tudo, tudo que falasse, você tem que fazer isso, porque vai ser melhor. Eu ia e fazia. Tudo o que era novidade eu ia lá, fazia, porque queria passar coisas boas para as crianças, enquanto elas estavam comigo, elas eram minhas. Então, a partir do momento em que ela saia dali, a vida dela era outra, mas elas eram minhas, tanto que tinha crianças que não queriam ir embora, queriam ficar comigo. A mãe falava: O que você faz para essas crianças que elas querem ficar aí? Eu não sei. Eu amo essas crianças (...). Porque tinha crianças, que chegavam assim. A mãe falava: Eu não aguento mais, isso porque ficava só a parte da tarde, até no outro dia cedo, o que a criança ia fazer, ia dormir. Então, o pouquinho que ela ficava, eu ficava um dia todo. A criança, quando ficava doente, já preocupava, quando a criança não comia, eu já percebia que alguma coisa acontecera. Vinha uma angústia, porque a criança não sabe lidar com esse sentimento. Ela não tem a noção de lidar com esse sentimento. Então, ela ficava angustiada, não sabia lidar com esse sentimento, brigava com a outra e tal. Então, eu já percebia, porque eu conhecia todas elas. (Monitora – 19, depoimento colhido em novembro de 2012).

A Professora -6 estava dando aulas e estudando à noite, procurando qualificar-se para buscar uma possibilidade de crescimento profissional.

(...) estudava, no ano anterior, foi quando me afastei, sempre procurava estar me capacitando (...) Que eu tenho que me aceitar, então, depende da minha aceitação. Aí, quando percebi que eu realmente estava doente, quis parar com a faculdade, eu queria trancar lá. E aí é traumático. Porque é o momento de você se aceitar doente, aceitar que você precisa dar um tempo na vida e reorganizar sua vida dentro de sua limitação. Então, foi duro, porque eu sonhava com os alunos, porque a gente faz um planejamento com todos, para que todos tenham atingido a média até o fim do ano, assim. (Professora – 6, depoimento colhido em novembro de 2012).

No período do adoecimento e durante o processo de reabilitação, a professora relatou que se sentia culpada em deixar sua função, em não conseguir terminar o seu trabalho, deixar a classe no meio do caminho para ela foi muito difícil, sentia-se culpada, por deixar seus

alunos. Relata que tinha um sentimento como se tivesse prejudicado as crianças ao deixá-las com uma professora substituta, entendia que seriam prejudicados na questão da aprendizagem naquele ano,

(...). Então, para a gente, é muito difícil, humanamente impossível, porque a gente é também mãe do aluno e professora é uma profissão que às vezes eu acho ingrata, porque o profissional se envolve demais, talvez seja por isso que a gente adoece mesmo. A gente se sente responsável por eles e aí o que acontecia.. eu sonhava muito com as crianças. (...) eu não queria encontrar ninguém, porque era muito ruim... parece que você não está cumprindo sua obrigação. Você pegou a sala, como não vai entregar ela?

Você se aceitar doente, entender que precisa de um tempo para aceitar porque, indiretamente, também a gente se sentia cobrada. Eu sei que não era intencional, que vinha me contar o que estava acontecendo de errado. Mas a gente sente, o que é a responsabilidade. Então, esse conflito é difícil superar. Eu chegava num ponto. Preciso me aceitar. Preciso ir ao médico hoje, eu precisava, na época, o médico me disse que tinha que colocar uma prótese na coluna. Eu tinha duas crianças, de 7 anos e 2 anos, então, eu tinha que desligar dos filhos das outras mães, que eram meus alunos, e pensar que eu tinha que ter saúde, porque eu era mãe dos meus. Os meus iam precisar de mim.

Até você se conscientizar disso daí, e parar de sonhar com os alunos. Poxa vida, não é que eu não gostava. Você gosta, quando encontra as mães, tem maior carinho com a gente, mas é tão difícil. Aí, eu penso assim: Eu tenho que me preocupar, porque, se eu não ficar bem, eu fecho este ano e entrego eles e os meus, não sabia até onde (...) (Professora – 6, depoimento colhido em novembro de 2012).

Também o relato da Monitora – 19 traz elementos que evidenciam seu vínculo como cuidadora das crianças. A afetividade em cuidar das crianças estava à frente de seu próprio problema de saúde. Como não carregar uma criança chorando? Como deixá-la suja? Essas questões não tem uma resposta imediata e envolvem relações de afetividade. Apesar de saber que esse movimento repetitivo causaria alguns problemas de saúde, não via como deixar de realizá-lo todos os dias, em sua rotina de trabalho.

Meu adoecimento veio há muito tempo. Porque, no berçário, quase ninguém gosta de trabalhar no berçário, eu gostava e eu fiquei muitos anos no berçário. Então, vinha criança mais levinha, vinha criança mais pesada, e esse movimento de pegar no chão, até na cuba, antes tinha cuba, hoje, tem escadinha para subir, antes não tinha nada, criança pesada, era esse movimento todo dia.

Eu tinha, na minha turma de berçário, mas era assim, eram 12 crianças.., duas vezes banho de manhã, duas vezes banho à tarde, imagine, esses que vinham com barriguinha meio solta eram mais banhos, aquela criança, eram vários banhos. Esse movimento de erguer, às vezes, não era o banho, era colocar no berço. O berço era alto de se colocar, alguns dormiam no colo.

Então, esse movimento repetitivo, várias vezes ao dia, por vários anos, que a gente faz automaticamente, a gente não vai lembrar, vai prejudicar um dia, a gente não vai lembrar, na hora estamos fazendo simplesmente. (Monitora – 19, depoimento colhido em novembro de 2012).

É comum verificar que os problemas que levaram ao adoecimento do trabalhador são atribuídos como questões de sua própria personalidade, de sua identidade profissional, desvinculando-o de seu processo de trabalho, desconsiderando a trajetória profissional anterior ao adoecimento, ao desconsiderar as dimensões sociais relativas à situação do trabalho, como se a doença e o trabalho fossem analisados separadamente. Com essa prática, criam-se dificuldades de defesa coletiva enquanto trabalhadores.

Ao culpar o trabalhador por sua doença, criam-se estigmas e condições propícias para a discriminação dos colegas de trabalho, após passar pelo processo de reabilitação.