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MODOS E MANEIRAS DE INSPECIONAR ALUNOS E PROFESSORES

O ritual escolar: entre vozes e versões (inspeção às escolas em 1875)

MODOS E MANEIRAS DE INSPECIONAR ALUNOS E PROFESSORES

No que diz respeito aos livros escolares, a inspeção efetuada no ano de 1875 permitiu um questionamento mais espontâneo do que a de 1867. Aqui (1875), indagava-se apenas “Quais os compêndios mais usados na escola?”, sem qualquer indicação quanto àqueles que eventualmente eram os que mais apareciam. Recorde-se que a inspeção de 1867, pelo contrário, indicava alguns poucos compêndios que vinham já copiados no impresso a ser preenchido, o qual, aliás, tinha por enunciado, como já pudemos anteriormente observar, o seguinte: “livros usados pelos alunos com declaração do número de alunos que usam deles”. As obras que já vinham no formulário evidentemente revelavam uma tendência, mas, indubitavelmente, em termos metodológicos, representariam um direcionamento da espontaneidade do professor e mesmo do inspetor. Como esse mecanismo constritivo não aparecia no Relatório de 1875, e, pelo fato de se solicitar agora os compêndios utilizados na escola, sem vinculá-los a qualquer posse dos alunos, julgamos que os dados de 1875, especificamente a esse respeito, podem ser mais fidedignos dos que os que relatamos anteriormente acerca da inspeção efetuada em 1867.

Por sua vez, a análise efetuada para o ano de 1875, com exceção da questão dos livros escolares, não corresponde a uma abordagem estatística, posto que esta inclusive já foi feita por António Nóvoa. Procuramos os relatos, a voz do inspetor e centramo-nos basicamente em algumas regiões bastante circunscritas, de maneira a estabelecer o diálogo entre a escola e seus autores, de maneira a reconstituir o itinerário de uma vida de escola que não coincide exatamente com o que se dizia dela, o que dificulta talvez o encontro de universais teorias explicativas e que nos confunde por fazer confluir aspectos à primeira vista contraditórios. Pensar a escola do ponto de vista da história é necessariamente contar uma história; ou várias, e procurar, pela materialidade intrínseca ao relato, afastar-se da sedução do pressuposto. Coimbra 11.1% C. Branco 33.3% V. Real 16.7% Braga 33.3% Santarém 5.6%

443 Assim como se fazia em 1867, o texto impresso do Relatório enviado em 1875 para efeito de inspeção às escolas públicas versava sobre aspectos concernentes ao edifício da escola, ao mobiliário, à ventilação e à adequação ou não do espaço físico para o funcionamento escolar. Questionava-se acerca do estado de conservação material da escola e das condições morais e pedagógicas. Indagava-se ainda sobre a capacidade física da sala de aula e sobre a ventilação, a luz e as condições higiênicas. Outras informações suplementares deveriam vir contidas no preenchimento do impresso:

Existência ou não de habitação do professor no edifício escolar; Estado da mobília e sua adequação para as finalidades da instrução;

Recebimento ou não, por parte dos alunos, de papel , de tintas e de penas, entregues pela própria escola;

Oferecimento ou não, por parte da escola, de outros subsídios, tais como livros escolares ou vestuário, para seus estudantes;

Existência ou não de biblioteca popular na localidade onde funciona a escola ou no próprio edifício escolar;

Existência de catálogo de livros pertencentes à biblioteca, onde essa existisse;

Ocorrência de leituras públicas por parte do professor ou de outras pessoas da região e os resultados colhidos por essa prática;

Por fim, indagava-se se havia, no local da escola, comissão promotora do ensino primário.

Na sequência do formulário, vinha um espaço de linhas em branco acompanhado pelo seguinte enunciado: “Observações gerais acerca do edifício, da mobília e utensílios escolares.” Ali previa-se que o inspetor discorresse, de modo mais espontâneo, a respeito do que pudera observar na visita à escola. A seguir, vinham as informações relativas ao professor e ao serviço escolar: nome, estado civil, idade, estado físico, regime de trabalho, tempo de serviço no magistério público e na respectiva cadeira, comporamento moral e civil, eram quesitos que, no conjunto, antecediam os critérios de avaliação (como distinta, regular ou medíocre) sobre a formação literária do professor e sua aptidão para o ensino. As respostas deveriam ser aqui, pelo pequeno espaço reservado no impresso, curtas, sintéticas e objetivas, e as questões eram variadas o suficiente para permanecerem basicamente as mesmas daquele modelo de 1867, anteriormente analisado.

Indagava-se se o professor regia a cadeira com zelo e assiduidade, se era capaz de manter a disciplina na escola, se exercia outra profissão estranha ao magistério ou se proferia lições particulares. Outro item relevante procurava aferir os modos de ensino adotados na vida escolar e o método utilizado pelo professor para cada uma das disciplinas sob sua responsabilidade. Questionava-se a existência ou não de programas organizados pelo professor e as disciplinas que estes eventualmente compreendiam. Finalmente, a propósito desse item relativo ao trabalho docente, solicitavam-se informações acerca dos compêndios mais usados na escola, dos registros de matrícula, de faltas e de aproveitamento dos alunos, dos castigos que o professor costumava aplicar a seus discípulos, das eventuais recompensas e dos exames.

Eram, como pudemos verificar, basicamente as mesmas questões, colocadas talvez de modo a possibilitar maior recorrência à dissertação e à análise, sem excessiva preocupação quanto ao cômputo numérico que, no caso de 1867, predominava no roteiro do formulário. Na verdade, uma abordagem qualitativa era efetivamente incentivada por parte da própria confecção prevista para o relato do inspetor, posto que, a partir de todos os quesitos

444 colocados para aferir a condição do professor, havia no final um outro espaço de linhas brancas reservado para “Observações gerais sobre o professor e o serviço escolar”.

O último aspecto que se procurava apreender correspondia ao problema específico dos alunos, o movimento deles em termos da comparação entre os registros da matrícula efetuados e a regularidade da frequência escolar. O Relatório compreendia ainda o preenchimento de três mapas específicos sobre a questão dos alunos. O primeiro dizia respeito a uma análise retrospectiva da relação entre alunos matriculados, os de frequência regular e os prontos no fim do ano letivo anterior, de 1873-1874, aferindo também quantos daquele conjunto teriam sido aprovados em exames finais nas próprias escolas e quantos deles teriam sido aprovados em exames de admissão perante algum liceu. O segundo mapa supunha a distribuição, tanto dos alunos que frequentam a escola quanto daqueles que efetivamente lá estavam no dia da inspeção, em termos de disciplinas e de classes a que pertenciam. Finalmente, o último mapa compreendia a avaliação propriamente dita dos alunos inspecionados, de acordo com os níveis que houvessem obtido nas diversas disciplinas, a saber: Leitura, Escrita, Aritmética, Sistema Métrico, Gramática, Doutrina Cristã, Corografia, História Pátria e Desenho. Com sua preocupação descritiva, o Relatório abarcava ainda um último espaço com linhas brancas, para o preenchimento livre do inspetor, onde ficassem registradas suas “Observações gerais sobre a frequência escolar e aproveitamento dos alunos”216 Sem dúvida alguma, era substantivamente através dessas linhas brancas do

Relatório impresso que nós pudemos obter as mais preciosas pistas a respeito daquela tão

fugidia sensibilidade cotidiana, que parece sempre querer escapar e se apagar dos olhares curiosos do observador..

Situada na freguesia de Trouxemil, do concelho de Coimbra, havia uma escola mantida pelo Estado, sob responsabilidade do professor José Augusto Mendes Diniz, secular, de 40 anos de idade. Em relação à casa escolar, o edifício da escola, pertencente à Junta de Paróquia, era considerado bem situado para a afluência dos alunos, bem conservado e com boas condições morais e pedagógicas. Comportando até 40 alunos para a aula principal, o prédio da escola teria, ainda, boas condições higiênicas, luz e ventilação suficientes. A mobília e os utensílios da escola eram adequados e em boa quantidade para o número de alunos que frequentavam as aulas. Oferecido parcialmente pela Câmara Municipal e pela Junta de Paróquia, o mobiliário encontrar-se-ia, porém, em sofrível estado, segundo consta dos termos do Relatório.

O professor dispunha de bom estado físico e teria habilitações nas áreas de Francês, Latim, Lógica e Retórica. Vitalício no cargo, exercia o magistério público há já 16 anos, estando naquela cadeira de instrução primária há 7. Embora sua capacidade literária, bem como a aptidão que demonstrava para o ensino, fossem qualificadas de regulares, seu comportamento moral e civil é qualificado de medíocre por parte do Relatório da inspeção de 1875. O mapa estatístico concernente à frequência dos alunos no ano letivo de 1873-1874 revela que, dentre um total de 35 alunos matriculados (16 menores de 10 anos; 15 entre 10 e 12 anos; 4 entre 12 e 14 anos), apenas 12 possuíam frequência regular, entendendo-se isso pelo comparecimento a pelo menos metade das aulas ministradas.

O Relatório destaca a falta de zelo e de assiduidade do professor, que ministraria uma única lição diurna por pouco mais de duas horas, havendo, sem autorização, suprimido a

216 MR 1072. (livro do Ministério do Reino). Inspecção das escolas públicas e particulares do distrito de Évora.

Quesitos aos inspetores das escolas primárias mantidas pelo Estado. 1875. Procuramos estudar, em termos qualitativos, alguns desses relatórios, escolhidos praticamente ao acaso, observando porém o preenchimento dessas observações facultativas ao inspetor que, em muitos casos, permancia em branco, sem que o inspetor expusesse efetivamente um parecer mais específico sobre cada uma das escolas em particular. Veremos que, nas páginas seguintes, os relatos que nos permitimos efetuar fundamentalmente com as considerações literalmente expressas no Relatório podem ser compreendidos como uma micro historieta dessa rotineira e esfumaçada atmosfera cotidiana da escolarização portuguesa naquele final de século XIX.

445 outra. Não haveria, tampouco, programas organizados pelo professor, sendo irregulares os registros de matrículas, de faltas e de aproveitamento dos alunos. Os compêndios mais utilizados na escola seriam, tal como consta do Relatório, os seguintes: “Monteverde217,

Cathecismo da doutrina christã da escola popular, Bíblia da infância, Manual encyclopedico, Sistema métrico do Augusto Moura e Taboada do mesmo.” No tocante aos castigos comumente aplicados às crianças, o Relatório considera-os “morais e físicos e [o professor] é demasiado rigoroso na aplicação destes.” Julgando insuficiente o aproveitamento dos alunos às aulas daquele professor, o inspetor pondera as razões, culpabiliza o “desleixo do professor” como provável causa, e tece, além disso, outras considerações reveladoras de seu parecer sobre o estado pedagógico da referida escola:

“O professor não tem simpatias na localidade; pelo contrário, é muito mal visto, a ponto de os pais não quererem que seus filhos sejam ensinados por ele e alguns os mandaram às escolas (...) que ficam distantes. É exagerado na aplicação dos castigos e disto me fizeram queixa na ocasião da visita. Advertindo-o de que não devia alterar as horas das aulas, e muito menos dar só uma lição por dia sem ter para isso autorização superior, respondeu-me que podia bem com a responsabilidade de tais atos porque não precisava do magistério público para viver e que unicamente pretendia ser professor mais três anos para completar os vinte de serviço. Em vista de tudo isto, procedi na administração do Concelho de Coimbra a sumário de testemunhas escolhidas entre as pessoas mais autorizadas do sítio e o remeti ao Exmo. Sr. Governador Civil para dar o

competente andamento.” 218