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5 ESTRATÉGIAS TRADUTÓRIAS EM ALÁ E AS CRIANÇAS-SOLDADOS

5.3 O TRATAMENTO DADO AOS ASPECTOS LINGUÍSTICOS E CULTURAIS

5.3.3 Saberes populares

A análise de como foram traduzidos os saberes populares presentes no romance Alá e as crianças-soldados se justifica por esses elementos fazerem parte do contexto africano, mais precisamente da cultura malinquê. Através de algumas passagens da narrativa (Quadro 29), pôde-se verficar que tais saberes ora remetem a uma representação negativa de algo que vai acontecer futuramente, ora servem para ratificar uma verdade. Isso nos permite afirmar que a

sua função na narrativa é denotar um fato ou sinal que se adivinha o futuro ou destacar um indício que pode servir para justificar um acontecimento presente.

Caso esses aspectos da escrita de Ahmadou Kourouma não fossem mantidos, ou tivessem sidos adaptados ao gosto local, o leitor brasileiro deixaria de ter acesso a essas particularidades do romance em questão. Vale salientar igualmente que uma suposta busca em encontrar tais representações em língua portuguesa empobreceria a tradução, à medida que omitiria o aspecto estrangeiro do contexto africano.

Sendo assim, colaborando com a reflexão de Venuti (2002), que diz que um projeto tradutório pode se distanciar das normas domésticas, a fim de evidenciar a estrangeiridade do texto de partida e, consequentemente, permitir uma maior compreensão sobre as diversidades linguísticas e culturais, conclui-se que a tradução literal dos saberes populares contribuiu para enriquecer a cultura de chegada, ao fazer uso de uma prática tradutória que produziu um texto que pode ser lido como uma fonte potencial de mudança cultural (VENUTI, 2002).

Quadro 29 -Tradução dos saberes populares pertencentes à cultura malinquê

Texto de chegada Texto de partida

Depois, ele disse que a coruja que aparece do lado esquerdo do viajante três vezes é um triplo sinal de mau presságio para a viagem (p.45)

Après, il a dit qu’une chouette qui sort à gauche du voyageur est mauvais présage pour le voyage (p. 43)

Depois de o turaco ter cantado à direita, Yacuba levantou e disse que o canto do turaco é uma boa resposta (p. 45)

Le touraco ayant chanté à droite, Yacouba s’est levé et a dit que le chant du touraco est une bonne réponse (p. 43)

Depois, ele disse que as corujas que surgem duas vezes do lado esquerdo do viajante são coisa de muito mau, mas muito mau mesmo, agouro (p. 45)

Après, il a dit que des chouettes qui sortent deux fois à gauche du voyageur c’est trop et trop mauvais augure (p. 43)

[…] uma perdiz cantou à direita; então ele levantou, sorriu e disse que o canto da perdiz significava que a gente tinha a proteção da minha mãe (p. 46)

[…] une perdrix a chanté à droite ; alors il s’est levé, il a souri et a dit que le chant de la perdrix signifie que nous avons la protection de l’âme de ma mère (p. 44)

[…] uma galinha-d’angola cantou à direita; então ele levantou, sorriu e disse que o canto da galinha-d’angola significava que a gente tinha a bênção da alma da minha mãe (p. 46)

[…] une pintade a chanté à droite ; alors il s’est levé, il a souri et a dit que le chant de la pintade signifie que nous avons la bénédiction de l’âme de ma mère (p. 44)

Ele estava muito preocupado e disse que uma lebre morta no meio da pista era um agouro muito, mas muito ruim mesmo (p. 47)

Il était trop soucieux et il a dit qu’un lièvre mort au milieu de la piste était très mauvais, trop mauvais augure (p. 45)

Fonte: Edição de bolso Seuil (2000) e edição brasileira (2003).

Ainda segundo Venuti (2002), as escolhas que o tradutor pode encontrar para minimizar a domesticação do texto traduzido acontece através do uso de inovações estilísticas

que desafiam a hierarquia doméstica das linguagens e, consequentemente, valorizam as diferenças linguísticas e culturais do texto estrangeiro. A manutenção de vocabulários e as transposições literais das expressões e dos saberes populares pertencentes ao contexto malinquê revelam que a tradução brasileira de Alá e as crianças-soldados se distanciou de uma perspectiva domesticadora em que os traços culturais e linguísticos da língua de origem são "adaptados" à língua/cultura de chegada. Nesse sentido, a tradução dessa obra pode ser considerada um exercício de descentramento por ir em direção a esse Outro.

Ao respeitar o registro utilizado no texto de partida, a tradução conseguiu capturar tanto os itens linguísticos e culturais da cultura malinquê como a estrutura da narrativa e o francês coloquial que caracterizam a escrita de Ahmadou Kourouma. Diante da manutenção desses aspectos estrangeiros, constatou-se que as estratégias discursivas utilizadas não foram voltadas a um público-leitor de massa, o que ratifica que escolhas tradutológicas são tomadas de decisão e de posicionamento, colaborando com a afirmação de Antoine Berman (1995), que diz que, em tradução, não se pode ser neutro, mesmo quando se faz uso de metodologias e conceitos de base diversos (BERMAN, 1995).

Deixar as marcas da cultura de origem no texto traduzido e se afastar do português corrente são, igualmente, um exemplo do projeto minorizante de Venuti (2002), à medida que tais escolhas buscam desmascarar a ilusão de transparência em um texto traduzido (VENUTI, 2002). Ademais, a tradução da obra de Ahmadou Kourouma também está inserida na conjuntura do discurso heterogêneo, inerente à tradução minorizante, porque a própria escolha de um texto estrangeiro para ser traduzido também pode evidenciar sua estrangeiridade, ao desafiar cânones domésticos para literaturas estrangeiras e estereótipos domésticos para culturas estrangeiras (VENUTI, 2002). Diante disso, o romance Alá e as crianças-soldados

parece obedecer ao que Venuti (2002) define como resistência cultural por meio da tradução, visto que foi escolhido uma obra e métodos tradutórios que se desviaram daqueles que são atualmente canônicos e dominantes (VENUTI, 2002).