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2 A CIRCULAÇÃO DA LITERATURA DE AUTORIA AFRICANA NO

2.2 AS EDITORAS INDEPENDENTES

2.2.3 Portugal e Brasil como centros editoriais das obras de língua portuguesa

De forma a problematizar as relações de poder intrínsecas à circulação desses bens simbólicos, observou-se igualmente o caminho percorrido por essas obras até a publicação no Brasil. O número elevado de obras com primeira edição em Portugal (vinte e cinco obras dentro do total de cinquenta e cinco, ou seja, 45%) nos mostrou o poder de consagração e de seleção dos centros literários que agem como filtros, escolhendo que obras "merecem" ser legitimadas.

Das cinquenta e cinco obras publicadas pelas seis editoras independentes, entre 2000 e 2015 (Gráfico 2), apenas quatro não são de escritores africanos lusófonos, conforme já visto, o que explica, de certa forma, o porquê dessas obras terem sido editadas, inicialmente, em Portugal.

Gráfico 2 - País da primeira edição das obras de autoria africana publicadas no Brasil pelas editoras independentes Pallas, Kapulana, Nandyala, Língua Geral, Gryphus e Estação Liberdade

(2000-2015)

Fonte: Dados da Pesquisa, 2019.

Esse número elevado de obras que são, inicialmente, editadas em Portugal, através de editoras como Leya, Porto Editores e Caminho, revela que a comunicação entre campo literário brasileiro e africano passa com bastante frequência pelo intermédio de um centro, o que colabora com a afirmação do escritor moçambicano Francisco Noa (2015): "Hoje, mais do que nunca, assistimos à dependência cada vez mais crescente dos autores africanos em relação aos universos de recepção fora de África que funcionam como caução de promoção, legitimação e de consagração numa comunidade de leitores cada vez mais global" (NOA, 2015, p. 30). Isso significa dizer que Portugal atua como mediador na divulgação, recepção e consagração dessas produções e outros países. Diante desse contexto, embora, para Pascale

Portugal 45% Brasil 25% Angola 9% Moçambique 2; 4% co-edições (Angola-Portugal) 6% Guiné-Bissau 4% França 5% co-edições (Camarões-França) 2% Outra 11% N: 55

Casanova (2002), seja Paris o centro literário descrito como cidade que consagra as literaturas, concentra e acumula os recursos literários, instituição de crédito e "banco central" dos "câmbios e intercâmbios", todas essas atribuições podem ser revisitadas, se pensarmos em Portugal como centro literário das literaturas de língua portuguesa.

Ademais, apesar de o Brasil estar inserido no polo heterônomo, formado pelos campos literários nacionais pouco dotados ou em vias de constituição (CASANOVA, 2002), ele foi responsável pela primeira edição de um elevado numero de obras (25%), oque o permite ser identificado como centro literário, depois de Portugal, para as literaturas de autoria africana de língua portuguesa.

Essa posição do Brasil, como segundo país de primeira edição para as obras de escritores africanos lusófonos, pode ser compreendida através da revisitação que Jean Bessière (2011), professor de literatura comparada da Universidade Sorbonne Nouvelle, propõe sobre a noção de centro literário. Em seu artigo Centro, centros: novos modelos literários (2011), o mesmo destaca a existência de vários centros dotados de identidades diversas. O uso da palavra Centros no plural está relacionado a um cosmopolitismo econômico e cultural, e não a uma ideia de que existe um centro único e homogêneo. Mais precisamente, sua concepção de centros literários pretende dar luz à multiplicidade de novas histórias, visto que, apesar de países como os Estados Unidos, a França e a Alemanha imporem os seus modelos literários, essa centralidade não impede a existência de outras grandes potências literárias e editoriais. Um dos casos que Bessière cita, referindo-se à América Latina, é, justamente, o Brasil e a Argentina. É mister, portanto, destacar que esses novos centros têm por característica serem situados em países emergentes com forte potencial de mercado interno, embora com pouco impacto em termos de exportação (BESSIÈRE, 2011).

Segundo Bessière, a divisão estática centro versus periferia deve ser revisitada, porque serve apenas para garantir e perpetuar a dominação linguística, cultural e literária dos centros europeus, visto que a atribuição de literaturas mais ou menos importantes é também construída através das oposições entre línguas centrais versus línguas periféricas (BESSIÈRE,

2011). Ademais, essa dicotomia termina por provocar a prática da homogeneização cultural, devido à hegemonia literária dos centros que terminam impondo os seus modelos, sem que seja feito uma reflexão sobre a hierarquia dessa dualidade e suas implicações na subjugação da periferia em relação ao centro (BESSIÈRE, 2011).

Para Jean Bessière (2011), as literaturas menores podem também ter um impacto global, porque elas pertencem a um centro específico onde há línguas e culturas particulares.

O que significa dizer que essa retirada da literatura do seu contexto para colocá-la como periferia de um centro significa distoricizar as literaturas, dado que não é, necessariamente, por ser periférico que é dominado (BESSIÈRE, 2011). Sendo assim, para dar visibilidade à pluralidade de histórias de outros centros, é preciso desconstruir essa centralidade e esse conservadorismo histórico personificado, por exemplo, por Paris (BESSIÈRE, 2011).

Nesse sentido, essa perspectiva procura dar tanto visibilidade à diversidade das historicidades literárias, evitando colocar essas produções em um mesmo patamar temporal, como relativizar a perspectiva de Casanova que lê a mundialização contemporânea sob o signo da permanência de Paris como único centro literário, sem considerar que há sentido em falar em centralidade de países periféricos por sero jogo literário transitório. Em resumo, essa dicotomia e as implicações decorrentes dessa estrutura, tanto no contexto editorial quanto do ponto de vista político, histórico, econômico e cultural, pressupõem hierarquias (SANTOS, 2002). Sendo assim, essa lógica também traz imbuída um viés colonial e relações de poder, haja vista que, quando Bessière propõe desconstruir a centralidade, ele está propondo desreferencializar o centro, ou seja, os grupos hegemônicos.

Quanto às obras que foram inicialmente editadas em países africanos, é importante destacar que o mercado editorial africano ainda é bastante dependente das grandes editoras europeias. Segundo Raphaël Thierry (2015), em seu estudo sobre o mercado do livro africano e suas dinâmicas literárias, é problemático o acesso de editoras africanas ao mercado internacional visto que a circulação e a difusão do livro editado em países africanos encontram dificuldade de ter seu lugar devido aos entraves financeiros, de logística e de distribuição, os quais são agravados com a concorrência desleal oriunda, frequentemente, das edições de países europeus (THIERRY, 2015).

Thierry (2015) explica que a causa central da presença de escritores africanos em centros literários europeus está ligada aos aspectos políticos que desfavoreceram o desenvolvimento cultural em países africanos. Sobre isso, ele cita as crises econômicas da década de 80 e as imposições econômicas ditadas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) e pelo Banco Mundial, as quais impossibilitaram os países africanos de desenvolver o setor cultural, provocando uma emigração motivada de autores em direção aos centros que são as antigas metrópoles coloniais (THIERRY, 2015).

Neste estudo, verificou-se que, mesmo as poucas obras que tiveram primeira edição em uma editora africana, logo em seguida, foram publicadas por algum centro literário. Isso ratifica o lugar periférico desses países32 que dependem, quase que exclusivamente, das edições europeias, para terem suas obras publicadas.

Em seu estudo sobre a criação do cânone em Moçambique, Vanessa Riambau Pinheiro (2017) já destacara que esse país tem poucas editoras e não tem capacidade de distribuição, provocando a dependência dos escritores africanos nas edições europeias, uma vez que não há ainda uma verdadeira dinâmica editorial nesse espaço geográfico (PINHEIRO, 2017). Isso se torna ainda mais problemático, quando sabido que Moçambique exporta produções literárias que geralmente contempla apenas o que é produzido na capital Maputo e em seus arredores (PINHEIRO, 2017).

Caminhando nesta direção, Claire Ducournau (2017), em seu livro La fabrique des classiques africains, ressalta que, apesar de ser preciso reconhecer um certo avanço do mercado editorial africano, notadamente quando se pensa na Costa do Marfim e no Senegal, esse setor continua sob controle dos países detentores de grandes estruturas editoriais. De modo a ratificar essa dependência, a estudiosa cita o contexto africano francófono, da década de 80, em que se apreende que a distribuição de livros em diferentes mercados nacionais é, em sua maioria, realizada pela renomada editora francesa Hachette (DUCOURNAU, 2017). Ademais, ela afirma que tais escritores têm menos garantias de terem suas produções reeditadas no estrangeiro, quando suas obras são publicadas, inicialmente, no continente africano. Isso se explica pela pouca autonomia das estruturas editoriais nacionais desses países, pela prioridade ao setor de livros didáticos e também pela presença de instituições nacionais que podem chegar, até mesmo, a censurar e/ou favorecer certas criações literárias (DUCOURNAU, 2017).

Essa realidade é historicamente explicada, quando sabido que, durante o período que antecedeu as independências, o colonizador francês impediu a criação de empresas editoriais nos territórios africanos que eles controlavam (PINHAS, 2005).

Por fim, embora o número de obras contempladas pelo processo de coedição tenha sido pequeno, ele não deixa de ter seu peso e seu significado no mercado editorial, ao apresentar uma colaboração entre editoras europeias e africanas. A relevância desse tipo de

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Os escritores contemplados nos catálogos aqui analisados são originários de países magrebinos (Argélia e Marrocos), da África Subsaariana (Serra Leoa, Angola, Nigéria, Moçambique, África do Sul, Guiné Francesa, Quênia e Costa do Marfim) e da parte oriental do Oriente Médio (Egito).

modelo editorial é dupla. Primeiramente, por compensar a fraca representação da edição africana no mercado literário mundial através de acordos, sob a chancela de editoras nacionais envolvidas no projeto da Aliança de Editoras Independentes. Esse projeto foi criado em 2002 e visa a trabalhar pela democratização do livro, por uma edição plural e mais crítica, contribuindo para a promoção e divulgação das produções do Sul e buscando inverter o sentido dos fluxos comerciais. Organizada em seis redes de idiomas (inglês, árabe, francês, espanhol, português e persa), a Aliança representa mais de quatrocentos editoras independentes oriundas de quarenta e cinco países. Uma das suas ações consiste em apoiar projetos editoriais internacionais que podem assumir a forma de assistência à tradução ou coedição33

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Em segundo lugar, essa dupla edição permite, como afirma Buzelin (2009), dividir os gastos, riscos e saberes, a fim de ganhar benefícios com a coedição, colocando o livro no mercado mais rápido e com um custo menor. Vale destacar que esse tipo de colaboração editorial não é tão recente, posto que se desenvolveu de forma mais significativa, a partir dos anos 1960, respondendo a uma nova demanda da globalização editorial que precisava dinamizar sua lógica de produção, para atender às expectativas do mercado internacional (BUZELIN, 2009).