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A ESCOLA COMO SIGNO DE PODER LOCAL: RIVALIDADE COMUNITÁRIA

Em 5-4-1819, o provedor da Comarca da Guarda - que abrangia a povoação de Pinhanços -, António Delgado da Silva solicitava dos poderes públicos a criação de uma cadeira de Primeiras Letras naquele vilarejo. Para tanto, o provedor afirmava haver recorrido ao depoimento de testemunhas variadas, e todas elas confirmavam o fato de não existir qualquer possibilidade de escolarização para as crianças, a não ser em lugares próximos, como a Vila de Santa Marinha, que distava dali meia légua e Seia que se localizava à distância de uma légua, “ficando por meio o ribeirão, que de inverno impede a passagem aos meninos”75. Diante dessa constatação de geográfico obstáculo à instrução, sugere-se a

criação de uma cadeira de Primeiras Letras no povoado de Pinhanços. Na verdade, enquanto provedor da comarca da Guarda, António Delgado da Silva havia sido, por designação da Coroa, responsabilizado pela averiguação da situação das crianças daquela região, sendo que, por tal atribuição, dele dependia a criação ou não da referida cadeira.76 Com tal objetivo, em nome do referido provedor, o ouvidor António Hortencio Mendes Cardozo informava que, depois de haver obtido o certificado de idoneidade das pessoas a serem ouvidas no caso, confirmou com elas a localização exata de Pinhanços e verificou que aquele lugar era mesmo

são, como é no lugar de Mundão da Provedoria e Comarca de Viseu que ainda não obteve esta Graça; este dito Lugar e suas Redondezas contêm em si um grande número de Meninos que, por falta de ensino de Primeira Letras e mais doutrinas, vivem em crassa ignorância; por que, ainda que queiram aproveitar-se das Lições de alguns Professores daquela Provedoria, o não podem fazer por lhe ficarem as Escolas em grande distância de maneira que não podem de modo algum aproveitar-se das suas Lições, já pela longitude, e já pelos caminhos intransitáveis: à vista pois do que os habitantes daquele dito Lugar, com a maior profundeza de Respeito por a Vossa Alteza lhes faça a Graça de mandar se crie nele uma cadeira de Primeiras Letras de que tanto carecem.” ( Coleção de Manuscritos da B.G.U.C., códice 2533, caderno de documentos nº61 ) Do processo constava ainda a inquirição de três testemunhas que asseguravam a veracidade das informações prestadas.

75 Coleção de Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, códice 1341, folha 91.

76 “Dom João por Graça de Deus Rei do Reino Unido de Portugal e do Brasil e Algarves, d’aquém e d’além

mar em África senhor da Guiné, Vos Mando a vós, Provedor da Comarca da Guarda: que com a possível brevidade novamente me informeis pela minha Real Junta da Diretoria Geral dos Estudos sobre o número de meninos do lugar de Pinhanços e circunvizinhanças, que hajam de frequentar uma Escola, que se pretende se estabeleça no referido lugar: cumpriu-o assim El-Rei Nosso Senhor e mandou pelo Bispo de Coimbra, Conde d’Arganil do Seu Conselho, Reformador Reitor da Universidade, e presidente da sobredita Real junta, por quem esta vai assinada. Bartolomeu José da Silveira a fez em Coimbra aos vinte e quatro de janeiro de 1820. O delegado António Barbosa de Almeida a fez escrever.” (Coleção de Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, códice 1341, folha 79).

297 próximo de inúmeras outras terras onde existiria população em idade escolar que não possuía nenhum estabelecimento de ensino para poder frequentar. Havia - com mais exatidão - seis povos que distavam cada um cerca de meia légua de Pinhanços: Lagarinhos, Gache, Passarela, Novellâens, Lages e Santa-Comba. Os caminhos que os conduziam a Pinhanços eram, por seu turno, facilmente transitáveis, mesmo no inverno mais rigoroso, pelo fato de não serem cortados por montes, despenhadeiros, rios ou ribeiras. Ocorre que, somando as crianças de todas essas localidades, haveria cerca de 150 meninos que, para aprenderem a ler e a escrever, teriam de se deslocar para Santa-Marinha, Vila Nova do Casal ou Vila de Seia, que ficavam - cada uma das referidas vilas - a meia ou a uma légua de Pinhanços, caminho que entretanto era cortado por grandes ribeiros (o rio de Seia, a ribeira de Arrifana), o que muitas vezes impedia a passagem em épocas de chuvas abundantes. Era por isso - conclui a investigação - que poucas pessoas de Pinhanços e arredores sabiam ler e escrever. Ora, tendo em vista que todas aquelas populações eram ligadas à cultura do vinho, evidentemente o subsídio literário seria ali recolhido. A escola seria, pois, no parecer daquelas gentes, um direito que lhes estaria sendo sonegado.

“Todos estes Povos lavram mais vinho, que proporcionalmente os mais do Termo desta Vila de Seia: no qual há apenas uma cadeira de Primeiras Letras estabelecida na mesma Vila. Escuso lembrar que todas as Nações Polidas se afanam em fazer o estudo das Primeiras Letras conhecido de todos os Cidadãos: Vossa Magestade redobra estes desvelos; e pelos princípios canonizados nas leis abertamente declara que a felicidade das Monarquias e conservação da Religião e Justiça depende da Cultura das Ciências: e que a base desta é o berço, em que se nutrem as Ciências e as Artes, se firmam no estabelecimento e bom governo das Cadeiras de Primeiras Letras. Assim, parece que a inexistência da pretendida Cadeira produz incomparavelmente maiores males que a

sua existência: o que demonstraria se não me isentasse disto a Sabedoria de Vossa Magestade.”77

Luís Albuquerque, que em seu trabalho publicado em 1960 estudara já este caso, revelava que fora em 1818, a partir de um “requerimento de homens qualificados da povoação de Pinhanços para que fosse instituída uma cadeira de Primeiras Letras naquela localidade”78, que o referido processo tivera lugar. Ocorre que, no ano de 1829 há um outro

processo contíguo àquele outrora exposto por Albuquerque, e que constava de queixa dos habitantes da Vila de Santa Maria - também pertencente, como vimos, à comarca da Guarda - quanto à remoção sem substituição de um professor - Manuel Dias Profírio - daquele lugarejo para o local de Pinhanços. O Presidente da Câmara de Santa Marinha, o juiz, o mais velho e o mais novo dentre os vereadores, o procurador, o bacharel, e outras lideranças locais reivindicavam o regresso da cadeira de Primeiras Letras que havia pertencido àquela localidade e vinham expressar em abaixo-assinado seu descontentamento para com tal situação.

Na verdade, constava que se pretendia mesmo suprimir a cadeira daquela vila, e que subsistiria a cadeira de Pinhanços, considerada pelos signatários uma aldeia fraca e menor. Percebe-se nitidamente, em virtude da própria construção do texto, que se tratava de uma sinuosa disputa local. Entendia-se que a ausência de escola enfraqueceria a região,

77 Coleção de Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Papéis do Arquivo da Junta da

Diretoria Geral dos Estudos, códice 1341, folhas 84 e 85.

78 No parecer de Luís Albuquerque, “ o processo provocado por esta representação até se decidir fundar a

cadeira requerida, arrastou-se por cerca de três anos, com pedidos de várias informações às autoridades locais sobre distâncias entre povoações, população do lugar, etc.. Os autores das respostas excediam por vezes a concisão aconselhável, tecendo considerações gerais sobre o ensino. Assim aconteceu, por exemplo, no ofício do ouvidor da Guarda, Dr. António Hortêncio Mendes Cardoso [acima transcrito]” (Luís ALBUQUERQUE, Notas para a história do ensino em Portugal, p. 236-7).

298 fortalecendo a outra, que então passaria a ocupar um lugar de destaque nas redondezas. A marca da escola é aqui nítido objeto de disputa, como se ela proporcionasse um certo status, ambicionado particularmente pelos homens de posse da região. Sobre o tema, aliás, os signatários destacavam que a Vila de Santa Marinha se projetava como a “primeira de maior esplendor na Comarca”79, composta que era, além de tudo, por homens nobres, que, por essa

condição, não deveriam ser obrigados a enviar seus filhos para uma aldeia distante, quando estes poderiam ser educados na própria vila se fosse mantida a cadeira régia. Segundo consta ainda do documento, a Vila de Santa Marinha era extremamente concorrida, posto que os próprios magistrados da Comarca iam nela residir durante meses e meses, o que jamais ocorrera - diziam eles - na aldeia de Pinhanços.

“Na mesma vila sempre houve Mestre das Primeiras Letras, isto sem memória em contrário, ele ensinou muitos Meninos, que passaram a ser clérigos, religiosos, doutores, ministros de letras e homens de caráter, e não seriam tantos como o são, e muitos existem, se não fossem educados nas Primeiras Letras na dita Vila, por lhes ficar penoso irem fora dela. Logo, para que não se corte este séquito de Homens Grandes, a dita Cadeira deve subsistir na dita Vila; útil ainda aos povos vizinhos, e ela tem aí subsistido depois que Vossa Magestade se dignou criar cadeiras tais,

não havendo motivo para que deixe de continuar.”80

A Vila de Santa Marinha e seu termo era composta por mais de quinhentos vizinhos, ao passo que - como comentavam os signatários - a aldeia de Pinhanços possuía apenas cento e trinta. Em termos de vizinhança, aparentemente, a Vila aglutinaria um contigente bastante maior de meninos de outros lugares que iriam para lá estudar. No ano anterior, quando lecionava em Santa Marinha, o professor contara com 45 discípulos; desde que fora efetuada a sua transferência para Pinhanços, esse número caiu para menos de 20. Diante do exposto, o abaixo-assinado - que, como já comentamos, era subscrito por personalidades da região - pretende servir como um alerta às autoridades.

“Vossa Magestade ponha nisto os olhos, um tão pequeno número de moradores preferir em um ponto tão importante a um tão grande número de outros; e tome mais Vossa Magestade em consideração o atestado junto, da letra do sobredito professor, ainda que por ele não vai assinado, mas vai reconhecida a letra do qual consta que no ano passado tinha na sua Aula na dita Vila de Santa Marinha quarenta e cinco discípulos e agora na Aula em Pinhanços nem vinte tem, o que se tem averiguado; mas, que há-de ser, aqueles poucos habitantes não são amantes das Letras (...) O lugar de Pinhanços, no tempo de inverno não dá pronta passagem, não só por dias, mas por semanas e meses para se ir ao mesmo lugar, pois as muitas águas dos ribeiros a ele próximos, impossibilitam a passagem, que é penosa ainda a homens fortes e valentes, pois as águas ainda chegam a cobrir algumas fracas pontes que há e passam ao lugar os prédios vizinhos; estes inundando-se; por conseqüência é impossível que aí possam transitar os Meninos a irem à dita Aldeia, à aula de Primeiras Letras; logo, deve subsistir a cadeira na dita vila; e, de outra sorte, é ruína nos presentes e futuros, ficam privados de saberem ler, escrever e contar, que por uma parte alguns Pais de famílias não têm com que paguem a um Mestre, quando são nos seus coletados para o Subsídio Literário; e, por outra parte, os que têm com que pague a um Mestre, este o não

há em pronto, e muito mais em razão d’ele dever ser aprovado por Vossa Magestade.”81

79 Coleção de manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Papéis do Arquivo da Junta da

Diretoria Geral dos Estudos, códice 1341, folhas 73, 74, 75.

80 Coleção de Manuscritos da B.G.U.C., Papéis do Arquivo da Junta da Diretoria Geral dos Estudos, códice

1341, folhas 73,74,75.

81 Coleção de Manuscritos da B.G.U.C., Papéis do Arquivo da Junta da Diretoria Geral dos Estudos, códice

299 Há nitidamente contraposição entre a condição dos habitantes da vila e a situação supostamente precária dos habitantes de aldeia. Os habitantes da vila insistem em frisar a diferenciação no próprio cunho civilizatório. De qualquer modo, a crença na escolarização parece por si evidente. A escola não cria, mas consolida e reitera o percurso civilizatório. Os notáveis da localidade, os homens de ciência, os líderes políticos e religiosos, os legisladores, todos esses precisavam da instrução; e um maior número de homens instruídos era prova visível do adiantamento e dos progressos da localidade.

Os signatários de fato reconhecem que, quando as aulas de Primeiras Letras eram ministradas pelo antigo professor - José Correia de Castro -, era pequeno o afluxo dos estudantes. Mas isso era porque o mestre, velho, doente e cansado de ensinar, não mostrava mais a mesma disposição para o exercício da profissão. Desde que, entretanto, a cadeira fora provida pelo sobredito professor Profírio, as aulas teriam passado a ser concorridas inclusive por meninos de aldeias vizinhas. A aldeia de Pinhanços distava, como já se pôde observar, meia légua de Santa Marinha. Na verdade, o processo nada tinha a ver com quaisquer interesses do próprio docente que, como diz o abaixo-assinado, havia requerido a sua transferência, que era, entretanto rejeitada e repudiada pelos pais de seus alunos. Os pais de família habitantes daquela vila vinham pois no referido documento dizer que não se deveria em hipótese alguma atender tal desejo do professor, em prejuízo dos interesses prioritários do conjunto daquela população local.

“A cadeira da dita aldeia foi criada há muito pouco tempo e, como já se expôs, a da dita Vila foi desde a criação das Cadeiras Régias; estando os moradores da dita Vila e seu termo e povos vizinhos de alguma forma com direitos adquiridos, para que Vossa Magestade lhes faça a mercê da dita cadeira, em que deverá continuar o dito Professor, que nela foi provido, e ele é que deu causa a esta vacância no removimento que requereu para o daquele lugar que vagou, por ficar compreendido no crime de rebelião o Professor da mesma; e se conveio ao dito Professor Profírio ser provido na cadeira da dita Vila, privando a qualquer dos outros opositores que houve que não fosse provido, a vontade e querer do dito Professor Profírio parece não dever ser motivo para que se abandone a cadeira da mesma Vila, antes sendo do agrado de Vossa Magestade, ele deve regressar à mesma cadeira, até os meninos seus discípulos já lhe conheciam o seu método de

ensinar e mostravam muito adiantamento.”82

Os requerentes, ao dizer isso, ou não procuraram o professor buscando estabelecer acordo com ele, ou não tiveram sucesso ao fazê-lo; não se sabe. O que se pode inferir, em qualquer dos casos é que substantivamente poderíamos indagar: em que medida as ações escolares eram consoantes aos interesses das famílias (e, nesse caso, quais famílias); e em que medida elas representavam os interesses dos professores; em que medida havia correspondência entre esses dois universos de interesse. A hipótese que aqui levantamos faz por entrever um certo nível de tensão e de conflito entre a ação docente e as lógicas de regulação familiar, como se essa escola criada pelo mundo moderno se situasse a si própria, parcialmente pela complementaridade, parcialmente pela adesão, parcialmente pela contraposição ao equilíbrio institucional da família nuclear típica. Procuraremos, ao longo do texto que aqui vamos tecendo, explicitar, justificar e corroborar esta tese. Regressando, após essa breve digressão, à história que vínhamos contando, ouçamos os argumentos políticos que balizam e supostamente reforçam a solicitação:

82 Coleção de Manuscritos da B.G.U.C., Papéis do Arquivo da Junta da Diretoria Geral dos Estudos, códice

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“Finalmente todos os moradores da dita Vila e seu termo dão a vida por Vossa Magestade e a esse fim e ao de sustentarem a Santa Religião têm padecido muitos incômodos e a sua Realeza se prova de que sendo aquela Vila e seu termo dos quinhentos e tantos chefes de famílias acima referidos, e debaixo destes compreendida uma grande população, apenas um ínfimo da plebe foi compreendido nas devassas da rebelião; e naquele lugar de Pinhanços foram quatro, entre eles o Professor Régio, que aí havia: assim consta pelos sequestros a que se procedem, e muitos mais deveriam ser, pois aquele povo é um dos apontados em opiniões políticas, sendo muito suspeitoso em pontos tais, ainda que também há pessoas que têm sido leais a Vossa Magestade, mas isto não é descobrir de feitos alheios, só fazer ver que os meninos da Vila de Santa Marinha e seu termo, não podem nem devem ser educados nas Primeiras Letras em uma população tão contaminosa, deixando de o ser na sua própria terra, aonde só há pureza e candura em favor da Santa Religião e de Vossa Magestade. Concluem os representantes que esperam ser atendidos na conservação da cadeira na dita Vila, ou regressando a ela o dito Professor, ou sendo posta a concurso; e na colisão de uma delas ser abolida, o seja a daquele lugar, e Vossa Magestade deferirá com a justiça

que costuma.”83

Como fica explícito, recorre-se à participação desigual que as duas comunidades teriam tido nos conflitos que naqueles anos vinte oporiam liberais e absolutistas. Por outro lado, ainda que acenando para a possibilidade de abertura de concurso para a cadeira que ficara vaga, os proponentes sugerem, inclusive com uma certa veemência, o regresso do professor que partira por livre vontade para a aldeia de Pinhanços. Tal ênfase justifica-se exclusivamente pela eficácia daquele mestre no ensino da leitura e da escrita. É, portanto, em nome exclusivamente de sua competência técnica que a presença do antigo professor é defendida. A população, nessa disputa local, a exige um direito que a sua contribuição nos tributos facultava. Esse direito que se solicitava era o direito de que as crianças pudessem ir à escola para aprender.