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A ESCOLA NÃO ENSINAVA “LEITURA EM LIVRO”, POR CULPA DO PROFESSOR

O ritual escolar: entre vozes e versões (inspeção às escolas em 1875)

A ESCOLA NÃO ENSINAVA “LEITURA EM LIVRO”, POR CULPA DO PROFESSOR

O inspetor do Distrito de Évora - António Pereira da Silva - foi também o responsável pela visita à escola primária de sexo feminino localizada à Rua da Mouraria nº 33, da freguesia de São Mamede na cidade de Évora.

A escola era dirigida por Carolina Júlia da Motta Pereira, de 27 anos de idade e 5 de tempo de serviço no magistério público. Naquele ano letivo de 1874-75 havia 35 alunas matriculadas, das quais frequentavam regularmente a escola apenas 12. A irregularidade da frequência, bem como a falta de meios indispensáveis para um bom ensino, o abandono com que a Câmara deixava a escola eram fatores que contribuíam para o mau aproveitamento escolar das alunas.

“Parece-me a professora possuída dos melhores desejos e lamenta-se de que não tenham sido atendidos seus pedidos para o melhoramento de sua escola. Mandada para esta cidade, ficou como isolada, ninguém lhe visitou ainda a escola, ninguém ainda lhe mostrou o melhor caminho a seguir, ninguém ainda lhe disse que tinha a obrigação de fazer exames escolares no fim de Agosto, ninguém aqui lhe dirigiu uma palavra de animação. O que se pode dizer da aptidão da Professora? Privada dos instrumentos próprios do seu ofício, não lhe dando ao menos em consideração o que lhe falta em meios, que se pode esperar dela? E quem tem fiscalizado o seu serviço escolar? O oficial de diligências que, de quando em quando, vai espreitar se para a casa da Professora entram ou não as alunas.”

A professora tinha diploma do curso de 1º grau de instrução primária passado pela Escola Normal, sendo portanto vitalícia, com satisfatória capacidade literária para o ofício ao qual se dedicava.

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“Visitei a escola em 6 de Abril - primeiro dia de aula depois das férias -, época fatal para conhecer do aproveitamento dos alunos, após 15 dias de interrupção nos exercícios escolares; a classe da sociedade a que pertence a máxima parte das frequentantes é a menos favorecida da fortuna e isto basta para se afirmar desde logo que a frequência é irregularíssima e por consequência bem pouco o aproveitamento. Além disto, a largueza dos programas leva a professora a ser exigente na compra de livros, a que as famílias se excusam por carência de meios; e daí vem muitas vezes a declaração formal dos pais - de que não querem que suas filhas aprendam mais do que a ler em livro ( e para isso lhe serve o primeiro que lhe vem à mão ) e fazer os lavores próprios do seu

sexo.”221

As observações dos inspetores a respeito do serviço escolar muitas vezes compreendem aspectos comuns para quase todos os distritos, com uma certa frequência na proporção encontrada para um conjunto de problemas, cuja compreensão nos pareceu relevante, para que nos pudéssemos aproximar do cotidiano da escola portuguesa, de seus dilemas, de seus impasses. Segundo consta das observações sobre o serviço escolar, era muito habitual haver irregularidade nos registros de matrícula dos estudantes, faltando por vezes os dados necessários, por existir talvez enorme dificuldade quanto à compreensão acerca do preenchimento dos quadros e mapas padronizados.222 Ao professor não eram fornecidos, ao que parece, os instrumentos analíticos para entender esse universo da avaliação. Não havia inspeção regular e a visita do inspetor não fazia parte então de uma vida escolar corriqueira. Com professores amedrontados e apreensivos do julgamento da inspeção, não havia também iniciativa pedagógica no sentido de orientar os mestres sobre aquilo que lhes faltava. Nessa medida, com dificuldades concernentes ao controle escolar, muitas escolas que inclusive figuravam no cômputo inicial do inspetor não estavam em funcionamento.223 Às vezes, a escola existia formalmente, mas as faltas do professor eram tão frequentes que o inspetor não podia sequer emitir qualquer parecer sobre aquilo que realmente encontrara.224

221 MR 1972. Concelho: Évora. Freguesia: São Mamede da cidade de Évora.

222 A respeito das limitações quanto à própria veracidade dos dados da averiguação que fazia, diante da carência

de informações, diz o inspetor da escolar da freguesia de Taveira no concelho de Coimbra:“O registro da matrícula dos alunos é bastante irregular, pois nem para ele há um livro, achando-se farto em folhas avulsas de papel, nem tem os dizeres suficientes, faltando-lhe a data da entrada dos alunos para a aula e a nota da qual o seu aproveitamento e comportamento bem como da classe a que pertence cada ano. Não tem o registro da frequência de modo que não foi possível ver qual o número de alunos que regularmente frequentam a aula; para nesta parte encher os mapas nº 1 e 2 foi preciso calcular aproximadamente essa frequência segundo a informação do professor.” [MR 1071. (livro do Ministério do Reino) Inspecção das escolas públicas e particulares do distrito de Coimbra (círculos 1 e 2). Quesitos aos inspetores - 1875. Concelho: Coimbra; Freguesia: Taveira]

223 O professor da freguesia de Eiras no concelho e distrito de Coimbra, estava, por exemplo, gravemente

doente e por essa razão, por ocasião da inspeção, não foi encontrado na escola. As aulas haviam sido suspensas há mais de uma mês, dado que o professor inclusivamente deitava já sangue pela boca. Essa escola, por acaso, parecia ter bom aproveitamento por parte dos alunos, antes de ter tido seu funcionamento interrompido: “Segundo as informações colhidas soube que os alunos tinham regular aproveitamento quando a escola funcionava, e que esta era muito frequentada, não só por alunos da freguesia de Eiras, mas ainda por muitos das freguesias próximas e nas quais não há escolas. Como a aula tem estado fechada, e quase todos os alunos matriculados são de fora da localidade, apenas se reuniram na ocasião da visita quatro dos mais adiantados que inspecionei para formar o meu juízo acerca do adiantamento e da aptidão do professor.” (MR 1071. Distrito e concelho: Coimbra. Freguesia: Taveira)

224 Sobre a escola da freguesia de Castello Viegas, diz o inspetor: “ No dia 9 de Junho encontrei a escola

fechada porque o professor estava em Coimbra doente, sem que tivesse participado isso ao Comissário dos Estudos e ao Administrador do Concelho. Só nos fins de Julho o participou e foi nomeado interinamente por um parente do mesmo professor e que vive com ele, segundo me informaram. No dia 30 de Agosto, fui a Castello Viegas para fazer a inspeção e outra vez encontrei a escola fechada porque o professor interino não deu aula nesse dia nem no imediato. Fui porém à casa da escola e não encontrei livros nem apontamento algum acerca

450 Embora se tratasse de um conjunto de escolas públicas, o inspetor manifestava com alguma frequência a expectativa de que o professor fornecesse de seu próprio bolso o custeio de livros e de materiais escolares, havendo, nessa medida, um tom de repreensão crítica quando o mestre se recusava a melhorar, através do fornecimento de material gratuito, as condições pedagógicas de sua classe.225 Dificuldades quanto ao convencimento das populações no sentido do envio das crianças à escola pareciam ser dificilmente equacionadas, posto que as famílias hesitavam em reconhecer os benefícios da instrução e, mesmo quando aparentemente o faziam, declaravam acreditar que o valor da escola estaria reduzido a esse conhecimento elementar da ‘leitura em livro’. Mais do que isso, supunha-se ser perda de tempo. Se nem essa meta primeira a escola conseguia efetivar como produto, a comunidade não via sentido maior em delegar parcela de sua responsabilidade educativa, parcela do tempo da jornada de trabalho, parcela de poder, àquela instituição que, de alguma forma, deixara de cumprir o que havia prometido.

Existiam, em algumas regiões, atuando de maneira assistemática e ainda incipiente, comissões promotoras da instrução pública, organizadas por setores da sociedade civil interessados em fazer prosperar as condições culturais da população. A escola situada na freguesia de Sernache, no concelho de Coimbra era mista. Seu professor era um eclesiástico de 56 anos de idade. Havia no local uma comissão promotora do ensino primário, comissão que o relato da inspeção julgava, entretanto, incompleta, por decorrência da morte de um dos seus mais destacados membros, o Visconde de Condeixa. Como princípio, essa comissão promovia atividades voltadas para incentivar os pais a mandarem seus filhos à escola, proporcionando também a distribuição da alguns prêmios para aqueles alunos que mais se destacassem. Além disso, a comissão se encarregara de fazer alguns reparos no edifício escolar, de maneira a acomodar convenientemente a dinâmica pedagógica da instituição. Nos termos do Relatório, lê-se o seguinte:

“O edifício em que se acha estabelecida a escola foi a antiga casa da cadeia e a Câmara Municipal cedeu-o à Junta de Paróquia para a escola pública. Tem três casas, sendo a principal que serve para a aula, e as outras duas ficaram separadas daquela por uma parede em que apenas há uma porta que as comunica. Deitada abaixo a parede, pode-se fazer uma razoável casa de aula com capacidade para um curso de cem alunos. A comissão promotora, agora completada, de acordo com a Junta, ficara em boas condições de empreender esta obra, que é urgente, por não ter a escola

capacidade bastante para os alunos que a frequentam.”226

Muitas vezes, o retrato feito do professor de escola primária é rígido no que concerne à apreciação dos métodos utilizados para a manutenção da disciplina escolar. O professor raramente é elogiado; quando não é acusado de autoritário, é qualificado de ignorante; quando não se diz que é ríspido nas maneiras, é julgado pouco habilidoso ou preguiçoso. Enfim, a análise da inspeção usualmente aborda o que supõe ser o registro da

da escrituração escolar. Alguns escritos que lá vi dos alunos eram maus.” (MR 1071. Concelho: Coimbra. Freguesia: Castello Viegas)

225 A escola pública existente na freguesia de Anturede no concelho de Coimbra tinha frequência pequena, de

apenas três alunos, embora houvesse na localidade inúmeras crianças em idade e condições de aprender a ler. Pelas observações do inspetor sobre o cotidiano escolar, podemos observar o tom severo da crítica efetuada: “O professor é muito desleixado. Não tem um registro regular de matrícula e de frequência dos alunos porque não quer comprar à sua custa os livros necessários para isso. Não tem na casa da escola água para ele e para os alunos e não raras vezes abandona a aula para ir beber água na casa dos vizinhos. Os alunos pedem para ir à fonte, que é longe, e aí se ajuntam e demoram a brincar.” (MR 1071. Concelho: Coimbra. Freguesia: Anturede)

451 incompetência e incompletude docente. Acima de tudo, o professor carece. Sua carência - de bons modos, de habilidades científicas e literárias, de remuneração condigna, de boa formação pedagógica, de utilização de metodologia apropriada - é, nessa medida, praticamente intransitiva. Acusa-se, de fato o professor por ele não se mostrar capaz de domínio nem da disciplina e nem do conteúdo. Quando a escola fracassava, e na maior parte das vezes, era isso que ocorria, ao professor cabia a maior parcela da culpa. Um dos dados mais nítidos do papel pouco instrutivo da escola portuguesa daqueles tempos era o fato de os relatórios sequer analisarem a quase ausência total de alunos considerados pelos professores como “prontos no fim do ano”. Não havia praticamente, em toda a amostra que pudemos analisar, alunos aprovados em qualquer exame de liceu, o que revela que o mundo do liceu era então um ambiente à parte, que, em princípio, em nada teria a ver com a estrutura e a lógica de funcionamento da escola primária. Esta continauava a ser regida pelo signo de uma prática fundamentalmente intransitiva.