• Nenhum resultado encontrado

4 UM OLHAR SOBRE O ROMANCE ALLAH N’EST PAS OBLIGÉ

4.1 A TRAJETÓRIA LITERÁRIA DE AHMADOU KOUROUMA

Quanto ao conjunto de produção literária de Ahmadou Kourouma, esse compreende cinco romances, uma peça de teatro e cinco obras de literatura infantil. Dos romances, quatro tiveram a primeira edição pela editora Seuil: Monnè, outrages et défis (1990), En attendant le vote des bêtes sauvages (1998), Allah n'est pas obligé (2000), Quand on refuse on dit non

(2004). Essa renomada editora, dotada de elevado capital simbólico, dado que inscrita no circuito letrado, foi fundada nos anos trinta do século XX. Embora atuando em diferentes domínios, a literatura estrangeira ocupa um lugar central na sua linha editorial. Com a renovação do seu catálogo, a Seuil tornou-se um pilar importante em relação à produção literária francófona. Alguns dos escritores africanos já publicados por essa editora foram: Mouloud Feraoun, Mohammed Dib, Kateb Yacine, Aimé Césaire, Léopold Sédar Senghor, Ahmadou Kourouma, Sony Labou Tansi, Tierno Monénembo, Tahar Ben Jelloun, Alain Mabanckou, entre outros.

Já o seu primeiro romance, Les soleils des indépedances, teve primeira edição em 1968, pela Presses de l'Université de Montréal. A peça de teatro, Le Diseur de vérité (1998), foi publicada pela Editions Acoria. Em relação às obras de literatura infantil, quatro foram publicadas pela Grandir: Le Griot, homme de paroles (1999), Le Chasseur, héros africain

(1999), Le Forgeron, homme de savoir (2000), Prince, Suzerain actif (2000) e uma pela Gallimard Jeunesse, Yacouba, chasseur africain (1998).

Um episódio marcante da carreira literária de Ahmadou Kourouma, que mostra quanto o campo literário deve ser compreendido através de suas relações com as esferas de poder que caracterizam as escolhas e a consagração das obras, foi a recusa por parte de várias editoras francesas em editar o seu primeiro romance Les soleils des indépedances. Por não ter tido a oportunidade de ter seu romance editado por uma editora parisiense, o escritor buscou, através de um concurso voltado para escritores francófonos, publicá-lo no Canadá. A recusa das instâncias francesas nos revela, entre outros aspectos, que a abertura à variação linguística e cultural da produção literária francofônica é, de maneira geral, uma realidade recente na França metropolitana.

Em entrevista à revista Notre librairie (n° 87, 1987), Ahmadou Kourouma explica que a obra só pôde entrar no mercado editorial canadense depois de atender a algumas alterações textuais exigidas pela editora:

(KOUROUMA) Eu enviei o texto a muitos editores e todos me enviaram uma resposta negativa. Somente um leitor de um editor parisiense me escreveu encorajando-me. Eu li, em seguida, num jornal que um prêmio da francofonia estava sendo organizado no Québec. Enviei o manuscrito. Eles me ajudaram a corrigir o texto e o livro foi publicado na Presses de l’Université de Montréal. A editora em seguida vendeu o manuscrito, por um preço simbólico de um franco, à editora Seuil.

(ENTREVISTADOR) Você afirma ter trabalhado o texto com a Presses de l’Université de Montréal, que modificações você realizou no seu texto inicial?

(KOUROUMA) Eles me pediram para suprimir o que eles consideravam como jornalismo e que, para mim, era essencial. O livro foi reduzido em mais de um terço porque havia muitas passagens políticas. Eu tinha escrito esse texto em um momento difícil e o rancor estava bem presente60

(NKASHAMA, 1997, p. 143-144, tradução nossa).

60

(KOUROUMA)J'ai envoyé le texte à beaucoup d'éditeurs qui tous me l'ont retourné. Seul (un) lecteur chez un éditeur parisien m'a écrit pour m'encourager. J'ai lu ensuite dans un journal qu'un prix de la francophonie était organisé au Québec. J'ai envoyé le manuscrit. Ils m'ont aidé à corriger le texte et le livre est paru aux Presses de l'Université de Montréal. Les Presses ont ensuite vendu le manuscrit, pour un franc symbolique, aux éditions du Seuil.

(ENQUÊTEUR) Vous dites avoir travaillé le texte avec les Presses de l'Université de Montréal, Quelles modifications avez-vous apportées à votre travail initial?

(KOUROUMA)Ils m'ont demandé de supprimer ce qu'ils considéraient comme du journalisme et qui, pour moi, était essentiel. Le livre a été réduit de plus d'un tiers car il y avait beaucoup de passages politiques. Je l'avais écrit à un moment difficile et la rancoeur n'en était pas absente. (NKASHAMA, 1997, p. 143-144).

Quando sabido que a versão modificada da editora canadense é menos denunciadora que a narrativa original, Bekkat (2015) questiona se, por estas razões, as editoras francesas recusaram o manuscrito inicial, julgando-o muito subversivo por questionar a Françafrique, ou foi por razões de estilo (BEKKAT, 2015). Essa indagação nos leva a crer que a exigência por modificações textuais pode ser interpretada como um exemplo da maneira etnocêntrica que os centros literários podem impor suas leis. Segundo Pascale Casanova (2002):

Para chegar ao reconhecimento literário, os escritores dominados devem portanto dobrar-se às normas decretadas universais justamente por aqueles que detêm o monopólio do universal. E sobretudo encontrar a "distância correta" que irá torná-los visíveis. Se querem ser percebidos, precisam produzir e exibir alguma diferença, mas não mostrar, nem reivindicar uma distância grande demais que também os tornaria imperceptíveis. Nem estar perto, nem longe demais. (CASANOVA, 2002, p. 197).

Diante desse tipo de mecanismo de anexação às categorias estéticas dos centros literários, Casanova afirma que a tradução é uma invenção diabólica, porque, em troca de reconhecimento literário, os detentores do monopólio do universal convocam os escritores a se dobrarem à sua lei (CASANOVA, 2002). Isso significa dizer que, para ter sua obra consagrada pelas instâncias consagradoras, é preciso solicitar um certo tipo de autorização para circular (CASANOVA, 2002). Na passagem abaixo, Pascale Casanova (2002) afirma:

[...] a tradução é também uma operação ambígua: meio de acesso à República das Letras oferecido pelas instâncias específicas e sua abertura constitutiva para a internacional literária, é igualmente um mecanismo de anexação sistemática às categorias estéticas centrais, fonte de desvios, de mal-entendidos, de contrassenso ou até de imposições autoritárias de sentido. O universal é de certa forma uma das invenções mais diabólicas do centro: em nome de uma negação da estrutura antagonista e hierárquica do mundo, sob o pretexto de igualdade de todos em literatura, os detentores do monopólio do universal convocam a humanidade inteira a se dobrar à sua lei. O universal é o que declaram adquirido e acessível a todos, contanto que se pareça com eles (CASANOVA, 2002, p. 194).

Uma vez com suas obras editadas por editoras parisienses renomadas, suas obras receberam diversos prêmios literários (Quadro 17) que podem ser vistos como o produto do valor literário que uma edição parisiense pode fornecer (CASANOVA, 2002). Para Casanova (2002), visto que os prêmios são o resultado de uma avaliação, um tipo de julgamento de importância, esse tipo de instâncias consagradoras agem como uma "espécie de metamorfose quase mágica que transforma um material comum em "ouro", em valor literário absoluto" (CASANOVA, 2002, p. 162).

Quadro 17 - Obras premiadas de Ahmadou Kourouma

Obra Prêmio Ano de primeira edição da

obra

Les soleils des indépendances Revue Études françaises61 1968 Monnè, outrages et défis Grand prix littéraire d'Afrique

noire62 1990

En attendant le vote des bêtes

sauvages Livre Inter

63

1999

Allah n'est pas obligé Renaudot64 2000

Allah n'est pas obligé Goncourt des Lycéens65 2000 Allah n'est pas obligé Amerigo-Vespucci66 2000

Conjunto de sua produção Jean-Giono67 2000

Fonte: Dados da Pesquisa, 2019.

Para além dessas edições francesas que atuaram como crédito de validação sobre a literariedade de suas obras, permitindo que elas circulassem sem atraso (CASANOVA, 2015), as traduções para outras dezesseis línguas também ajudaram a legitimar as suas produções, uma vez que a tradução é a grande instância de consagração, via de acesso principal ao universo literário para todos os escritores "excêntricos" (CASANOVA, 2002).

Apenas para citar algumas línguas na qual as obras de Kourouma já foram traduzidas: polonês (editora Państwowy Instytut Wydawniczy, 1995), alemão (Hammer Verlag, 1980; Knaus, 2002; Goldmann, 2004; Steinbach sprechende Bücher, 2007), inglês (Heinemann, 1980; Mercury House, 1993), neerlandês (Uitgeverij In de Knipscheer, 1986; Meulenhoff,

61 Fundada em 1955, a revista quebequense Études françaises publica estudos críticos e teóricos sobre literatura de língua francesa. Ela é voltada, sobretudo, às publicações de especialistas de literatura francesa e quebequense. Disponível em: http://www.pum.umontreal.ca/catalogue/revues/etudes-francaises Acesso em: 29 mar. 2018.

62 O prêmio francês Grand prix littéraire d'Afrique noire é concedido anualmente pela Associação de escritores de língua francesa desde 19 de julho de 1952. O objetivo desse prêmio é promover o trabalho de escritores que falam francês e que são oriundos da África subsaariana. Disponível em: <https://fr.wikipedia.org/wiki/Grand_prix_litt%C3%A9raire_d%27Afrique_noire>. Acesso em: 29 mar. 2018.

63 O prêmio francês da radio France Inter foi criado em 1975 e é atribuído uma vez por ano por um júri de 24 pessoas sob a presença de um escritor e críticos literários. Disponível em: https://fr.wikipedia.org/wiki/Prix_du_Livre_Inter Acesso em: 24 nov. 2018.

64 O prêmio Renaudot foi criado na França em 1926 por dez críticos literários enquanto esperavam o resultado das deliberações do júri do Prêmio Goncourt. É considerado o segundo prêmio mais importante em língua francesa. Disponível em: http://www.prix-litteraires.net/renaudot.php. Acesso em: 21 fev. 2015.

65

O Prix Goncourt des lycéens é um prêmio francês criado pela Fnac em 1988. Esse prêmio é o resultado da seleção de romances nomeados pela Academia Goncourt. Disponível em: http://www.prix-litteraires.net/renaudot.php. Acesso em: 21 fev. 2018.

66 O prêmio italiano Amerigo-Vespucci foi criado na década de 90 e procura recompensar obras ficcionais sobre viagens e terras pouco exploradas. O júri é composto de profissionais do livro como também de jornalistas. Disponível em: http://www.fig.saint-die-des-vosges.fr/litterature/prix-amerigo-vespucci Acesso em: 21 fev. 2018.

67 O prêmio francês Jean-Giono, criado na década de 90 pela mulher e pela filha do escritor francês Jean Giono, homenageia anualmente escritores de língua francesa que escrevem romances. Disponível em: http://bibliobs.nouvelobs.com/sur-le-sentier-des-prix/20130917.OBS7282/prix-jean-giono-2013-premiere liste.html Acesso em: 21 fev. 2018.

2001), dinamarquês (Tiden, 1989; Hjulet, 2005), italiano (Jaca books, 1996, 1999; Feltrinelli, 2006), croata (Clio, 2001), árabe (Dar Ward à Damas, 2001), espanhol (Muchnik Ed., 2001; El Aleph Ed., 2002; Zoela Ed., 2002), catalão (Edicions 62, 2001), finlandês (Tammi, 2002), sueco (Tranan, 2002; Papmosca, 2003), chinês (Da kuai wen hua, 2002; Bei cheng tu shu zong jing xiao, 2002), turco (Can Yainlari, 2002), japonês (Jinbun shoin, 2003), esloveno (Sanje, 2003), tcheco (Mladá fronta, 2003; Dauphin, 2005) (THIERRY, 2015).

Vale destacar ainda que, um ano após a morte do escritor, foi criado, em maio de 2004, o prêmio literário homônimo Ahmadou Kourouma, instituído pelo Salão Internacional do livro africano em Genebra (Suíça). Essa premiação visa a perpetuar a sua memória, ao distinguir romances ou ensaios sobre a África Negra68

.