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ESCOLA E FAMÍLIA COMO REDUTOS QUASE IRRECONCILIÁVEIS

Compreender a lógica da escolarização supõe identificar algumas intersecções - entre escola e família, entre comunidade local e poderes públicos, entre a criança e o adulto, entre as classes sociais e as classes escolares. O estudo da escolarização enquanto variável histórica e social tem sim algumas regularidades passíveis de serem apreendidas. Por outro lado, há variantes, especificidades, diferenças, deslocamentos... Na identidade, percebe-se o lugar do outro. Desse modo, ao percorrer esse imaginário que dialoga com a acepção de escola pública em Portugal no período compreendido entre 1820 e 1910, verificaremos inúmeros paradoxos; coisas que se punham de um modo e subitamente apareciam de outro. Temos por exemplo motivos para acreditar que a população portuguesa, no período em pauta, valorizava e desprezava a escola; queriam-na e rejeitavam-na. Depende da clave por onde olhemos... De qualquer maneira, como talvez em história as grandes generalizações sejam, ao fim e ao cabo, somente mesmo uma força de expressão, um recurso para possibilitar o relato coerente, até certo ponto, conformamo-nos com a ambiguidade. Havia indiferença pela escola; mas havia, na outra margem, quem lutasse por ela.

83 Coleção de Manuscritos da B.G.U.C., Papéis do Arquivo da Junta da Diretoria Geral dos Estudos, códice

301 A averiguação feita a 20-7-1822 pelo Comissário dos Estudos de Lisboa - António da Costa – decorria de uma situação, tida por anômala, do professor António dos Santos Albano Gonçalves Lima. Por que esse indivíduo tinha apenas 14 discípulos? Era ou não verdade aquilo que dizia a vizinhança: que ele não queria ter mais alunos? Comentava- se, de fato, que desde que se havia proibido que os mestres aceitassem dinheiro de seus alunos, a escola, que anteriormente andara cheia, teria perdido consideravelmente os alunos que tinha. Na verdade, foi entre os anos 1816-17 que o rei promulgara uma provisão que impedia os mestres de receberem dinheiro por lições em escolas públicas, prevendo inclusive pena de suspensão para punir quem desrespeitasse essa prescrição. O professor em questão, segundo o parecer do Comissário dos Estudos,

“(...) ficou sumamente descontente, e assentou em que o verdadeiro era fazer com que o exercício da Escola lhe custasse pouco, fazendo com que o número de Discípulos se reduzisse a pouca coisa. E assim, ou negando-se por quaisquer pretextos que lhe ocorressem, quando seus pais lh’os apresentavam, ou aconselhando-lhes como melhor outra coisa, ou deixando-os muitos dias sem Lição, ou tratando-os com nímia aspereza, ou usando de todos estes expedientes segundo as circunstâncias, o certo é que eu, percebendo no homem cada vez maior descontentamento, vi ao mesmo tempo que o número dos Discípulos se reduzia cada vez a menos. Assim chegou a não ter o ano passado mais do que esses 14 que apontam no Mapa do ano letivo próximo passado, segundo diz a referida Régia Provisão. E deve notar-se que os dito 14 Discípulos foram os que por todo o decurso do dito ano passado entraram e por algum tempo frequentaram aquela Escola; porque, sucedendo de ordinário, mui principalmente nas escolas de Primeiras Letras, em todo o decurso do ano despedirem-se delas muitos dos Discípulos que as frequentam, passando-se delas para outras, ou seguindo outros destinos; aqueles que atualmente a frequentavam ao mesmo

tempo nunca naquele ano chegarão a 14.”84

Procurando tecer algumas considerações suplementares sobre a situação do professor e do ensino, o Comissário recorda que a casa de escola havia sido alterada pela altura do Natal. Ele resolve então fazer uma visita às novas instalações no dia 8 de janeiro. Chega lá pouco mais ou menos às 10 da manhã. A escola contava naquela altura com apenas dois alunos. O mestre disse-lhe que eram aqueles dois meninos os únicos que então tinha. Ao ser questionado sobre as razões de tão diminuta freqüência, ele atribui esse fato à mudança das instalações da escola. Mas o Comissário não se convence, cônscio que estava de outros casos onde a mudança de endereço não teria trazido tanto prejuízo à freqüência escolar. Em geral, ao mudar o estabelecimento para outro sítio, os professores costumavam de imediato perder um ou dois alunos, mas logo adquiriam outros, provenientes das novas redondezas. Insatisfeito, portanto, com o estado em que encontrara a escola, o Comissário dos Estudos regressa lá em 27 e 28 de março. Chegando ali por volta das 9h30 havia 7 discípulos, que lhe pareceram todos ‘mui meninos’. O mestre esclarece que faltavam às aulas naquela ocasião apenas 2, sendo que ambos eram também - como reconhecia o docente - principiantes. O Comissário é assim levado a crer que os meninos não eram efetivamente capazes de aturar a permanência na escola, desaconselhados que, ainda por cima, seriam tanto por seus pais quanto pelo próprio professor.

“Que este homem nenhum cuidado tem da Escola, e só trata de desfrutar o Ordenado, tudo quanto tenho observado nele desde o fim de 1816, em que comecei a servir, m’o confirma. No princípio, até ele tratava de desfrutar os pais dos discípulos, pagando-se deles. Se algum não pagava, não o

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tinha com os outros, mas em uma casinha pequena próxima à da Escola, e pouco clara, à qual na Escola se chamava segredo. Um homem, que lhe era mui vizinho, e ali mandava um afilhado, e que no princípio (por ser a Escola Pública) não estipulou preço com o Mestre, referiu-me que, vendo um dia sair da escola uns poucos de rapazes, lhes perguntava como ia lá o que era seu afilhado. Reponderam dizendo: esse está no segredo. Informado do que isso queria dizer, e conhecendo que era preciso pagar, procurou falar com o Mestre, perguntou-lhe quanto se dava, e ficou pagando 600 réis por mês, enquanto de lá o não tirou. Mas pelo fim de 1817, intimada a Provisão de 16 de agosto do 2º ano, por tudo quanto observei e pude alcançar, pareceu-me ter ele assentado consigo que aquilo que lhe rendia pouco lhe não devia dar muito trabalho. E assim

entrei a ver que o número de Disípulos diminuía visivelmente.”85

A mulher do professor era, como anota o Comissário António de Castro, mestra de uma escola de meninas que funcionava na mesma freguesia. Atrevidamente, a senhora havia - por sua vez - repelido uma intimação que lhe havia sido feita pelas autoridades, pelo fatode ela também costumar cobrar proventos aos pais dos alunos pelos seus serviços em escola pública. Na ocasião, ela teria agido de maneira extremamente grosseira, tendo desafiado o próprio Comissário, alardeando que não aturaria mais aquilo. António de Castro estava entretanto convencido de que, apesar das ameaças em contrário, tanto ele como ela não deixariam por livre vontade o magistério público, dado que recebiam ele 140$000 réis e ela 100$000 réis. Além do exercício da docência, o professor António dos Santos Albano Gonçalves Lima era também empregado em uma Contadoria do Tesouro Público, onde deveria comparecer todos os dias também às 9h00 da manhã. Se estava na escola, faltava a esse outro serviço. Como poderia ele estar nos dois lugares ao mesmo tempo? Mesmo assim, o tempo corria e a situação anômala era, pela inércia, mantida e assegurada:

“É porém certo que o não tenho visitado mui frequentemente, e bem pode ter tido a fortuna, que lhe faltaria se o tivesse podido visitar com maior freqüência. Além disto também me parece certo que o Tesouro Público não está a esse respeito em melhor estado que as Escolas; e bem pode um Oficial ter ali ponto às 9h00 e não aparecer, senão depois das 11h00. Enfim, por diversas vezes tenho procurado pessoas daquele sítio, que me informem exatamente sobre faltas de Residência e pagas exigidas ou aceitas: nada porém tenho conseguido em termos. Sei que este homem com os seus discursos, arrazoamentos, queixas, etc., é dos que comovem os colegas, para os apartar do seu dever. Vem-me aqui, a propósito, o que há poucos dias me constou, que ele com Luís Gonçalves Coutinho - boa cabeça e grande Professor! - foram os principais motores de que se fizesse um Requerimento às Cortes, pedindo que os Mestres de Primeiras Letras pudessem levar dinheiro dos ricos, e só fossem obrigados a ensinar grátis os pobres. Para isto o dito Coutinho os chamou, senão a todos, alguns, a sua casa, onde se achava o (...) Albano, e, lendo o requerimento, persuadiram aos Convocados que o assinassem. Disseram-me que o tinham assinado naquela ocasião uns 6 e que, para poderem entregar a peça a maior número de Deputados, parecendo-lhe melhor imprimi-la, exigiram que todos que a assinassem contribuíssem cada um com 480 réis para a despesa da Impressão. Algum, tendo assinado, depois negou-se a dar os 480 réis e por isso Coutinho disse a outro, encontrando-o em uma Rua, que tinham na sua Corporação companheiros que eram uns velhacos. O que ouvia, por se não perceber claramente excluído do número, picou-

se e houve altercação de palavras; mas não se passou a obras.”86

A oposição escola-família curiosamente aparecia até nos registros variados de abaixo-assinado por populações locais e aldeãs que vinham solicitar dos poderes públicos o oferecimento de escolas primárias que permitissem às crianças o contato particularmente

85 Coleção de Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, códice 1341, folha 119.

303 importante com a habilidade da leitura, da escrita e do cálculo. Muitas vezes, até quando o professor pretendia a mudança da escola, a população não aceitava e procurava impedi-lo. Em nome da escolarização, não se via mal algum em brigar com o próprio mestre-escola. Aparentemente não se supunha, nem sequer se reivindicava, que a juventude pudesse aprofundar seus estudos, obtendo acesso ao ensino de liceus, por exemplo. Não se esperava que a maior parte das crianças fosse mais do que alfabetizada e moralizada pela ação escolar. Desejava-se exclusivamente que houvesse a possibilidade do conhecimento de habilidades rudimentares para a civilização do escrito, o que possibilitaria desenvoltura do jovem no mundo e nas atividades citadinas. Por outro lado, solicitava-se da escola que ela impregnasse o estudante de atitudes e roteiros de conduta social considerados como moral e religiosamente adequados. Nesse sentido, podemos ler a carta subscrita em 18 de Março de 1857 por 61 pessoas da freguesia de Vallongo no concelho de Águeda. Os signatários haviam se surpreendido e manifestavam na ocasião sua perplexidade diante do então recente edital do Conselho Superior de Instrução Pública de Coimbra, que mandava pôr a concurso a cadeira de instrução primária de primeiro grau estabelecida no lugar de Arrancada daquela mesma freguesia. Na verdade, os signatários recordavam que aquela cadeira, desde que havia sido há oito anos deixada pelo Professor Padre José Pinheiro dos Santos, tinha tido alguns cinco professores - uns após outros, transferidos sempre -, de modo que os alunos não conseguiam ter qualquer aproveitamento significativo em função mesmo da diferença dos métodos de ensino entre os vários e sucessivos professores. A cadeira estava então preenchida e finalmente ocupada pelo mestre Joaquim Daniel de Oliveira Araújo, que era considerado ‘muito digno’, sendo sua conduta pedagógica apreciada por aqueles conterrâneos. Esse professor efetivamente parecia satisfazer as expectativas dos pais que viam, pela primeira vez em muito tempo, seus filhos se aperfeiçoando no rol de saberes que constituíam o conhecimento especificamente escolar. Diziam sobre a tarefa docente do referido professor:

“(...) que a tem regido muito a contento dos pais de famílias, e com o aproveitamento dos alunos que leciona; e informada de que a vacância na cadeira provém de ter sido nomeado por Vossa Magestade aquele professor para outra cadeira a requerimento dele, se não é que por manejos ocultos de António Augusto de Paula Quaresma, professor em Angeja, que pretende a cadeira de Arrancada, terra da sua naturalidade: [ os signatários ] vêm respeitosamente representar a Vossa Magestade, que a mudança daquele Joaquim Daniel de Oliveira Araújo, é geralmente sentida naquela freguesia pelos pais de famílias, que deploram a falta de tão íntegro Professor; mais ainda e muito mais sentirão que seja provido na dita cadeira de Arrancada aquele António Augusto de Paula Quaresma, por que, em tal caso, muitas famílias, e em especial os abaixo-assinados, ficam sem Mestres para seus filhos, que não podem confiar àquele indivíduo, que é ali muito conhecido por suas torpezas e costumes lascivos, para haver de se lhe confiar a educação da mocidade, escrevendo contra algumas famílias pensamentos injuriosos e desmoralizadores (...) obra-prima

tipo da mais asquerosa maledicência.”87

A partir do que acabavam de expor, os abaixo-assinados - estudantes, proprietários, negociantes, escrivãos, juízes, regedores, professores e outros habitantes optaram por não declarar seu vínculo profissional; seriam talvez empregados em um ofício qualquer e não propriamente profissionais liberais como os anteriores? Solicitavam o cancelamento da mudança do atual professor - mudança essa que, aliás, estava ainda em vias de se realizar - com a pretensão de impedir que a cadeira de Arrancada viesse a ser ocupada por aquele outro indivíduo que, por sua vez, enquanto ocupara há tempos atrás a função de

304 professor interino naquela mesma localidade, pôde ficar já conhecido pelos habitantes como alguém pouco recomendável em termos de costumes e de responsabilidade pelo ofício que então exercia. Na verdade, cometia muitas faltas, como aliás parecia continuar a cometer, posto que, ocupando o lugar de professor em uma freguesia próxima, diziam os requerentes que passava semanas inteiras sem sair de sua terra, faltando às aulas que deveria estar ministrando. O pedido revela indubitavelmente o desejo da instrução, mas uma instrução controlada e fiscalizada pela comunidade familiar que não pretende delegar, mas apenas provisoriamente emprestar uma parcela de sua responsabilidade educativa à instituição educativa. Os registros revelam inúmeras vezes a perspectiva de pais e de familiares como considerando a si e a seus filhos mais importantes do que os próprios professores, sobre os quais propunham tantas vezes que fosse centrada a educação das crianças. Os mestres da infância não pareciam ser tomados, na grande maioria das vezes, pelo valor intrínseco que revelavam na tarefa educativa, mas antes pelo valor instrumental que possuíam na serventia das populações e das teias familiares.