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A COMPOSIÇÃO DOS SABERES ESCOLARES SOB O SIGNO DA MEMÓRIA

O professor régio Jacob Lopes d’Almeida escreveu em Novembro de 1826 um regulamento para ser adotado em suas aulas de modo que seus discípulos viessem a utilizá- lo, a respeitá-lo, a segui-lo, tendo em vista o pleno cumprimento das orientações e das regras escolares. Com a frequente leitura para os alunos das prescrições contidas no regulamento, o professor supunha que o trabalho escolar viria naturalmente a se organizar com maior eficácia e que os possíveis castigos por não cumprimento das normas poderiam vir, consequentemente, a diminuir, visto que os interessados teriam mais elementos para recordar, de modo sistemático, o rol de deveres que regia o dia-a-dia da escola. Tratava-se na verdade, de uma tentativa sistematizada por parte do docente no sentido de povoar o cotidiano escolar de um conjunto de ritos e de símbolos distribuídos ordenadamente pelo tempo e pelos horários, o que agiria no sentido de criar uma rotina capaz de dar o tom das atividades e da utilização orgânica do espaço e do tempo escolar. A busca pelo ensino simultâneo parecia também ser perseguida por esse professor. Poderíamos suspeitar da existência de uma intenção normativa nessa procura de conferir ao cotidiano uma regularidade sistêmica.94

A escola deveria ser aberta no verão às 7 da manhã e à tarde às 3. No inverno, a abertura da escola ocorreria às 8 pela manhã e às 2 da tarde. Todo o estudante que não chegasse nesse horário estabelecido receberia 2 palmatoadas.

impostas do exterior, primeiro pela Igreja, depois pelo Estado, instituições mediadoras das relações internas e externas da profissão docente. E, no entanto, é incontestável que os professores integraram este discurso, transformando-o num objeto próprio. (...) Simultaneamente com este duplo trabalho de produção de um corpo de saberes e de um sistema normativo, os professores têm uma presença cada vez mais ativa (e intensa) no terreno educacional: o aperfeiçoamento dos instrumentos e das técnicas pedagógicas, a introdução de novos métodos de ensino e o alargamento dos currículos escolares dificultam o exercício do ensino como atividade secundária ou acessória. O trabalho docente diferencia-se como ‘conjunto de práticas’, tornando-se assunto de especialistas, que são chamados a consagrar-lhes mais tempo e energia” (António M.S.S. da Nóvoa, História da educação, p. 203).

94 Este regulamento para a escola primária de Guardão foi transcrito por Luís Albuquerque em seu trabalho

Notas para a história do ensino em Portugal, p. 267. Albuquerque, entretanto, limitou-se a transcrever alguns trechos do dito regulamento ao qual pudemos ter acesso no setor de reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Como não houve, pelo referido autor, além da transcrição incompleta do documento, qualquer esforço interpretativo, optamos por retomá-lo aqui, tendo em vista apreender certas tendências que ali aparecem quanto à codificação do que os autores denominam ‘gramática’ ou ‘forma escolar’.

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“Os que vierem antes daquele tempo nunca se aproximarão da Escola sem que o Professor dê sinal de que são chegadas as horas para nela deverem entrar; e se fora estiverem fazendo gritarias, algazarras, ou outras ações indignas, que mostram o pouco respeito que têm ao Mestre - o qual devem supor que os está ouvindo e vigiando - e que também não receiam o castigo o terão de 3 palmatoadas. Quando entrarem na Escola, ou saírem dela, o farão 2 a 2, e nunca de montão nem encontrando-se uns aos outros; ao primeiro passo que puserem dentro dela dirão em voz que bem se ouça seja com a cabeça descoberta e o chapéu na mão direita caído pela perna do mesmo lado: ‘Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo’. E assim mesmo, 2 a 2, chegarão respeitosamente a seu Mestre, a quem saudarão, com os bons dias, sendo de manhã, e depois do jantar com as boas tardes, e tendo ele recebido a benção com a cabeça um pouco inclinada, irão com o mesmo sossego, tomar os seus lugares, assentando-se em boa figura, corpo direito e pés bem postos, e principiarão a estudar sem que lhes importe mais nada; o que faltar a isto tem a pena de 2

palmatoadas.”95

O professor entendia que a principal obrigação posta para os educadores da infância e da juventude era instruir a mocidade nas máximas religiosas e em tudo o que fosse relativo ao culto de Deus e à salvação da alma. Para essa meta, os alunos eram ordenados a se confessar periodicamente - ao menos de 2 em 2 meses - e a apresentar à escola declaração comprobátoria redigida pelo sacerdote, assegurando a confissão. Quem não cumprisse esse dever, deveria, como castigo, sentar-se no chão por 3 dias, além de ‘6 grandes palmatoadas’. Era também expressamentee proibido aos alunos subirem à torre para tocar o sino da igreja, nas festas ou em qualquer ocasião. Tal atitude seria considerada grave contravenção e estaria sujeita por tal razão a ser punida com 2 palmatoadas. Entrar na Igreja exigiria, por sua vez, o cumprimento de um dado ritual de devoção, que passava pelo toque da água benta, levemente, sem desperdício, sem jogá-la no chão, mas feito de modo sereno, com as pontas dos dedos da mão direita. Depois, o estudante deveria seguir com a cabeça inclinada para dirigir-se em direção do altar, para ajoelhar-se e rezar o ato de contrição, bem como outras orações. Faltar com esse cerimonial produziria pena de 4 palmatoadas.96

Percebe-se que toda a orientação parte da pressuposição de que os delitos nomeados efetivamente ocorriam e faziam parte do universo de tentações do qual a criança

95 Coleção de Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, códice 2523, documento nº22.

96 O regulamento, sobre a prática religiosa, prescreve ainda o seguinte: “Logo que se entra em qualquer

Templo, que é a casa do Senhor, e só destinada para a Oração; todo o católico se deve deixar possuir de um santo temor e respeito, e não praticar ali ação ou proferir palavra alguma que sejam impróprias de tão augusto lugar; sem se divertir, olhar ou distrair, com o que praticam os ímpios, que não têm religião nem temem a Deus. Os meus estudantes são obrigados rigorosamente a observar este artigo, e o que assim o não fizer tem a pena de 6 palmatoadas e uma semana de pé dentro da Escola. N.B. O mesmo castigo por metade terá todo o que brincar no adro. No SacroSanto sacrifício da Missa estarão sempre com a maior reverência, olhando e atendendo muito sem nunca se distraírem com coisa alguma, para todas as ações que faz o sacerdote que está ali, renovando os martírios dolorosos, paixão e morte de cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, que desce às suas mãos depois da Consagração em Corpo, Alma e Divindade, e com toda a Magestade como está nos Altos Céus. Em todo o tempo deste Augusto Sacrifício estarão de joelhos sempre, menos ao Evangelho (...). a razão por que se devem levantar enquanto se diz o Evangelho é para mostrar que estão prontos a observar e cumprir tudo quanto ali se diz: antigamente os militares lançavam a mão à Espada e a conservavam até que se acabasse. Tanto a Missa como em qualquer outra função, aonde o Mestre assistir, se devem comportar em tudo da maneira que lh’o virem fazer, e nunca de outra forma. O que assim não obrar tem a pena de 3 dias de pé na Escola e 4 grandes palmatoadas.” (Coleção de Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, códice 2532, documento nº 22) Além disso, os discípulos eram obrigados a levarem à escola as ‘Contas de Nossa Senhora’ e de rezarem por elas pelo menos uma vez por dia. Deveriam também ir à Missa todos os domingos e às festividades da Igreja, a não ser que desejassem permanecer em pé

por toda a semana na escola. “N.B. Recomendo que façam muito por ouvirem Missa em todos os dias da

Semana pelas Almas do Purgatório, que se assim o fizerem Deus os felicitará nesta e na outra vida, e com muita facilidade aprenderão as suas lições.” (Id. Ibid.)

310 deveria continuamente estar a fugir. A distração é vista com um grande mal, assim como as práticas e gracejos da infância. A própria brincadeira, por definição, é tomada como daninha, nessa educação cujos caminhos tendem a vedar a espontaneidade e o entusiasmo próprios dessa idade que - como costumamos os adultos lamentarmo-nos - já não volta mais. O que há de alegria, de espontâneo, de travesso deve ser, pois, sistematicamente detido, para o reforço de uma pedagogia da constrição, da formatação de um auto-domínio que passa pelo recurso do medo, do temor: dos pais, dos professores, mas também do padre que confessa, da ato de contrição que delata, e, fundamentalmente, de Deus, que tudo vê. Para a disciplinarização dos gestos, para a arquitetura de ‘corpos dóceis’ e mente pouco criativa, viria a toada escolar; toada essa que se ancorava nos recursos da Igreja e da religião; toada essa que deveria fundamentalmente conduzir a percepção infantil à aceitação do mundo tal qual ele era. A educação aqui não fabrica o novo homem; pelo contrário, saúda o reeditar do velho. Pela âncora da religiosidade, a normatização da vida parecia bastante clara e compreensível. Povoar o mundo adulto exigiria do estudante treinos constantes de conduta. Para adestrar o mundo infantil, no perigo da dispersão que poderia aos seus olhos vir a corrompê-lo, o professor, desde logo, acena para práticas dirigidas de civilidade, de urbanidade e, como corolário destas, de cortesia:

“Todo o meu discípulo que for apanhado ou visto a tomar qualquer coisa em casa ou fazenda alheia, ou danificar alguma pessoa com ações ou palavras decompostas e menos decentes, tem, indo depois a dobrar, o castigo, pela primeira vez, de 6 grandes palmatoadas. Na vinda e ida da Escola, e assim ao deitar e levantar da cama, e também todas as vezes que comerem, os meus discípulos pedirão e tomarão a benção de seus pais ou superiores sempre de joelhos; e nunca se cobrirão diante deles, nem se apresentarão em público na sua presença, mas, em toda a ocasião ou lugar, os tratarão com muito respeito, amor e obediência; como pessoas a quem mais devem depois de Deus; o que eu vir ou souber que assim o não observa, ainda que da parte dos superiores tenha toda a liberdade, decerto levará o castigo por cada vez de 6 grandes

palmatoadas..”97

Dever-se-ia, como recomenda a Bíblia e as prescrições da Igreja amar a Deus sobre todas as coisas e desse amor a Deus seria desmembrado o amor ao Rei, como se a monarquia tivesse sua justificativa ainda no direito divino do monarca soberano. Vassalos de Deus e do Rei, em primeira instância, os estudantes teriam a “filial obrigação” de obedecer a suas “paternais determinações”, sem fazer qualquer oposição aos poderes da Coroa, por ações ou por palavras; mantida a obrigação moral de delatar todo aquele que conspirasse contra a autoridade constituída.98 Ao fazer isso, a escola prepararia o súdito obediente, cioso, respeitoso... e fiscalizador da possibilidade de transgressão. A escola teria como fator prioritário em seu currículo o ensino do lugar simbólico da autoridade: autoridade que supunha fidelidade; fidelidade esta que seria superior ao próprio dever de lealdade, já que

97 Coleção de Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, códice 2532, documento nº22.

98 Já Rogério Fernandes acentuava essa interpenetração entre a formação religiosa oferecida na escola

portuguesa do século XVIII e a formação político-social. Haveria, por princípios e procedimentos, toda uma dinâmica escolar que fazia com que “a subordinação do ser a um poder supremo funcionasse como ideologia da justificação da hierarquia social” (Rogério FERNANDES, Os caminhos do ABC: sociedade portuguesa e ensino de primeiras letras, p. 227). Toda a rede de poderes - que seriam interligados uns aos outros - viria nesta forma catequética de ensinar as subordinações e as relações que os homens têm na Terra com seus iguais, seus superiores e seus inferiores. A família era evidentemente o ponto de partida. O mundo da escola deveria incitar a vigilância coletiva sobre os comportamentos sociais, havendo nessa direção o explícito incentivo à prática de delação.

311 competia ao jovem denunciar qualquer companheiro que houvesse se pronunciado contra a ordem das coisas.

Na saída da escola, os estudantes deveriam dirigir-se imediatamente para suas casas. A saída e entrada eram inequivocamente os momentos do perigo, deixando inquietos pais e educadores. Lá concentrar-se-ia o tempo das tentações. Na fronteira entre o muro da escola e a porta para o mundo, os estudantes teriam no grupo um poder; o poder coletivo que os mestres e porteiros não conseguiam controlar, não eram capazes de deter. Na entrada e na saída das aulas, imperava o reinado absoluto daquela juventude escolar, sem entretanto a constrição do dever e da disciplina impostos pelos adultos da escola, adultos esses que são, nesses fortuitos e fugazes minutos, objeto de troça e diversão. Mas do que nunca, é na entrada e na saída da escola que essa juventude, essa meninice, reconhece e explora um poder que é todo seu: o poder que lhe é dado pelo pouco que viveu. Parece-lhe sempre que há a vida toda pela frente, que essa vida será tão longa quanto eterna, que todo o poder será um dia dos meninos... Por essa razão talvez é tão frequente o tom de indiferença com que a juventude lida com a experiência dos mais velhos, essa juventude que, ao entrar e ao sair da escola, deseja intensamente viver à prova da aventura. Um poder que não é visto, que dificilmente pode ser fiscalizado. Nesse momento acontecem, com maior freqüência, as conversas mais soltas, mais atrevidas, mais irreverentes. Nesses minutos de transição entre a família e a escola - a entrada e a saída das aulas - não haveria autoridade que detivesse a força, a imaginação, a aliança, a agilidade, o buliço... da rua. Nessa ocasião, fortalecida pela senha que lhe oferece o espírito de grupo, a infância é solidária apenas aos códigos que lhe são próprios, que lhe são específicos, em um território onde adulto definitivamente não entra. A força do grupo era o medo da escola. Temia-se o momento da saída: as crianças, sem olhar para trás, sem olharem-se umas às outras, deveriam dirigir-se rapidamente para seus lares. Lá estariam protegidas por seus pais. Lá, os adultos também estariam delas protegidos. Não se demore, pois, o discípulo no caminho, “e não molestarão uns aos outros com pancadas, empurrões, palavras ou ações injuriosas e malsoantes, e nem a outra alguma pessoa.”99 Do

contrário, quatro palmatoadas seria o castigo aplicado.

Do dever de amar a Deus sobre todas as outras coisas, escola tira como ilação, o incondicional amor a ser prestado aos pais.100 Não se questiona em hipótese alguma o tipo de relação mantida entre pais e filhos, nem as relações de poder que estariam postas na dinâmica familiar. Enquanto prolongamento da estrutura divina, a família é vista como a célula primeira, a partir da qual a reprodução do mundo e do homem é possibilitada. Daí serem naturalizadas as interações entre os diferentes sujeitos no campo familiar e, no caso, a criança tem - não importa sob que condições - o dever imprescritível de ser grata eternamente a seus pais, mesmo que estes eventualmente não demonstrem grande correspondência a esse amor. Do amor aos pais, como pudemos observar pelo regulamento acima transcrito, são desmembrados feixes de patriotismo devoto, como se a nação fosse, em sua essência, um prolongamento da família. A obrigatoriedade do amor pelos pais é talvez a primeira grande constrição sofrida pelo gênero humano. A escolarização da modernidade traz justificativa teórica para esse dever e, assim, a criança - cada vez que manifesta algum pensamento ou sentimento destoante - imediatamente sofre o sentido da culpa, dado que há um Deus que a tudo observa e a todos os faltantes deverá punir. O amor irrestrito aos pais é, além de tudo, um grande álibi para justificar a necessidade de dependência e obediência que, como é óbvio, revela-se o corolário natural dessa natureza do amor filial. É álibi por justificar a sujeição. Obedientes, por seu turno, as crianças tornar-se-iam mais controláveis...

99 Coleção de Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, códice 2532, documento nº22.

100 A esse respeito, vale lembrar que Rogério Fernandes já observava em seu trabalho sobre as práticas da

escola primária em Portugal do Antigo Regime que “uma das concretizações do dever de obediência residia na subordinação total dos filhos à vontade dos pais. O normativo social impunha a obediência incondicional à hierarquia familiar.” (Rogério FERNANDES, Os caminhos do ABC: sociedade portuguesa e ensino de Primeiras Letras, p. 483).

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“Todos andarão vestidos com alinho e com o asseio e limpeza possível; trazendo seus cabelos cortados como já se lhes ordenou, unhas aparadas e limpas, rosto orelhas, pescoço, dentes boca, mãos braços, pernas e pés bem lavados, e a cabeça livre de imundícies, e penteados todos os dias de manhã e à tarde antes de virem para a Escola, com os coletes, vestes e colarinhos da Camisa abotoados e erguidos, e os calções suspensos e seguros com alças (...); e sempre bem compostas e decentes (...) porque, do contrário, têm a pena de 3 palmatoadas. Depois de estarem dentro da Escola, não brincarão, rirão, olharão para fora, nem lhes importará quem passar defronte, o que obrar o contrário e se distrair com outras coisas tem a pena a dobrar de 2 palmatoadas. Quando entrar qualquer pessoa na Escola, todos se levantarão imediatamente e ficarão de pé até que o Professor os mande assentar, e em todo este tempo darão mostras de boa educação, respeito e civilidade, estando quietos e bem concertados; o que assim não obrar tem a pena de 4 palmatoadas. Espirrando o mestre, todos se erguerão dizendo: viva! E se assentarão ao responder ele: obrigado. E, se for algum condiscípulo, os mais dirão o mesmo, porém assentados, e lhes responderá o que espirrou: obrigado. E para o mestre: muito obrigado - pondo-se de pé imediatamente; o que assim não fizer tem a pena de duas palmatoadas. Ao proferir o Ssmo. Nome de Jesus, de Cristo ou Ssmo. Sacramento; todos meus Discípulos se levantarão, estando assentados abaixarão respeitosamente a cabeça, que logo levantarão com brandura e decência: e, falando-se na Virgem Maria, em Nosso Senhor ou Maria Santíssima somente inclinarão

levemente a cabeça; o que não o fizer tem a pena de 2 palmatoadas.”101

As minúcias do regulamento visavam o controle total do estudante por parte do vigilante olhar de seu mestre. A instituição escolar, que furta a criança do convívio familiar, isola-a dos maus modos, mediante o treino contínuo - que possibilite a ulterior incorporação - de toda uma política do detalhe, de um classificado de atitudes de polidez. Enquanto isso, os olhares, os gestos, as palavras, os sons, os movimentos, tudo isso é estritamente controlado pelo professor, que - para usar a qualificação de Foucault - “marca lugares e indica valores”102. Tratava-se efetivamente de uma organização do múltiplo, do disforme;

mas significava também agendar a previsibilidade daquilo que é, por definição, o fortuito, o indeterminado, o incerto. Acreditava-se, por meio disso, na possibilidade de regrar o futuro. O ensino simultâneo - aquele em que o professor trata o coletivo da classe como se se tratasse de um único aluno - é aqui almejado, não enquanto modalidade de instrução, mas como uma forma educativa mais eficaz para a obtenção do controle geral sobre o conjunto dos estudantes. A escola desse regulamento, como temos visto, parece um estabelecimento

101 Coleção de Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, códice 2532, documento nº22.

102“As disciplinas, organizando as ‘celas’, os ‘lugares’ e as ‘fileiras’, criam espaços complexos. Ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais, pois que regem a disposição dos indivíduos, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de quadros vivos que transformam multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas. A constituição de quadros foi um dos grandes problemas da tecnologia científica, política e econômica do século XVIII; arrumar jardins de plantas e de animais, e construir ao mesmo tempo classificações racionais dos seres vivos; observar, controlar, regularizar a circulação das mercadorias e da moeda e estabelecer assim um quadro econômico que possa valer como princípio de