• Nenhum resultado encontrado

5 ESTRATÉGIAS TRADUTÓRIAS EM ALÁ E AS CRIANÇAS-SOLDADOS

5.2 O TRATAMENTO DADO AOS ELEMENTOS PARATEXTUAIS

5.2.2 Notas de rodapé da tradutora

branco, encontra-se uma matéria informativa sobre a coleção Latitude, em que se lê:

Quadro 22 - Posfácio da edição brasileira

A coleção Latitude é uma seleção do que há de melhor na ficção contemporânea dos países e regiões de língua francesa. Ela é fruto da colaboração entre a Editora Estação Liberdade e os serviços culturais franceses, suíços e canadenses. O objetivo é abrir uma janela para a literatura dos diversos países e regiões que contribuíram para o florescimento desta importante língua literária, assim como dar espaço para autores, obras e editoras nem sempre contempladas pela lógica do mercado.

Fonte: Edição Estação Liberdade (2003).

Abaixo desse parágrafo sobre a coleção Latitude, há ainda a menção às outras obras que já foram publicadas por essa coleção, seguidas dos seus respectivos escritores e suas origens geográficas: O convidado desconhecido, de Olivier Cadiot (França), As formigas da estação de Berna e outras ficções suíças, de Bernard Comment (Suíça) e o próprio romance aqui analisado Alá e as crianças-soldados, de Ahmadou Kourouma (Costa do Marfim).

Para além das obras já lançadas, menciona-se igualmente os próximos lançamentos: A questão humana, de François Emmanuel (Bélgica), Vidas minúsculas, de Pierre Michon (França), Comédia Clássica, de Marie NDiaye (Senegal) e Palavras de baixo calão, de Réjean Ducharme (Canadá).

Vale destacar que a autoria dos elementos paratextuais apresentados até aqui foram todos elaborados pelo editor da Estação Liberdade, Angel Bojadsen99.

Por fim, chega-se à conclusão de que a análise sobre as notas editoriais realizadas pela editora Estação Liberdade procurou ora evidenciar o caráter estrangeiro da obra mencionando a coleção responsável pela edição do romance, ora deixou de dar visibilidade, de forma mais explícita, ao nome da tradutora. Um exemplo dessa invisibilidade das notas editoriais em relação ao trabalho de tradução diz respeito às duas orelhas do livro, as quais foram bastante informativas trazendo elementos sobre a notoriedade do autor e alguns aspectos linguísticos e temáticos da obra, mas se omitiu, por completo, sobre questões relacionadas às escolhas tradutológicas realizadas por Flávia Nascimento.

5.2.2 Notas de rodapé da tradutora

Uma outra modalidade de paratexto consiste nas notas do tradutor, o que, para Genette (1987), fazem parte de uma leitura facultativa, à medida que são dirigidas aos leitores que se interessam em conhecer um pouco mais sobre o texto. Por serem um comentário exterior ao texto, elaborado ora por tradutores ora por editores, elas são tidas também como um tipo de nota editorial (GENETTE, 1987). No caso da tradução do romance de Ahmadou Kourouma, as notas de rodapé foram realizadas pela tradutora. Por essa razão, sua análise foi separada dos demais paratextos.

Algumas outras atribuições de Genette (1987) sobre as notas do tradutor dizem respeito ao seu caráter de metatexto crítico, uma espécie de anexação periférica no texto, sempre transformável em comentário autônomo (GENETTE, 1987) e também do seu aspecto facultativo de leitura, uma vez que somente alguns leitores curiosos se direcionam a elas para apreender considerações complementares sobre o texto (GENETTE, 1987).

Como a nota do tradutor pode servir para esclarecer, explicar, acrescentar e diferenciar a tradução do texto de partida, as notas terminam por marcar a participação da tradutora no texto de chegada. Isso permite afirmar que suas escolhas vão em direção à noção do texto traduzido como recriação.

Como será analisado mais adiante, o uso das notas de rodapé evidenciou as escolhas e, consequentemente, a interferência da tradutora como produtora e realizadora de um outro texto. Ademais, visto que as notas da tradutora foram utilizadas de forma a guardar os aspectos estrangeiros da escrita de Ahmadou Kourouma, conclui-se que esses tipos de acréscimos textuais não são utilizadas unicamente para domesticar o texto de chegada. Ao contrário, através desse recurso tradutológico, a tradutora procurou elucidar alguns pontos de conflito que o leitor brasileiro poderia ter.

Ao contrário do texto de partida que não possui nenhuma nota, o texto de chegada tem treze notas de rodapé que fazem referência a sete substantivos, cinco abreviações e uma locução adverbial. De forma geral, as notas fornecem ora informações complementares de aspectos culturais africanos e de produto e divisão espacial poucos conhecidos na cultura de chegada, ora de abreviações que fazem referência ao contexto africano e/ou francês.

Essa escolha da tradutora em manter, através do uso de notas de rodapé, aspectos culturais estrangeiros na cultura brasileira nos parece condizer com o conceito de ética da

diferença de Venuti (2002), à medida que há uma tentativa de proporcionar, ao leitor brasileiro, uma representação ampla da cultura de partida, mesmo que, para isso, precise ser "infiel" às normas culturais domésticas (VENUTI, 2002).

Visto que nenhuma tradução é orientada completamente pela cultura de partida nem de chegada (VENUTI, 2002), a presença dessas notas de rodapé permitiu esclarecer significados extra-textuais para o leitor brasileiro. Dentro da ética positiva de Berman (1984), esse artifício paratextual é tido como uma estratégia que permite ao texto de chegada guardar elementos culturais da cultura de partida.

Embora as notas do tradutor possam também ser utilizadas para domesticar aspectos culturais e linguísticos para o contexto de chegada, no caso, as que foram inseridas na obra

Alá e as crianças-soldados nos parecem mostrar ao leitor que o que ele está lendo é fruto de uma tradução, o que também permitiu que o registro adotado pelo escritor Ahmadou Kourouma fosse mantido no texto de chegada.

Na maioria dos casos, as notas fazem referência a palavras que foram mantidas com a mesma grafia do texto de partida. Essa escolha estrangeirizadora nos parece ser a razão pela qual tais termos ganharam notas explicativas. Em apenas quatro das treze notas, a tradutora optou encontrar palavras equivalentes em língua portuguesa, no entanto, pelo sentido de partida não ter sido alcançado no texto de chegada, parece-nos ter sido por esse motivo que foi acrescentado a nota de rodapé (Quadro 23).

No caso da palavra falatório, traduzidade palabre, a nota de rodapé buscou esclarecer dois aspectos: o primeiro é que uma outra possibilidade de tradução seria lengalenga. A outra informação diz respeito a duas outras significações que esse termo pode ter no contexto africano: o de assembleia nacional e também para se referir aos presentes feitos pelos brancos aos chefes africanos.

No caso da palavra concessão, traduzida de concession, recebeu nota, para informar que, no primeiro caso, o termo é mais voltado a uma noção de espaço específica do contexto africano em que várias famílias constroem suas moradias e certas dependências são comuns. Por sua vez, concessão em português tem o sentido de consentimento, permissão, transigência (HOUAISS, 2009), oque mostra que a tradutora buscou dividir com o leitor a dificuldade de encontrar uma equivalência para o texto de chegada, optando deixar o leitor a par do significado do termo presente no texto de partida.

Em relação à palavra condado, traduzida de comtés, o acréscimo da nota explicativa serviu para informar que, no contexto de partida, comtés faz referência a um tipo de divisão administrativa de certos países de tradição anglo-saxônica. Embora esse tipo de organização não faça parte de uma divisão administrativa do território brasileiro, é certo que, mesmo sem a nota, o leitor compreenderia que condado se refere a espaços geográficos.

A locução adverbial Beijou na boca, traduzida de embrasser sur la bouche, ganhou nota explicativa em uma passagem do romance que fala do beijo entre dois ditadores. Por ser um gesto cultural da África negra, em que homens se beijam na boca, quando eles querem demonstrar admiração um pelo outro, caso não houvesse tal nota, haveria, talvez, uma outra interpretação desse gesto na cultura de chegada.

Quadro 23 - Palavras traduzidas que receberam notas da tradutora

Texto de partida - texto de

chegada Nota da tradutora

Contexto em que a nota está inserida no texto de chegada

Palabre - Falatório

No original "palabre" um dos sentidos deste vocabulário é "lengalenga". Designa também, na África, a assembléia tradicional em que os mais velhos discutem os assuntos da comunidade. No passado, referia-se ainda aos presentes feitos pelos brancos aos chefes africanos a fim de ganhar seus favores (ocasião em que ocorriam longas discussões). (N.T) p.11

E quatro… Eu quero me desculpar por falar com vocês assim na cara. Porque eu não passo de uma criança. De dez ou doze anos (há dois anos minha avó dizia que eu tinha oito e minha mãe dizia dez) e eu falo demais. Uma criança educada escuta, ao invés de ficar nesse falatório que nem um passarinho pendurado na figueira100 (p. 11). Grifo nosso

Concession - Concessão

Noção espacial de grande importância na África; trata-se de grandes terrenos em que várias famílias constroem suas moradias, e nas quais certas dependências são comuns (por exemplo, os sanitários). (N.T) p.17

A cabana da mamãe se abria por duas portas: a grande porta que dava na concessão da família e a portinha que dava no cercado101 (p. 17). Grifo nosso

Comtés - Condados Divisão certos países de tradição anglo-administrativa de saxônica. (N.T) p.103

A partir daí, as coisas aconteceram muito depressa. Em três semanas, ele mandou redigir uma constituição à sua moda. Durante dois meses, ele viajou por todos os condados

100 Et quatre…Je veux bien m’excuser de vous parler vis-à-vis comme ça. Parce que je ne suis qu’un enfant. Suis dix ou douze ans (il y a deux ans grand-mère disait huit et maman dix) et je parle beaucoup. Un enfant poli écoute, ne garde pas la palabre...Il ne cause pas comme un oiseau gendarme dans les branches de figuier (KOUROUMA, 2000, p. 9, Grifo nosso).

101 La case de ma maman s’ouvrait par deux portes : la grande porte sur la concession de la famille et la petite porte sur l’enclos (KOUROUMA, 2000, p. 14, Grifo nosso).

para explicar que ela era boa. E num domingo de manhã, a constituição foi aprovada numa votação com 99,99% dos eleitores, porque 100% já seria demais e não pareceria sério. Dava impressão de uya-uya102 (p. 103). Grifo nosso

Embrassé sur la bouche - Beijou na boca

Gesto muito utilizado na África negra, entre homens, quando eles querem exprimir uma enorme admiração um pelo outro. (N.T) p. 68

Trancafiado, ele conseguiu corromper os carcereiros com seu dinheiro roubado. Ele fugiu para a Líbia onde se apresentou a Kadafi como chefe da oposição ao regime sanguinário e ditatorial de Samuel Doe. Kadafi, o ditador da Líbia que muito tempo tentava desestabilizar Doe, beijou ele

na boca103 (p. 68). Grifo nosso

Fonte: Edição brasileira (2003).

Já outras quatro palavras não sofreram traduções para o texto de chegada (Quadro 23) As duas primeiras que ganharam notas e rodapé foram grigris e griot. No primeiro caso, mesmo sabendo que grigris já é uma palavra presente nos dicionários de língua portuguesa, a tradutora deu destaque para o aspecto material do amuleto que pode ser de origem africana ou antilhana e também para seu uso como objeto que pode dar sorte ou azar. No segundo caso, a nota sobre a palavra griot abarca sua origem e as atribuições que lhe são dadas como depositário da tradição oral africana.Dado que ambas as palavras pertencem ao campo lexical de tradições orais tão presentes na escrita de Ahmadou Kourouma, a manutenção desses termos não deixa de ter sua relevância.

Outras palavras que, embora tenham ganhado notas de rodapé, permaneceram com a escrita tal qual o texto original foram fonio e kaolin. O contexto em que a palavra fonio está inserido permite ao leitor compreendê-la apenas como uma mercadoria. O uso da nota

102 A partir de là, les choses allèrent très vite. En trois semaines, il se fit rédiger une constitution à sa mesure. Pendant deux móis, Il passa dans tous les comtés pour expliquer qu’elle était bonne. Et la constitution fut un dimanche matin votée à 99,99% des votants. A 99, 99% parce que 100% ça faisait pas três sérieux. Ça faisait ouya-ouya (KOUROUMA, 2000, p. 101, Grifo nosso).

103 Sous le verrou, il a réussi à corrompre avec l'argent volé ses geôliers. Il s'est enfui en Libye où il s'est présenté à Kadhafi comme le chef intraitable de l'opposition au régime sanguinaire et dictatorial de Samuel Doe. Kadhafi le dictateur de Libye qui depuis longtemps cherchait à déstabiliser Doe l'a embrassé sur la bouche (KOUROUMA, 2000, p. 65, Grifo nosso).

permitiu especificar que esse produto é um minúsculo grão comestível. Nessa mesma direção, insere-se a palavra kaolin, que também é estranha à língua portuguesa, e, através da nota, pode-se apreender a sua origem chinesa e sua composição de silicato de alumínio que dá um pó branco e quebradiço.

Quadro 24 - Palavras que permaneceram com a mesma escrita do texto de partida e receberam notas

da tradutora

Palavras Nota da tradutora Contexto em que a nota está

inserida no texto de chegada

Grigris

Pequeno amuleto (africano ou antilhano) para dar sorte ou azar. (N.T) p. 16

Balla era o único bambara da aldeia (bambara significa aquele que recusou), o único cafre da aldeia. Todo mundo tinha medo dele. Ele tinha o pescoço, os braços, os cabelos, e os bolsos cheinhos de grigris104 (p. 16). Grifo nosso

Griot

Palavra derivada do português "criado"; designa a casta inferior (e seus membros) de poetas músicos, depositários da tradição oral, geralmente malinquês; são encarregados de declinar elogios a personalidades de castas superiores. (N.T) p. 194

O sora, que é o griot dos caçadores, veio declamar sua oração fúnebre. Por ordem etária, os caçadores deram uma volta no corpo. Enquanto o sora, cantava os versículos esotéricos, os caçadores continuaram dando voltas no corpo carregando o fuzil de caça em diagonal sobre o peito e ritmando o canto com um balanço do busto, uma vez à esquerda, outra à direita105 (p. 193-194). Grifo nosso

Fonio Minúsculo grão comestível

chamado. (N.T) p. 55

A gente chega no campo entrincheirado do coronel Papai bonzinho. Os chefes do comboio descem, os caras entram no campo do coronel Papai bonzinho. Tudo é aberto, pesado e avaliado. As taxas de alfândega são calculadas de acordo com o valor. Começa um palavrório, uma discussão longa, depois o acordo é concluído. Os caras pagam de novo em mercadorias, arroz,

104

Balla était le seul Bambara (Bambara signifie celui qui a refusé), le seul cafre du village. Tout le monde le craignait. Il avait le cou, les bras, les cheveux et les poches tout plein de grigris (KOUROUMA, 2000, p. 14, Grifo nosso)

105 Le sora, le griot des chasseurs, est venu déclamer son oraison funèbre. Les chasseurs par ordre d’ancienneté ont fait le tour du corps. Pendant que le sora chantait des versets ésotériques, les chasseurs ont continué à faire le tour du corps en portant le fusil de traite en diagonale sur la poitrine et en rythmant le chant par des balancements du buste, une fois à gauche et une fois à droite (KOUROUMA, 2000, p. 190, Grifo nosso)

mandioca, fonio ou dólar americano106 (p. 55, Grifo nosso).

Kaolin

Vocábulario de origem chinesa que designava o lugar de onde se extraía o kaolin, silicato de alimínio, que dá um pó branco e quebradiço (N.T) p. 116

Sogu era um feiticeiro de raça krahn. Em todas as estações do ano ele usava, na cabeça e em volta das ancas, tiaras de penas. O corpo dele era todo colorido

de Kaolin107 (p. 116, Grifo

nosso).

Fonte: Edição brasileira (2003).

As outras notas dizem respeito às abreviações pertencentes apenas ao contexto de partida (Quadro 24). As cinco abreviações foram mantidas com a mesma grafia do texto de partida: CFA, CHU, ACNUR, AOF e ECOMOG. Em alguns casos, as notas trouxe por extenso o significado da abreviação; em outros momentos, houve também o acréscimo de informações complementares. No primeiro caso, dentro do contexto em que a abreviação CFA está inserida, o leitor compreende apenas que se trata de uma moeda, e a nota de rodapé teve a função de informar que o significado da sua abreviação (Francos da Comunidade Francófona Africana).

A abreviação CHU seguiu nessa mesma esteira. Para compreender que, no texto de partida, a abreviação faz referência a um centro hospitalar universitário, o leitor precisaria retornar ao início do parágrafo e deduzir que, pelo personagem Tiécoura ter sido hospitalizado, CHU faz referência ao hospital em que ele se encontra. Por não ter a mesma abreviação em língua portuguesa, infere-se que a tradutora acrescentou essa nota, para, de um lado. guardar a abreviação pertencente apenas ao contexto de partida e, ao mesmo tempo, esclarecer para o leitor do texto de chegada o seu significado.

A nota de rodapé referente à abreviação ECOMOG buscou não só trazer sua definição em inglês e em português, como também fornecer uma informação complementar sobre o governo do ex-ditador Taylor, que, em 2003, aceitou entregar a presidência da Libéria mediante um acordo regional, sob garantias das Nações Unidas, que prevê eleições no prazo de dois anos.

106

On arrive au camp retranché du colonel Papa le bon. Patrons du convoi descendent, ça rentre chez le colonel Papa le bon. Tout est déballé, pesé ou estimé. Les taxes des douanes sont calculées selon la valeur. De gros palabres s’engagent, ça discute fort et puis l’accord se conclut. Ça paie, repaie et en nature, du riz, du manioc, du fonio ou en dollar américain (KOUROUMA, 2000, p. 53, Grifo nosso)

107

Sogou était um féticheur de race krahn. Il portait en toute saison sur la tête et à la hanche des ceintures de plumes. Son corps était bariolé de kaolin (KOUROUMA, 2000, p. 113, Grifo nosso)

Por fim, as abreviações ACNUR e AOF nos parecem ter recebido notas explicativas, porque, mesmo recorrendo ao contexto em que elas estão inseridas, os seus significados de Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados e África Ocidental Francesa, respectivamente, ficam desconhecidos para o leitor.

Quadro 25 - Abreviações que permaneceram com a mesma escrita do texto de partida e receberam

notas da tradutora

Abreviação Nota da tradutora Contexto em que a nota está

inserida no texto de chegada

CFA

Francos da Comunidade Francófona Africana. (N.T) p. 38

Como na aldeia ninguém conseguia encontrar alguém para me acompanhar até a casa da minha tia na Libéria, o grande figurão Hadji Yacuba vulgo Tiecura, numa manhã depois da oração, disse que ele ia me levar para a Libéria. Ele queria me acompanhar porque ele era também multiplicador de notas de dinheiro. Um multiplicador de notas de dinheiro é um marabuto ao qual se dá um punhadinho de dinheiro um dia e que, noutro dia, te reembolsa com um montão de notas CFA

ou até mesmo com dólares americanos108 (KOUROUMA, 2003, p. 38, Grifo nosso).

CHU Centro Hospitalar

Universitário. (N.T) p. 42

Enquanto Yacuba vulgo Tiecura estava no hospital, um dos seus amigos veio visitar ele. Ele se chama Seku. Seku Dumbuya. Era um colega da mesma idade, colega de iniciação, portanto um velhíssimo amigo. (Nas aldeias negras pretas africanas, as crianças são classificadas por faixa etária. Elas fazem tudo por faixa etária. Elas brincam e são iniciadas por faixa etária.) Seku veio visitar ele de Mercedes-Benz. Na Costa do Marfim, são os ricos que circulam de Mercedes-Benz. Seku contou a Yacuba o ofício que ele exercia para ganhar muito dinheiro sem riscos e sem fazer porra

108 Comme au village on ne trouvait toujours personne pour m’accompagner chez ma tante au Liberia, le grand quelqu’un hadji Tiécoura alias Yacouba, un matin après la prière, a dit qu’il allait m’emmener au Liberia. Il voulait m’accompagner parce qu’il était aussi multiplicateur de billets. Un multiplicateur de billets est un marabout à qui on donne une petite poignée d’argent un jour et qui, un autre jour, te rembourse avec plein de billets CFA ou même des dollars américains (KOUROUMA, 2000, p. 36, Grifo nosso).

nenhuma. Era o trabalho de marabuto. Na saída do CHU de Yopugon, Yacuba vulgo Tiecura vendeu a carcaça do carro e dos outros ônibus rápidos e se instalou como marabuto multiplicador de notas de dinheiro, fabricante de amuletos, inventor de orações para ter sucesso e descobridor de sacrifícios para conjurar todos os maus-olhados109 (p. 42, Grifo nosso).

ACNUR

Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados.