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BOM PROFESSOR: CRIATIVIDADE, IMAGINAÇÃO, HABILIDADE

O ritual escolar: entre vozes e versões (inspeção às escolas em 1875)

BOM PROFESSOR: CRIATIVIDADE, IMAGINAÇÃO, HABILIDADE

Havia, por parte de alguns inspetores, o reconhecimento da dificuldade material com que se defrontava um professor que, não raras vezes, dava tudo de si para proporcionar aos seus discípulos o melhor ensino de que era capaz. Faltava tudo na escola: bons recursos didáticos e habilitação técnica para bem aproveitar os que existiam. Faltavam livros, mapas, estampas e quadros de gravuras, não sendo raras as vezes em que o mestre improvisava essa

453 recorrência a estímulos visuais, chegando inclusive a arrancar folhas de compêndios para mostrá-las soltas a um grupo maior de alunos. Na freguesia da Sé de Évora, o professor Francisco Maria Monteiro fizera um quadro com páginas retiradas do Método Facílimo de Monteverde, como se essa improvisação do método fosse por si uma alternativa de projeção da estratégia possível perante a carência de instrumentos pedagógicos apropriados. Nos termos do inspetor, o resultado não havia sido, em hipótese alguma, bem sucedido - apesar de todo os esforços que o professor encetava para isso -, tão grande era a defasagem daquela escola quanto aos utensílios necessários para o bom ensino.

“Poucas aulas haverá nas condições desta, preparada de propósito para exercícios escolares pelo método de Lencastre bem como toda a mobília acomodada para aquele fim: - pena é que à Administração da Casa Pia não tenha presidido há anos um homem que se interessasse deveras pelo progresso da instrução dos alunos e dotasse a aula dos utensílios indispensáveis para a facilidade e proficuidade do ensino numa escola tão populosa; - nada há ali que fale aos olhos, que chame a atenção dos alunos, que os leve enfim a refletir sobre os objetos que os rodeiam; - assim o professor ser impossibilitado de poder dar lições em classes por falta de tabelas de leitura, de quadros pretos, de mapas, de estampas, de um bom contador mecânico, e de muitos outros objetos enfim que a pedagogia aconselha, vê-se obrigado a colar a uns quadros de madeira que ainda lhe restam folhas arrancadas ao Método Facílimo para poder formar alguns grupos. Para o sistema métrico nem tem quadros de pesos e medidas, nem coleções destes, como há em muitas escolas da

Estremadura. Para o ensino da geografia geral e particular do País, não tem mapas.” .228

O professor dessa escola era um homem de 50 anos que possuía, além do diploma de professor, aprovação em exame de latinidade. Com 20 anos de exercício na cadeira de instrução primária no magistério público, tinha capacidade literária bastante regular, embora lhe faltassem, aos olhos do inspetor, conhecimento e sagacidade quanto à metodologia do ensino. O inspetor chega a comentar que Francisco Maria Monteiro - o mestre da escola - não lia francês, o que o impedia de travar contato com os novos processos renovados e modos de ensino em voga nos países mais adiantados da Europa. Mesmo assim, o inspetor reconhece ser aquele professor o único da cidade de Évora que “tem apresentado todos os anos alunos habilitados nos exames de instrução primária de admissão aos liceus.” Isso intrigava o técnico da inspeção, posto que as condições objetivas da sala de aula daquele indivíduo não eram das melhores.

Na verdade, naquele específico ano letivo, o professor Monteiro contava com uma frequência regular - segundo ele - correspondente a 90 alunos. Pelo que o próprio inspetor confirmava, havia efetivamente mais de 90 crianças em sala de aula no dia de sua supervisão. Um único homem, sem bons monitores, sem qualquer outro professor com quem dividir o trabalho, evidentemente teria enorme dificuldade para liderar e grupo e ensinar. Era o que ocorria. Mesmo assim o professor adotava a tática de dedicar-se mais diretamente àqueles alunos que maior esperanças lhe traziam quanto ao aprendizado. Dizia o inspetor sobre a opção que fizera o professor Monteiro: “(...) vendo o professor a impossibilidade de levar toda a aula ao ponto que deseja, dedica-se com particular afinco àquela porção de alunos que maiores esperanças lhe fizeram conceber, e - força é confessá-lo - a ela sacrifica a máxima parte de seus discípulos.”

O bom professor era pois aquele que se valia bem dos insuficientes recursos materiais e científicos de que dispunha, revelando, nessa medida, criatividade, imaginação e

454 habilidade para convidar e incitar os alunos ao aprendizado, mantendo, com isso, uma regularidade na frequência e no afluxo dos estudantes à escola. O bom professor era, enfim, aquele que parecia colher o impossível das condições postas no limite do possível.

Havia um bom professor na escola primária do sexo masculino com sede no largo da Igreja na aldeia de Egreginha na freguesia de Nossa Senhora da Consolação do Concelho de Arraiolos no distrito de Évora. Bem situado para a afluência dos alunos, o edifício escolar pertencia à Junta de Paróquia, que, por sua vez, havia também ministrado a mobília e os utensílios escolares. O professor Manoel Joaquim Galvão, de 50 anos de idade, tinha 9 anos de serviço exercendo aquela cadeira no magistério público. No ano que se havia passado, entre 1873-74, de seus 43 alunos matriculados, menos de 30 tinham frequência regular, e, mesmo assim, nenhum deles foi considerado aprovado em exames finais na própria escola. Matricularam-se no ano letivo de 1874-75 33 alunos, dos quais só 10 frequentavam regularmente a escola diurna. Mesmo assim, este professor é saudado pelas dificuldades com que se defrontava e pelo modo de enfrentar as enormes adversidades de seu trabalho:

“Ver as dificuldades com que este professor luta e presenciar o trabalho insano a que se dá constantemente para aliviar a elas, não causa só admiração, enche de espanto. São os alunos filhos de criados dos lavradores circunvizinhos, que residem ou em Évora, ou em Arraiolos, portanto pobres; apresentam-se na aula sem livros - sem coisa nenhuma enfim que seja instrumento de ensino; a aula também os não tem, - como remediar isto?... faz o professor e tem sobre a mesa maços e maços de papeletas que dá aos alunos durante as horas da escola - umas de nomes - de máximas morais - de trechos copiados da Bíblia - outras de números - de regras de aritmética, outras, enfim, de preceitos gramaticais; é por estas papeletas que os alunos lêem e aprendem algumas regras. Que faria este professor em frente de uma aula bem provida de utensílios

escolares?”229

O inspetor António Pereira da Silva inspecionou oito alunos em sua visita de 5-5- 75. Desses, havia dois alunos considerados bons em todos os quesitos - Leitura, Aritmética, Doutrina Cristã -, exceto em Escrita, onde os oito foram efetivamente julgados medíocres. Sabe-se que a escola do século XIX , particularmente no período estudado, ainda ensinava habitualmente a leitura antes de proceder ao ensino da escrita. Não havia, portanto, correspondência entre o saber ler e o ser capaz de escrever. Cinco dentre os oito alunos nessa escola inspecionados sabiam ler, mas não eram capazes de escrever, dado que o tempo e as condições da escola não os teriam permitido alcançar esse estágio da aprendizagem. Suspeitamos que esse não era, em hipótese alguma, um caso isolado, até porque - lembre-se - encontramos depoimentos de pais que declaravam que, quando aprendessem a ler por livros, as crianças poderiam e deveriam deixar a vida escolar. A escrita não era tomada como uma necessidade tão relevante quanto a leitura. Curiosamente, os oito alunos da escola da aldeia de Egreginha, a despeito das dificuldades em Escrita, foram todos qualificados como bons em Doutrina Cristã. Em Aritmética, havia três bons, três suficientes e dois medíocres. Dividindo a aula em duas horas pela manhã acrescidas de outras duas horas e meia à tarde, o método do professor é o que aqui vinha designado de “rotineiro” e o modo de ensino variava entre o simultâneo (para a leitura) e o individual. Sobre o aproveitamento dos alunos, registre-se o seguinte:

229 MR 1072. Distrito: Évora. Concelho: Arraiolos. Freguesia: Nossa Senhora da Consolação, na aldeia da

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“Pelo que acima expus pode supor-se qual será o aproveitamento dos alunos, cuja frequência é irregularíssima, como o de todas as aulas desta aldeia, e desprovidos de todos os elementos do bom ensino. Há todavia nesta escola alunos que revelam muita inteligência e que em todas as disciplinas seriam distintos se o professor com sua diligência e trabalho pudesse suprir aquelas faltas: em Doutrina Cristã estão superiores aos de todas as escolas que tenho visitado, em leitura de letra manuscrita, a que estão mais habituados em virtude das papeletas de que falei, estão muito regulares, e em Aritmética - 1º classe - ler números - contar de cor - a fazer pequenas operações de somar, diminuir e multiplicar, muito exercitados. Enfim, no que depende só do professor, há razão bastante para dizer que em tais condições não se poderá fazer mais.”