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ESTÍMULO DO PROFESSOR E ÊXITO DO ALUNO: UMA VIA DE MÃO DUPLA

O ritual escolar: entre vozes e versões (inspeção às escolas em 1875)

ESTÍMULO DO PROFESSOR E ÊXITO DO ALUNO: UMA VIA DE MÃO DUPLA

Percebe-se pelos relatos que, a despeito da enorme variedade e dificuldades encontradas por aquele conjunto de escolas públicas portuguesas, havia algo de comum entre elas, nem que fosse apenas a delimitação de um espaço próprio para o aprendizado, muitas vezes em mal estado, é verdade, um tempo específico para a duração das lições, um profissional dotado de uma dada competência e autorização para o exercício de um ofício - ainda nem sempre a tempo inteiro, e a definição de um universo de saberes, ainda precários, mal estruturados e parcamente seriados, mas já postos como representantes de um fundo de cultura imprescindível à escola ou, por outras palavras, como conteúdos civilizatórios que a escola vinha paulatina e incessantemente elegendo como seus.233 Era uma rede pouco articulada, é verdade, não obstante ser evidenciada inclusivamente pela existência de um uniforme e padronizado Relatório de inspeção, fosse em termos do formulário adotado, fosse

232 O edifício da escola da freguesia da Ega no concelho de Condeixa pertencia ao próprio professor e, enquanto

casa de escola, era alugado à Câmara Municipal. Estava em bom estado de conservação, o que não ocorria com as mobílias e os utensílios escolares, que haviam sido também fornecidos pela Câmara. O professor - que habitava a casa da escola - tinha na época 40 anos, era secular, vitalício no cargo, com regular capacidade literária e aptidão para o ensino, porém pouco zeloso no cumprimento de suas funções. Aliás, o Relatório explicita tal juízo no item reservado às “observações gerais sobre o professor e o serviço escolar”: “Não encontrei o professor a reger a cadeira. Havia mais de um mês que ele abandonara a aula para ir ocupar o lugar de ajudante do Concervador em Tomar ou em Pombal, deixando a aula entregue ao pároco da freguesia que por obséquio tem dado lição aos alunos durante a ausência do professor, continuando este a receber o vencimento do estado e a gratificação da Câmara. Na ocasião da inspeção, recebeu o administrador do Concelho um ofício do professor em que lhe dizia que, por motivo de doença grave de duas pessoas da sua família, não lhe era possível ir assistir à visita que eu ia fazer à escola.” (MR 1071. Distrito: Coimbra. Concelho: Condeixa. Freguesia: Ega)

233 Indicamos a esse respeito o trabalho - A cultura escolar como objeto histórico - apresentado por Dominique

Julia no XVº ISCHE, em Lisboa, no mês de Julho de 1993, a cujo manuscrito pudemos ter acesso através da Professora Dra. Marta Maria Chagas de Carvalho, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. A referida pesquisadora, por sua vez, já trabalhava a idéia da escola como uma forma/ fôrma de civismo e disciplina, em seu trabalho de doutorado defendido na FEUSP em 1986: Molde nacional e fôrma cívica.

458 no tocante à própria representação de uma idéia já introjetada de modo centralizado e homogêneo quanto ao lugar dos inspetores como aferidores do rendimento docente.

A escola que se desenhava naquele Portugal do passado século era, até certo ponto, bastante distinta das ambições preconizadas pelos discursos políticos e intelectuais a respeito dos presumidos efeitos dessa multiplicação da cultura letrada.234 Cabe indagar, inclusive, até que ponto aquela escolarização em curso realmente espraiva os códigos de cultura, ou se, pelo contrário, ao reafirmar seus segredos sem ser capaz de desvendá-los, ela não estaria - quem sabe - talvez afastando as populações do potencial mobilizador da leitura. Indagar sobre a composição desse cotidiano exige da investigação perscrutar os interiores mais secretos da instituição que lhe dá vida... Urgia encontrar e identificar naquela “fôrma escolar” aparentemente tão uniforme aquilo que, enquanto traços e sinais da vida institucional, efetivamente pudesse soar diferente.235A escola com que trabalhamos deixou sinais fortuitos aos quais podemos conferir significado. Regressar a eles parece ser, ainda, a única condição de confrontar suspeitas sociológicas com ocorrências da história. Em um tempo que nos foi legado apenas pelo fragmento, parece-nos essencial voltar a olhar... No parecer do inspetor de Évora, por exemplo, o professor que cumpria horários, que se esforçava por manter a ordem e a disciplina da vida escolar, esse sim - a despeito das incapacidades científicas e literárias - atenderia os reclamos da didática.

O edifício da escola primária mista com sede no Terreiro do Castelo na aldeia de Monte de Trigo na freguesia de São Julião no Concelho de Portel, situado no distrito de Évora, pertencia à Junta de Paróquia, que o havia expressamente mandado fazer para servir como escola. Como mobília, a casa contava com uma banca, quatro bancos grandes e cinco pequenos, um quadro preto pertencente à escola e um contador mecânico feito pelo professor. Como declara o inspetor, o espaço físico utilizado pela escola abarcava o aproveitamento feito pela própria Junta de Paróquia de uns casarões que careciam de boas condições de luz e de ventilação, mas, em termos de sua área, era suficientemente amplo para atender ao número de alunos que regularmente comparecia às aulas.

234 Ao abordar o tema da alfabetização, Graff, como vimos, descreve como mitos os efeitos presumidos dessa

transmissão letrada da cultura. A esse respeito, esse autor norte americano atenta para o fato de que, ao contrário do que se poderia à primeira vista supor, as relações da classe trabalhadora com o mundo da escola não eram, de

modo algum, condicionadas por qualquer expectativa de mudança. Nos termos de Graff: “ Essa aquisição de

alguma alfabetização e escolarização, no entanto, frequentemente não mudava suas vidas ou suas mentes, apesar dos prognósticos dos teóricos sociais e psicólogos sobre os impactos ‘modernizantes’ e ‘transformadores’ da alfabetização. Em vez disso, ela era mais frequentemente um processo cultural que reforçava suas posições calma e subserviente nas hierarquias classista, social e econômica e, assim, ensinava a muitos uma medida justa de aceitação de sua condição. Para a maior parte, as expectativas não eram esperanças de melhoria ou mobilidade de si mesmos ou dos filhos. Ao contrário, o oposto era verdadeiro: esperanças não eram criadas, a estabilidade era amplamente mantida, pouco respeito pela aprendizagem ou os instrumentos para ela eram obtidos, e a aceitação do status quo era enfatizada. Estas eram as bases morais da alfabetização: a moralidade social, a mensagem que acompanhava os processos de aprendizagem do ler e escrever e que constituíam a transmissão da hegemonia cultural.” (Harvey J. GRAFF, Os labirintos da alfabetização, p. 282).

235 O trabalho de Guy VINCENT, intitulado L’éducatíon prisonnière de la forme scolaire: scolarisation et

socialisation dans les sociétés industrielles empresta de Merleau-Ponty e da teoria da Gestalt a noção de forma para adequá-la ao tema da escola, enquanto objeto e prática socialmente e históricamente instituídos. A inteligibilidade de uma dada forma estaria posta, assim, na adequação de seu funcionamento a regras arbitrárias e supra-pessoais. A escola, ao delimitar para seus estudantes e seus profissionais espaço e tempo definidos, ao estabelecer o escrito como o modo autorizado de travar relações sociais, teria se organizado a si própria mediante normas homogêneas e constantes que podem ser reconhecidas como paradigmas dessa ordem

escolarizada que modela as sociedades contemporâneas. “A escola como local específico, separado de outras

práticas sociais ( práticas de exercício de um ofício em particular ), é ligada à existência de saberes objetivados (...) Com a generalização das culturas escritas no campo de práticas heterogêneas, a escola torna-se lugar cada vez mais central, a ponto de ser passagem obrigatória para um número cada vez maior de seres sociais que se destinam a tipos de atividades e de posições sociais bastante diferentes.” (G. VINCENT, op. cit., p. 30).

459 O professor, José Pedro Barbosa, secular de 49 anos, embora considerado medíocre quanto à sua capacidade literária, revelava desejo de instruir e, portanto, contava - de acordo com o ponto de vista da inspeção - com aptidão para o ensino. O método simultâneo era por ele utilizado apenas para exercícios de leitura, sendo individualizado o processo de aprendizado nas restantes matérias. Como castigo, ele punha os alunos em pé, mudava-os de lugar, aplicava-lhes palmatoadas. Em termos dos compêndios utilizados, valia- se da carta de sílabas, do Methodo facillimo, do Manual Enciclopédico, do Sistema legal de pesos e medidas de Fradesso da Silveira, do Cathecismo de Montpellier. O inspetor não pôde fazer qualquer apreciação comparativa com o ano letivo anterior, pelo fato de aquele professor encontrar-se na referida escola há apenas nove meses. Dos 32 alunos e 14 alunas matriculadas na escola, eram 24 os meninos e 7 as meninas que efetivamente compareciam às aulas de modo regular. Pela descrição oferecida no Relatório, não é negativa a apreciação efetuada dos méritos didáticos desse profissional do magistério público:

“Se este professor juntasse o saber à honradez, ao zelo e ao empenho que põe em cumprir as obrigações do seu cargo, não acharia professor que o igualasse. À falta porém de quem o encaminhe e lhe dê conhecimento de melhores processos de ensino, faz com que não seja maior o fruto de seu trabalho: é pontualíssimo à hora da aula e antes de para ali ir dá uma volta pela aldeia levando diante de si os alunos, indo buscar outros à casa, chamando-os, pedindo aos pais que pelo menos dispensem os filhos por uma hora, enfim, faz tudo (...) para que a sua aula seja mui concorrida: admitiu, logo que tomou posse da cadeira, algumas meninas que tem na aula ao seu lado dirigidas em parte por uma sua filha de 16 anos; tem hoje matriculadas 14, número que tende a aumentar. Finalmente, o Prior, homem que merece toda a confiança, louvando o procedimento deste professor, afirma que se conhece uma grande diferença para melhor nos rapazes da aldeia

desde a entrada do professor, mais tratáveis e mais civilizados.” 236

Nessa dimensão, aliás, poder-se-ia inferir o quanto a atitude do professor para com seus alunos em sala de aula era percebida como fator determinante do sucesso escolar. O amor ou a rejeição que os estudantes sentiriam à vida escolar em muito dependeria - na suposição dos contemporâneos - do modo perante o qual o professor apresentava o lugar social daqueles conhecimentos expressos em classe. Pelo próprio encadeamento do relato, nota-se o quanto o estímulo do professor era apreendido como remarcada sinalização do apego ao estudo por parte daqueles que, ao fim e ao cabo, enquanto discípulos, procurariam copiar seu entusiasmo, procurariam seguir seu exemplo:

“A frequência desta escola seria quase nula, como era antes da vinda deste professor, se não foram os esforços deste, nos quais só escapam os que pelos pais são levados ou mandados para os campos. No dizer da gente da localidade, nunca a escola foi tão concorrida; por isto se vê quão difícil é levar o povo das aldeias a compreender que a instrução de um filho vale bem o sacrifício de um pequeno cômodo como (...) o de ir levar o almoço ou jantar ao pai, serviço que a mãe bem poderá fazer muitas vezes; de modo que o aparecerem na escola 16 ou 20 crianças tem, numa povoação como esta, de chamar-se boa frequência. O aproveitamento dos alunos atuais é pouco, mas sendo certo que há dez meses ainda nada sabiam, e atenta a maneira que o professor usa em

236 MR 1072. Distrito: Évora. Concelho: Portel. Freguesia: São Julião. Escola primária mista com sede no

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seu ensino, necessariamente muito morosa, não pode dizer-se que é tão pouco como a respeito de outras já disse, mormente vendo que a diligência do professor faz esperar melhor futuro, embora não possa ir mais além do ler, escrever e contar.”

Nota-se que os frutos notados pelo Prior, a propósito dos efeitos da escolarização, eram, antes de tudo, mudanças atitudinais, hábitos de afabilidade e disciplina. Seriam esses os indicadores de um professor bom? Diz o Relatório que a população não identificava os benefícios da instrução e que um bom professor como aquele os apregoava a viva voz, chegando a buscar em casa crianças que, se fossem à escola, apenas deixariam, por algumas horas, de ‘servir’ o espaço doméstico. A criança portuguesa era tida como um precoce trabalhador que, ao ser furtado pela escola, deixaria de cumprir um conjunto de obrigações que a família lhe reservara.237 No parecer de Guy Vincent, a forma escolar esboçada entre os séculos XVI e XVII e efetivada fundamentalmente pelo século XIX coincidiria com a redistribuição dos próprios espaços de poder dentro das sociedades européias de então, através da consolidação da vida urbana e da rearticulação entre os poderes civis e religiosos. Diríamos, por acréscimo, que essa forma escolar tem, ainda, o componente de readequar as funções educativas, cindindo e fraturando os espaços da vida familiar, para proceder à estruturação do lugar social ocupado por outras instituições educativas, nomeadamente a escola. Vale recordar, a esse respeito, que os autores tendem a identificar o problema social da escolarização, antes de qualquer outra coisa, com a constituição de um modo específico de socialização (valorizado ou não pelos grupos dirigentes), no qual haveria todo um conjunto de regras e prescrições impessoais e anônimas que ditariam lugares, espaços e condutas. Aprender as relações de mando e de subordinação seria um dos efeitos desejados para a intitucionalização burguesa desse ritual de escola. Disciplinar os atores sociais que eram ali envolvidos também fazia parte do currículo não manifesto da vida escolar. Mas, em Portugal, a escola da qual se projetava a fôrma, ainda não estava, em hipótese alguma, pronta...

237 Nunca é demais recordar os termos do pioneiro trabalho de Philippe Ariès acerca das intrincadas relações

entre família e escola desde a alvorada da sociedade capitalista: “A partir do século XV, as realidades e os

sentimentos da família se transformariam: uma revolução profunda e lenta, mal percebida tanto pelos contemporâneos como pelos historiadores, é difícil de reconhecer. E, no entanto, o fato essencial é bastante evidente: a extensão da frequência escolar. Vimos que na Idade Média a educação das crianças era garantida pela aprendizagem junto aos adultos, e que, a partir dos 7 anos, as crianças viviam com uma outra família que não a sua. Dessa época em diante, ao contrário, a educação passou a ser fornecida cada vez mais pela escola. A escola deixou de ser reservada aos clérigos para se tornar o instrumento normal da iniciação social, da passagem do estado de infância ao de adulto.” (P. ARIÈS, História social da criança e da família, p. 231). A propósito do tema, Ariès estabelece ainda uma linha de homologia histórica entre o sentimento de classe, o sentimento de raça e o sentimento de família, como representantes, todos eles, de uma mesma obsessão com a uniformidade, sendo que esta, por sua vez, teria sido engendrada enquanto efeito social do medo da multidão. O refluxo da sociabilidade, bem como os progressos dessa intimidade conquistados pela nuclearização da família, teriam como correlato o surgimento do espaço escolar, como um espaço eminentemente pedagógico; ali, onde haveria o ato de transferência de parcela educativa do poder da família e da sociedade como um todo para essa outra instituição que, com sua função moralizadora e normatizadora, era nova e oriunda da modernidade: a escola.