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ATRASO PORTUGUÊS E DEMANDA POR ESCOLA ( 1844-1848 )

Tempo e espaço de ensino: o traçado do currículo (inspeção às escolas em

ATRASO PORTUGUÊS E DEMANDA POR ESCOLA ( 1844-1848 )

Nos termos do Relatório do ano letivo de 1844-1845, seriam 1116 as escolas públicas do Continente, sustentadas pelo Estado, sendo que haveria uma certa margem de imprecisão decorrente da transferência de algumas e de outras, que haviam estado vagas, terem sido providas. Cerca de 45500 alunos do sexo masculino e 1641 do sexo feminino frequentavam essas escolas públicas que, por sua vez, concorriam com outras 1084 escolas particulares, frequentadas por 18776 alunos de ambos os sexos. A população de Portugal era estimada, na época, em 3412500, sendo portanto a proporção de escolas avaliada em 1 para 53 habitantes. Havia, como se pode observar, distinção também no que diz respeito ao gênero, pelo fato de as escolas femininas serem em número bastante diminuto em relação às masculinas. O Relatório salientava que no ano de 1844, teria havido uma reestruturação da instrução primária, mediante o acréscimo do 2º Grau naquele mesmo ensino, o que viria a supostamente aprimorar o sistema de ensino, aumentando os próprios objetos da escolarização. Supunha-se que um dos modos de melhorar a escola seria o de tornar mais complexo esse sistema de ensino. Destaca-se a necessidade de favorecer o investimento na formação dos professores, embora o projeto de estruturação de Escolas Normais necessitasse de um ensaio prévio, posto na experiência a ser efetuada em escola modelo, em Lisboa. Acerca das proporções daquela pretendida rede de escolarização a ser paulatinamente uniformizada, diz o texto do Relatório:

“O número de escolas públicas, no Continente, sustentadas pelo Estado, não excede ainda a 1116: algumas têm sido transferidas para locais mais convenientes e tem-se provido outras, que de há muito estavam vagas. São 1075 do sexo masculino e 41 do feminino; 1058 do método simultâneo e 17 de ensino mútuo, havendo 16 destas em exercício e frequentadas por 2756 discípulos. Nas Ilhas, há 73 escolas primárias, com a que há pouco se criou na Ilha do Corvo: 5 de ensino mútuo e 68 de ensino simultâneo: 3 destas e uma de ensino mútuo são escolas de meninas. Acham-se as cadeiras distribuídas pelos diferentes distritos administrativos na forma que se segue: Aveiro 68; Beja 43; Braga 76; Bragança 56; Castelo Branco 49; Coimbra 70; Évora 28; Faro 29; Guarda 92; Leiria 41; Lisboa 144; Portalegre 41; Porto 84; Santarém 52; Viana 45; Vila Real 69; Viseu 129 =

1116 no Continente. Angra 30; Funchal 14; Horta 9; Ponta Delgada 20 = 73 nas Ilhas.”141

Note-se que se considerava como adepta do ensino simultâneo a maioria das escolas portuguesas daquela época. No mesmo período, temos entretanto a defesa do ensino simultâneo levada a cabo por autores como Castilho, que pareciam, naquela altura, sonhar com esse modo combinado e ritmado de ensinar as primeiras letras. Por outro lado,

346 verificaremos que ainda nos Relatórios concernentes à inspeção de 1866-67 e 1875 havia uma maioria de professores que aparentemente tinham profunda dificuldade em estruturar seu ensino por outro tipo de metodologia que não fosse o modo individual. Por aí, julgamos que o que neste ano de 1845 se entendia por ‘ensino simultâneo’ era antes um ato de vontade do que uma prática efetivamente implementada. É de se supor que houvesse níveis bastante elevados de transmissão individual do conhecimento escolar na escola portuguesa do século XIX, nada significando, portanto, a expressão ‘ensino simultâneo’, além daquilo que a diferencia da acepção de ‘ensino mútuo’. Temos razões para suspeitar que o discurso da inspetoria carece de rigor terminológico, até no que diz respeito à sistematização das informações, que, grande parte das vezes, vinham impressas por um tom demasiado idealista e vago142. Ao defender, por exemplo, o aumento dos ordenados dos professores, o Relatório discorre sobre a relevância do papel social desses profissionais, que, pela força da precariedade reinante, não se veriam estimulados ao esforço para obtenção de melhoria e promoção. Sugere-se uma escala de três graus como plano de carreira para os profissionais da educação, de modo a favorecer a difícil emulação para uma profissão pouco valorizada em termos dos proventos recebidos. A esse respeito, consta do Relatório o seguinte juízo: “Está geralmente reconhecido que o progresso somente se pode esperar da carreira aberta ao talento: enquanto os ordenados e recompensas, por maiores que sejam, não o despertam, se se lhe tira a sedutora perspectiva de um futuro mais feliz.”143

Pelo fato de se assumir no texto o olhar iluminista, para o qual a instrução pública é caracterizada como alicerce do desenvolvimento e da prosperidade das nações, reclama-se a necessidade de colocar todas as escolas públicas em edifícios do Estado, padronização esta que serviria aos interesses de uma rede escolar disciplinadamente homogênea, padronizada e uniforme. Sendo que basicamente cada escola correspondia a uma única classe, a maioria desses estabelecimentos funcionava, ainda, nos velhos moldes herdados do Antigo Regime, nas próprias casas em que habitavam os professores, em proporção que veremos adiante.

Ao reiterar os já conhecidos índices sobre a proporção de escolas públicas em relação aos alunos matriculados, o Relatório do ano letivo de 1846-1847 explicita que tais dados podem não corresponder à realidade das escolas, pelo fato de haver inúmeras crianças que, embora matriculadas, em nada aproveitam a instrução e abandonam frequentemente a escola. Mesmo assim, o Conselho reconhece progressos na situação das escolas primárias, expressos inclusive no zelo e na assiduidade de professores. O Conselho manifesta sua preocupação quanto à superintendência e vigilância das escolas por comissários qualificados para tal função, de modo a que as visitas às escolas se fizessem regulares e periódicas e que pudesse efetivamente existir avaliação “com a nota de merecimento, assim literário e moral, como pedagógico dos professores, recomendando-lhes a escolha e a indicação dos melhores métodos e o estímulo de sociedades que promovessem nas aldeias o gosto e o zelo pela instrução”144 . A guerra civil teria perturbado o funcionamento tanto das escolas quanto da

própria inspeção sobre as mesmas, tendo ocorrido, segundo consta, irregularidades nos pagamentos dos ordenados e abandono por parte das autoridades. Os oito meses de duração da Patuléia teriam sido suficientes para conduzir os professores a desvios no seu ministério,

142 Os próprios Relatórios eram reconhecidamente imperfeitos, pelo fato de não haver dispositivos que

permitissem a cobertura de todo o Reino, sem exceção. Sobre esse aspecto, consta do texto relativo ao ano

letivo de 1844-1845 o seguinte: “A falta de muitos Relatórios parciais não permite fazer este geral mais

circunstanciado e regular, nem deduzir dele combinações e resultados práticos, em que consiste a maior utilidade de tais obras. Com a prática, é natural que se vá emendando aquele defeito, sendo essa a sorte de todas as instituições nascentes começarem imperfeitas; e, quando o Conselho tiver elementos estatísticos em que se possa firmar com segurança, poderá então expor com maior regularidade o estado da instrução pública e propor as providências que ele reclamar”. (RELATÓRIOS do Conselho Superior de Instrução Pública, p. 39).

143 Id. Ibid., p. 30.

347 introduzindo-os e comprometendo-os com as vicissitudes dos partidos que perfilhavam a contenda. Sobre os efeitos da disputa, consta do Relatório:

“A educação moral dos povos, que antigamente estava encarregada à ordem eclesiástica, principalmente aos párocos, está hoje em tal estado de desorganização que deve causar mui sérias apreensões sobre a sorte futura do país. O clero, depois da revolução por que passou, não pôde desempenhar aquele encargo; perdeu a influência; e a maior parte dos párocos até estão esquecidos de que era aquele o seu principal dever. Longo espaço há-de decorrer até se formar um novo clero, capaz de moralizar os povos. É necessário, pois, encarregar esta missão aos professores, os quais nunca a poderão desempenhar dignamente, se eles mesmos, por meio duma educação regular, não estiverem possuídos do sentimento da virtude e do hábito de a praticar,

porque a moral ensina-se mais com o exemplo do que com a palavra.”145

Teria sido, pelos padrões legais, a orientação do Decreto de 20 de Setembro de 1845 que criou para todo o território português o ensino primário de 2º grau, que, nos termos do Relatório da inspeção referente ao ano letivo de 1846-47, “não diferem das do 1º senão em ensinar-se nelas o ensino primário em toda a sua latitude e com mais perfeição.”146 Na

verdade, esse degrau da escolarização voltava-se fundamentalmente para classes pertencentes a povoações urbanas, comerciais e industriais - diz o mesmo texto - “cujos habitantes querem seus filhos habilitados para manejarem com inteligência as suas profissões, sem os passar ao ensino secundário”147. Era como se houvesse a possibilidade

de ilustrar as camadas médias e inferiores da população, sem com isso proceder à temida subversão do tecido social, em sua grade hierárquica e estamental. A orientação curricular parecia, desse modo, ancorada na orientação de classe social. O conhecimento desejado deveria ser, antes de tudo, contido e graduado; do contrário, poderia vir a se constituir como arma indesejada e perigosa. Percebe-se, a esse respeito, a intensa preocupação em relação a atitudes de inculcação de hábitos morais, tidas como mais necessárias ao professor do que a própria capacidade de ensino. Dessa maneira é nas entrelinhas que podemos encontrar as finalidades reais do ensino primário à moda portuguesa. Acerca disso, também os relatórios concernentes aos anos que se seguem persistem em se queixar dos abalos que a instrução

145 Id. Ibid., p.46. Segundo consta ainda desse Relatório, teriam sido bastante aprimorados os procedimentos da

inspeção nos últimos anos, particularmente a partir da orientação do conselho Superior de Instrução Pública naquele mesmo ano de 1845: “O Conselho se ocupava então principalmente de dar uma organização regular à superintendência e vigilância dos comissários sobre este ensino, obrigando-os a adquirir conhecimento especial de cada escola, por meio de correspondências regulares e visitas periódicas, exigindo-lhes contas frequentes do seu provimento mensal (...).” (RELATÓRIOS do Conselho Superior de Instrução Pública, p. 46)

146 RELATÓRIOS..., p. 46. De acordo com o texto da inspeção, as disciplinas previstas para aquele grau de

ensino seriam a Gramática Portuguesa, o Desenho, a Geografia, a Escrituração e a Aritmética, todas elas - diga- se de passagem - bastante necessárias ao espírito mercantil.

147 RELATÓRIOS..., p. 47. O Relatório desse ano letivo de 1846-47 destaca também a vantagem do modo de

ensino mútuo, quando aplicado a classes muito numerosas. Diz o texto que aquele procedimento didático “é

sem inconvenientes no ensino das disciplinas em que, da parte dos meninos, se não exige tanto a reflexão como a prontidão e uma espécie de facilidade maquinal, como na escrita, na leitura simples, na aritmética, ainda que, na verdade, não pode produzir resultados senão mui lentos, enquanto às disciplinas em que se exige pensamento e reflexão, como doutrina, história, gramática. Como em poucas das nossas escolas primárias se ensinam estas últimas disciplinas, o método de ensino mútuo parece ter produzido, entre nós, bons efeitos.” (Id. Ibid., p. 47) Percebe-se, pelo excerto, a priorização de algumas das matérias do ensino primário português e a acepção de uma leitura, de uma escrita e de um cálculo elementar como a verdadeira tríade dos saberes escolares a nível primário, supostamente dotada de uma lógica própria, que possibilitaria o que aqui consta como aprendizado fácil, ‘maquinal’, quase mecânico, por não exigir ‘ pensamento e reflexão’. Esta é a concepção do ler, escrever e contar, na perspectiva dos inspetores.

348 veio a sofrer em decorrência da situação política, o que viria a confirmar a crença na plena separação entre os assuntos da instrução e a máquina da política. Embora andassem paralelas, eram coisas que não se deveriam misturar.148

Reclamando da ausência de escolas normais que efetivamente preparassem o magistério, o Conselho pondera sobre os verdadeiros efeitos da multiplicação das escolas primárias enquanto aquelas não existissem, recordando, em função disso, a pouca frequência e o diminuto número de crianças que ao ensino acorriam149. Mesmo assim, sugere-se a criação de escolas em freguesias rurais, sugerindo que o ensino nesses estabelecimentos fosse confiado aos próprios párocos das aldeias. No ano letivo de 1847-1848, o Conselho manifesta sua preocupação com o problema do material didático em uso nas escolas. O

Relatório diz que “o Conselho tem coligido, dos livros elementares nacionais, os mais adaptados ao ensino de instrução primária e, anualmente, tem comunicado ao governo de V. Magestade a coleção adotada”150.O atraso da instrução primária em Portugal, em relação aos

demais países europeus, preocupa os especialistas. Desse modo a multiplicação das escolas primárias apresenta-se como a prioridade primeira dos planos do Conselho. A escolarização primária, sendo a única que se supõe efetivamente universal, é aquela que deverá ser “levada à porta de todos, porque é a de que todos precisam”151 . Os registros de inspeção começam já

a procurar mapear o estado do analfabetismo em todo país, e reparam que, no cômputo geral, as províncias do Norte do Tejo têm níveis intelectuais mais elevados que as outras do Sul, o que se manifesta também no aproveitamento da instrução primária em cada região do Continente152 . A crença no método, como âncora infalível da escolarização, também surge bastante acentuada aqui. Recomenda-se que se ensaiem as metodologias de ensino preconizadas por Pestalozzi, Jacotot e Kley. Supõe-se que, por si, a inovação didática trará vantagens e facilidade para o ensino. E, ao lado disso, sugere-se que a utilização de bons livros escolares poderá vir a se tornar a pedra de toque da melhoria do ensino português. Aparece, assim acentuada, a crença nas técnica e nos instrumentos como o fator determinante do êxito da educação ministrada.

“O melhoramento da instrução primária não depende tanto da extensão dada às matérias do ensino como dos bons livros e métodos de ensino. O Conselho tem empregado todos os meios ao seu alcance para conseguir uma coleção de bons livros para este ramo de instrução,

148 “A instrução primária foi a que mais sentiu os lamentáveis efeitos das discórdias civis. As apuradas circunstâncias da fazenda pública, não podendo acudir ao pagamento regular dos professores, têm motivado o abandono de algumas cadeiras, que estão sem exercício por não ter aparecido quem a elas se oponha em concursos, por vezes repetidos. Era natural este resultado, porque os professores de instrução primária, mais desamparados de meios, não podem suportar o atraso de ordenados de que, geralmente falando, vivem exclusivamente as suas famílias”(RELATÓRIOS do Conselho Superior de Instrução Pública, p. 58). 149 “ Sente-se entibiar o desejo de multiplicar o número das escolas primárias, quando se vê a pouca frequência das que existem e a falta de concorrência às que vagam. Todavia, se do gênero das que existem não convém aumentar o número, enquanto não tivermos professores formados em escolas normais, sem cujo auxílio será baldado todo esforço por melhorar este ramo da instrução, outras escolas há, de graduação inferior, acomodadas às necessidades locais, as quais podem e devem ser criadas por interesse público, havendo, para as disciplinas que lhes competem, mestres convenientemente habilitados. Falamos das escolas de freguesias rurais, que se devem limitar ao ensino de ler, escrever, contar e princípios de religião, e cujo ordenado deverá ser inferior ao que atualmente têm as outras escolas do 1° Grau.” (RELATÓRIOS..., p.63).

150 RELATÓRIOS do Conselho Superior de Instrução Pública, p. 59.

151“ Multiplicar o número de escolas primárias é a primeira necessidade. Bastará comparar o número que temos com as que têm a Bélgica, Hanover, a Silésia e Lombardia, para explicar o estado de atrasamento em que se acha a instrução primária do país” (RELATÓRIOS...p. 71).

152 “Avaliando a intelectualidade das diferentes províncias do Reino pela frequência e aproveitamento destas

escolas primárias, aparece em resultado que aquela está mais desenvolvida nas três províncias do Minho, Trás-os -Montes e Beira; e menos nas do Alentejo e Algarve. E acha-se este fatoem harmonia com outro fatocapital: nas três primeiras províncias, é aonde se encontram melhores professores, em geral” (RELATÓRIOS... ,p.64).

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recomendando até a tradução dos bons que há em outras nações, mormente na Prússia, Inglaterra e Toscana. Não pode, porém, lisongear-se de o haver conseguido até agora. Para regular os métodos de ensino, tem-se lembrado de instituir conferências entre os comissários dos estudos e os professores mais acreditados, e tem-no recomendado em suas instruções, mas reconhece que,

para tais ensaios, não é ainda chegada a hora, por falta de elementos necessários.” 153