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4 UM OLHAR SOBRE O ROMANCE ALLAH N’EST PAS OBLIGÉ

4.4 A INSERÇÃO DA LÍNGUA MALINQUÊ NA NARRATIVA

Para analisar como alguns aspectos do romance Allah n’est pas obligé foi traduzido para o português do Brasil, é pertinente destacar a presença da língua malinquê na escrita dessa obra. Dessa forma, será possível verificar como os elementos pertencentes a essa língua e cultura foram transferidos para o texto de chegada.

Pertencente ao grupo mandê, da família nigero-congolesa, a língua malinquê é falada em diferentes países como Guiné, Mali, Libéria, Senegal, Serra Leoa e Costa do Marfim 90. É válido destacar ainda que, na Costa do Marfim, país de origem do escritor Ahmadou Kourouma, a língua francesa é a língua oficial, utilizada, sobretudo, por pessoas que ocupam um lugar social mais favorecido nessa sociedade. O uso de outras línguas faz parte, geralmente, do contexto de vida de pessoas que moram em zonas rurais e não tiveram acesso à escola. O acesso a alguns dados da Unesco de 2015 mostrou que a taxa de alfabetização desse país alcançou apenas 43,2% da população maior de 15 anos de idade91. Isso reflete, entre outras coisas, quanto a língua francesa pode estar vinculada, nesse território, a melhores oportunidades de estudo e trabalho, como também pode mascarar o seu passado imperialista. Diante desse contexto multilinguístico que o escritor Ahmadou Kourouma é originário, o uso da língua francesa e da língua malinquê vai trazer à tona uma série de problemáticas.

89 Il ne fait aucun doute, avec le recul, que Kourouma ne reproduit pas la situation politique ivoirienne, mais la représente, c’est-à-dire la reconstruit, l’organise et l’interprète. Il ne fait aucun doute que Kourouma n’embarque pas son lecteur dans une cause, mais en appelle à ses capacités de jugement critique afin que – via la fiction – il comprenne l’Homme africain (VOISIN, 2015, p. 11).

90 Fonte: http://lgidf.cnrs.fr/sites/lgidf.cnrs.fr/files/images/Creissels.langues.afric.jan.%202017.pdf Acesso em: 07 mar. 2019.

91 Informação encontrada no site oficial da francofonia. Disponível em: http://www.francophonie.org/Cote-d-Ivoire-100.html Acesso em: 21 fev. 2015.

Logo no início da narrativa, Birahima anuncia que não vai empregar o francês normativo, e sim um francês crioulizado, resultado da mistura do malinquê e da língua francesa. Diante desse contexto, o escritor modifica e desfamiliariza a língua francesa ao lançar mão tanto da oralidade como de elementos vinculados à cultura malinquê, como o uso de vocabulário, expressões culturalmente marcadas e saberes populares. Sendo assim, pode-se afirmar que a maneira como o narrador-personagem narra sua história é uma forma irônica de posicioná-lo socialmente, porque sua linguagem e a maneira como ele se comunica o fazem ocupar um lugar de desprestígio social. Através da passagem abaixo, é possível apreender o modo debochado que o personagem-narrador se apresenta logo no início do romance:

E primeiro...e um...Meu nome é Birahima. Sou um neguinho. Não porque sou black e moleque. Não! Mas sou neguinho porque falo mal francês. Isso aí. Mesmo quando a gente é grande, velho, mesmo quando é árabe, chinês, branco, russo ou até americano, se a gente fala mal francês, a gente fala que nem um neguinho, a gente é um neguinho. Essa é a lei do francês de todo santo dia [...] sou insolente, errado que nem barba de bode e falo como um filho-da-mãe. Eu não falo que nem os outros pretos negros africanos nativos engravatados: merda! Puta-que-pariu! Filho da puta! Eu uso as palavras da língua malinquê que nem faforo! (Faforo! significa caralho do meu pai ou do pai do teu pai). Que nem gnamokodê! (Gnamokodê significa filho-da-puta ou puta-que-pariu). Que nem Walahê! (Walahê! significa Em nome de Alá). Os malinquês, essa é minha raça. É o tipo de pretos negros africanos nativos que são numerosos ao norte da Costa do Marfim, na Guiné e em outras repúblicas de bananas estropiadas como a Gâmbia, a Serra Leoa e o Senegal, lá praqueles lados92, etc. (KOUROUMA, 2003, p. 9-11).

Nesse contexto, Birahima se denomina de "p'tit nègre”, por não utilizar a linguagem do negro engravatado. Ele explicita que a coexistência entre essas duas línguas será possibilitada pela aquisição de quatro dicionários. A utilização desses dicionários reflete o contexto de dualidade, multiplicidade e mesmo de ambiguidade da escrita do romance, ao fazer uso de duas línguas: uma com seu caráter normatizante e a outra repleta de saberes populares e expressões recheadas de oralidade.

92 Et d'abord...et un...M'appelle Birahima. Suis p'tit nègre. Pas parce que suis black et gosse. Non! Mais suis p'tit nègre parce que je parle mal le français. C'é comme ça. Même si on est grand, même vieux, même arabe, chinois, blanc, russe, même américain; si on parle mal le français, on dit on parle p'tit nègre, on est p'tit nègre quand même. Ça c'est la loi du français de tous les jours qui veut ça (KOUROUMA, 2000, p. 7). [...] suis insolent, incorrect comme barbe d'un bouc et parle comme un salopard. Je dis pas comme les nègres noirs africains indigènes bien cravatés: merde! putain! salaud! J'emploie les mots malinkés comme faforo! (Faforo! signifie sexe de mon père ou du père ou de ton père.) Comme gnamokodé! (Gnamokodé! signifie bâtard ou batardise.) Comme Walahé! (Walahé signifie Au nom d'Allah.) Les Malinkés, c'est ma race à moi. C'est la sorte de nègres noirs africains indigènes qui sont nombreux au nord de la Côte-d'Ivoire, en Guinée et dans d'autres républiques bananières et foutues comme Gambie, Sierra Leone et Sénégal là-bas, etc (KOUROUMA, 2000, p. 8).

Primeiro o dicionário Larousse e o Petit Robert, segundo o Inventário das particularidades lexicais do francês da África negra e terceiro o dicionário Harrap's. Esses dicionários me servem para procurar os palavrões, para verificar os palavrões e principalmente para explicá-los. É preciso explicar porque meu blablablá é para ser lido por todo tipo de gente: tubabs (tubab significa branco) colonos, pretos nativos selvagens da África e francófonos de tudo que é gabarito (gabarito significa tipo). O Larousse e o Petit Robert me servem para procurar, verificar e explicar os palavrões do francês da França aos pretos nativos da África. O inventário das particularidades lexicais do francês da África explica os palavrões africanos aos tubabs franceses da França. O dicionário Harrap's explica os palavrões pidgin a todo francófono que não entende nada de pidgin93 (KOUROUMA, 2003, p. 11-12).

De acordo com Gassama (1995), ao inserir na língua francesa termos, expressões e provérbios em língua malinquê e lançar mão de tradições do contexto africano, Ahmadou Kourouma acaba por modificar e desfamiliarizar a sintaxe da língua francesa culta através de procedimentos que emprestam traços da oralidade à fala do personagem-narrador. Essa coabitação de duas identidades e desses dois modos de enunciação na escrita do escritor culmina com uma criação estilística que desnuda a língua francesa e veste-a de elementos africanos, sendo assim:

[...] a novidade no estilo do romancista marfinense, Ahmadou Kourouma, reside essencialmente no fato de propor uma obra cujo protagonista é, levando tudo em conta, o estilo - sim, o estilo malinquê transposto em francês. E para acusar esse estilo, o romancista, como era de se esperar, não fez uso nem da gíria, nem da língua popular, nem do pidgin marfinense ou pequeno-negro, nem do léxico local. Ele esvaziou as palavras da França de seu conteúdo gaulês para carregá-las, tal como caixeiros-ambulantes malinqueses, com novas mercadorias a serem oferecidas ao consumidor francófono94 (GASSAMA, 1995, p. 118, tradução nossa).

93 Primo le dictionnaire Larousse et Le Petit Robert, secundo l'Inventaire des particularités lexicales du français en Afrique noire et tertio le dictionnaire Harrap's. C'est dictionnaires me servent à chercher les gros mots, à vérifier les gros mots et surtout à les expliquer. Il faut expliquer parce que mon blablabla est à lire par toute sorte de gens: des toubabs (toubab signifie blanc) colons, des noirs indigènes sauvages d'Afrique et des francophones de tout gabarit (gabarit signifie genre). Le Larousse et le Petit Robert me permmetent de chercher, de vérifier et d'expliquer les gros mots du français de France aux noirs nègres indigènes d'Afrique. L'Inventaire des particularités lexicales du français d'Afrique explique les gros mots africains aux toubabs français de France. Le dictionnaire Harrap's explique les gros mots pidgin à tout francophone qui ne comprend rien de rien au pidgin (KOUROUMA, 2000, p. 9).

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[...] la nouveauté, dans le style du romancier ivoirien, Ahmadou Kourouma, réside essentiellement dans le fait de proposer une oeuvre dont le protagoniste est, à tout considérer, le style - oui, le style malinké transposé en français; et pour accuser ce style, le romancier n'a fait appel, comme l'on s'y attendrait, ni à l'argot, ni à la langue populaire, ni au pidgin ivoirien ou petit-nègre, ni au lexique du terroir. Il a vidé les mots de France de leur contenu gaulois pour les charger, comme des colporteurs malinké, de nouvelles marchandises, proposées à la consommation du francophone (GASSAMA, 1995, p. 118).

Por esse ângulo, essa africanização da língua francesa nos parece ser uma forma de descentralizar a literatura, ao fazer uso de uma linguagem que não faz parte das tendências do campo literário. O tom coloquial presente na narrativa deriva da estrutura da língua malinquê, que, por creolizar a língua francesa, termina por se distanciar da gramática e do léxico do francês legitimado.

A incorporação de elementos da oralidade, a desconstrução do francês normativo e as referências não só à língua como também aos aspectos sócio-culturais ligados à cultura malinquê nos levam a pensar que o escritor almeja construir algo próximo de uma identidade africana e, ao mesmo tempo, denunciar o imperialismo da língua francesa. Nesse sentido, as palavras de Bonnici (2009) são bastante esclarecedoras, quando afirma que esse procedimento de crioulização da língua europeia faz parte de um projeto de descolonização da literatura, ao denunciar o estrago colonial revelado pela diáspora e ampliar o cânone literário (BONNICI, 2009).

Sobre essa relação estética que os autores africanos instauram com a língua do colonizador, Augel (2010) afirma que muito deles buscam inserir especificidades culturais africanas através dessa língua segunda, tanto reterritorializando realidades socioculturais de seu meio de origem quanto transcrevendo simbolicamente sua mundividência (AUGEL, 2010). Caminhando nesta direção, Diallo (2012) acrescenta que tais estratégias discursivas são utilizadas não somente para reivindicar a africanidade de seus textos, como também para dar voz a personagens que eram relevados na historiografia ocidental, fornecer ao seu texto um caráter ancestral e, no caso do romance histórico, conferir uma certa veridicidade à enunciação.

Embora haja um certo questionamento sobre que língua um autor africano deve escrever, parece-nos bastante rica a saída encontrada por Ahmadou Kourouma de fazer uso da língua francesa, mas trazendo, para o seu texto, as riquezas da línguas e culturais africanas: "A tematização da revalorização da oralidade é uma forma de manifestar uma recuperação simbólica, um meio de afirmação de uma cultura, que foi subjugada pela hegemonia da escrita" (LEITE, 2003, p. 96). Por esse ângulo, parece-nos coerente afirmar que sua escrita, ao operar com a língua francesa e com a língua malinquê, confere a esse procedimento linguístico o desafio de contrapor sua linguagem poética à língua do colonizador, o que caminha em direção à reflexão de Casanova (2002):

Resta, como se vê, que essa vontade de se impor pela reivindicação de uma diferença linguística no próprio âmago de uma língua literária principal é uma das grandes vias de subversão da ordem literária, isto é, e de maneira indissociável, de questionamento da ordem estética, gramatical, política, social, colonial, etc. (CASANOVA, 2002, p. 363).

Pode-se afirmar que uma das preocupações centrais de sua literatura é se distanciar de um cânone literário francês, reivindicando uma escrita em língua francesa mergulhada em uma cultura africana. Através das reflexões feitas por Elisa Diallo (2012), sobre a escrita do guineense Tierno Monénembo, esse duplo jogo é uma característica de uma escrita migrante que busca não apenas uma expressão de uma identidade "outra", "africana", ou mesmo de um "hibridismo" cultural, mas, sobretudo, ser um reflexo da multiplicidade de referentes identitários do sujeito africano contemporâneo pós-colonial, uma espécie de migrante do novo mundo globalizado (DIALLO, 2012).

Sendo assim, parece-nos pertinente inserir sua escrita no grupo dos escritores "revoltados" de que trata Casanova (2002) em seu livro A República Mundial das Letras. Ao contrário dos "assimilados" que buscam a todo custo apagar qualquer traço linguístico e cultural de seu lugar de origem para serem aceitos/legitimados nos centros literários, os "revoltados" são aqueles que:

[...] tendo ou não uma outra língua à sua disposição, buscarão, por todos os meios, marcar o afastamento, seja criando uma distância distintiva do uso dominante (e legítimo) da língua dominante, seja criando ou recriando uma nova língua nacional (potencialmente literária). Em outras palavras, as "escolhas" dos escritores em matéria linguística (que não são conscientes ou calculadas), embora amplamente dependentes das políticas linguísticas nacionais, não se reduzem, como nas grandes nações literárias, à submissão dócil a uma norma nacional. O dilema da língua é para eles bem mais complexo, e as soluções que trazem adquirem formas mais singulares (CASANOVA, 2002, p. 310-311).

Mas sem peder de vista, é preciso destacar que:

A situação do escritor africano é, nesse sentido, particularmente delicada, pois o acesso ao reconhecimento nesse campo específico o obriga a jogar, permanentemente, um espécie de "jogo duplo": afirmar sua africanidade multiplicando os sinais de pertencimento e de conivência diante do leitor autóctone, como o fazem notadamente A. Kourouma e M.M. Diabaté, mas ao mesmo tempo conquistar leitores, editores e instituições literárias a milhares de quilômetros de distância para terem acesso, perante deles, a uma posição reconhecida. Daí a existência, nos romances de Kourouma por

exemplo, de um desdobramento revelador da figura do leitor e a existência de uma dupla mensagem: é preciso se dirigir ao mesmo tempo ao autóctone e ao estrangeiro95 (PARAVY, 2001, p. 219, tradução nossa).

Para além da riqueza linguística e cultural que opera a escrita de Ahmadou Kourouma, por ser um testemunho crítico repleto de referências históricas sobre as guerras civis, o fenômeno das crianças-soldados e os regimes ditatoriais ainda existentes no continente africano, esse romance pode ser lido, dentre outras maneiras, como uma ferramenta de conscientização política, social e linguística. Sobre as particularidades e contribuições que a escrita de Kourouma pode despertar, Gassama (1995) destaca:

Os diversos recursos estilísticos utilizados por Ahmadou Kourouma se distinguem pelas suas singularidades; eles são ainda mais singulares e, em algumas ocasiões, chocantes para o leitor inexperiente, na medida em que chegam a ser intencionais. Eles conduzem sempre para a mesma direção: a denúncia, sem disfarce, dos delitos das "Independências" como, outrora,

denunciavam-se os malefícios da Colonização96 (GASSAMA, 1995, p. 51,

tradução nossa).

Uma vez comentado alguns aspectos referentes à notoriedade do escritor Ahmadou Kourouma como também características do romance Allah n’est pas obligé, na próxima seção, serão discutidos alguns elementos específicos concernentes à tradução dessa obra para o português do Brasil.

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La situation de l'écrivain africain est donc particulièrement délicate, car l'accès à la reconnaissance dans ce champ particulier l'oblige à mener en permanence une sorte de "double jeu": affirmer son africanité en multipliant les signes d'appartenance et de connivence vis-à-vis du lecteur autochtone, comme le font notamment A. Kourouma e M.M. Diabaté, mais en même temps conquérir lecteurs, éditeurs et institutions littéraires à des milliers de kilomètres de là, pour accéder auprès d'eux à une position reconnue. D'où l'existence, dans les romans de Kourouma par exemple, d'un dédoublement révélateur de la figure du lecteur et l'existence d'un double message: il faut s'adresser à la fois à l'autochtone et à l'étranger (PARAVY, 2001, p. 219).

96 Les diverses ressources stylistiques utilisées par Ahmadou Kourouma se distinguent par leurs singularités; elles sont d'autant plus singulières et, en certaines occasions, chocantes pour le lecteur non averti qu'elles sont intentionnelles. Elles conduisent toujours dans la même direction: la dénonciation, sans fard, des méfaits des "Indépendances" comme, naguère, l'on dénonçait les méfaits de la Colonisation (GASSAMA, 1995, p.51)