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A INSPEÇÃO ESTATÍSTICA COMO FONTE DA HISTÓRIA

Tempo e espaço de ensino: o traçado do currículo (inspeção às escolas em

A INSPEÇÃO ESTATÍSTICA COMO FONTE DA HISTÓRIA

Sobre a trilha da estatística, adverte De Certeau, que “ela se contenta em classificar, calcular e tabular as unidades ‘léxicas’, de que se compõem essas trajetórias, mas às quais não se reduzem, e em fazê-lo em função de categorias e taxonomias que lhe são próprias. Ela consegue captar o material dessas práticas e não a sua forma; ela baliza os elementos utilizados e não o ‘fraseado’ devido à bricolagem, à inventividade ‘artesanal’, à discursividade que combinam estes elementos, todos recebidos, e de cor indefinida”139. A

partir de tal caracterização preliminar, o autor aponta para as limitações do trabalho estatístico quando aplicado à análise da vida cotidiana, dado que, por definição, tal empreendimento “perde aquilo que julga procurar e representar”, cabendo-lhe e sendo-lhe facultado exclusivamente o encontro das regularidades, das disposições homogêneas. Perde- se na operação a própria dinâmica que, em princípio, a conduz.

O presente capítulo abarcará o tema da inspeção às escolas, lidando com alguns

Relatórios de inspetores, entre as décadas de 50 e 70 do século XIX português. Na verdade,

pretendemos reconstruir, pelo crivo do discurso e dos levantamentos estatísticos que os dados da inspeção nos oferecem, alguns aspectos da vida cotidiana da escolarização primária, fundamentalmente em seus aspectos materiais. Pudemos assim averiguar o quanto a dinâmica do debate sobre a educação vinha ou não ancorada pelas práticas efetivas de sala de aula. Partimos da hipótese que, para se compreender o que de fato se realizava em cada classe, havia que se questionar de que se compunha aquele espaço físico, quais as condições materiais da aula, quais objetos constituíam seu mobiliário, quais os utensílios pedagógicos

344 utilizados, quais os personagens que atuavam naquele cenário, do qual, à distância, pretendíamos nos aproximar. Pudemos indagar quais o pontos de intersecção e quais as distâncias entre a escola dita e apregoada e a escola efetivamente vivida, fosse em termos dos procedimentos relativos à instrução propriamente dita, fosse no tangente aos castigos, às constrições, eventualmente às recompensas, ou fosse ainda no que concerne à interação que aquela vida escolar mantinha para a comunidade que a ela acorria. O que, de fato, as famílias esperavam da escola? Pela voz da inspeção, pudemos rastrear muitos dos indícios que o passado escolar nos legou. Para tanto, propusemo-nos a uma abordagem combinada entre os necessários aspectos quantitativos e a imprescindível interpretação qualitativa dos recortes de cotidianos pela estatística obtidos.

Ao tomar em mãos a documentação concernente aos registros de inspeção efetuados nos anos de 1867 e 1875 em todos os distritos do território português, optamos então por trabalhar o material recorrendo à estatística, ainda que não mantivéssemos quaisquer ilusões sobre a infundada pretensão de alcançar uma suposta totalidade, crença muitas vezes subjacente ao recurso a procedimentos quantitativos de investigação. Ao enveredar por tal opção metodológica, acreditamos que reconstituir alguns parâmetros médios da sala de aula portuguesa seria um caminho importante no encalço do cotidiano desta vida escolar. A estatística propicia a média, tal como esta pode ser depreendida das informações constantes dos Relatórios de inspeção. Ao fazer isso, evidentemente deixaremos de encontrar muito do que procurávamos, dado que a multiplicidade das salas de aula não se reconstrói facilmente. De qualquer maneira, os Relatórios, ainda que detalhados, não nos trazem de volta a dinâmica, o movimento, as vozes infantis ou o buliço de sala de aula, resgatando apenas as notas, por vezes, lacônicas, estanques, do modo pelo qual se pretendeu talvez contar à posteridade o modo de ser da escola primária à moda portuguesa. Procuramos decalcar dos dados contidos nos Relatórios (fundamentalmente o de 1867), algumas pistas, que possibilitem o cruzamento de informações mediante a utilização de fontes de outras origens, presentes neste trabalho.

Para melhor aproveitamento de nosso material primário, optamos por preliminarmente trazer alguns recortes, extraídos da coletânea organizada em 1984 por Joaquim Ferreira Gomes, que abarca - como consta do próprio título - os relatórios do Conselho Superior de Instrução Pública entre os anos 1844 e 1859. Com esta documentação, passamos a falar da materialidade da escolarização. A instrução primária é apresentada, já no

Relatório do ano letivo de 1844-1845, como a modalidade de ensino que mais interferirá na

felicidade dos povos, sendo, em sua própria essência, um gênero nacional, pelo fato de dispor o homem para os “ usos mais ordinários da vida”. Mesmo assim, reconhece-se que foi este ramo de ensino o último que entrou no quadro das preocupações do estado português, precedido que fôra pelo níveis secundário e superior140. No que dizia respeito à situação

140 “A instrução primária, apesar de ser a que influi mais diretamente na felicidade dos povos e que, por isso,

é denominada por excelência nacional, porque dispõe o homem para os usos mais ordinários da vida, foi contudo a última que entrou no quadro da administração do Estado. Quando já a secundária e superior se achavam contempladas na universidade, fundada pelo sr. D. Dinis, ainda a instrução primária andava abandonada aos cuidados dos particulares e pelos claustros dos cabidos e conventos, a quem o estado pagava, quando muito, alguma pensão para o sustento de alguma cadeira. Recebeu, porém, tal impulso do Decreto de 6 de Novembro de 1772 e seguintes, que não teve que invejar às nações civilizadas daquele tempo. Apesar disso, o sistema com que foi promovida ressentia-se principalmente, de dois defeitos que a experiência tornou sensíveis. A escolha de bons professores é condição indispensável para o progresso da instrução primária; porém, mal se poderá fazer essa escolha de professores, sem providências para os formar, e eram estas que faltavam naquele sistema. Além disso, era deficiente nos objetos de ensino, porque, limitando-se aos conhecimentos mais elementares e comuns, deixava incompleta a educação do povo e imperfeitos os conhecimentos necessários para os empregos mais ordinários da vida. Era portanto forçoso aos que os queriam completar recorrer aos estudos superiores, em que adquiriam hábitos e tendências que os desviavam da carreira que as suas circunstâncias lhes tinham marcado, lançando-os noutra, em que a maior parte não tinham, saída; e, por isso, sobrecarregavam o público de proletários e parasitas.”(RELATÓRIOS do Conselho Superior de Instrução Pública, p.26).

345 então reinante naquelas tardias escolas de instrução primária, os problemas da origem teriam sido agravados pelos elevados níveis de absenteísmo escolar, de crianças que principiavam a escolarização para depois abandoná-la, ou mesmo aquelas que, apoiadas por seus pais - ao desespero das doutrinas pedagógicas e dos discursos entusiastas - sequer adentravam o recinto escolar.