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A intervenção mínima e os crimes de perigo abstrato

No documento EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO (páginas 36-40)

1.4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS

1.4.2 A intervenção mínima e os crimes de perigo abstrato

O Direito Penal surgiu sob a premissa de proteção a bens jurídicos. Nesse sentido, a lesão, ou ao menos a exposição a perigo concreto de lesão, é requisito mínimo exigido para que se ponha em movimento a máquina penal em busca da perquirição do agente infrator. Ao se exigir requisitos mínimos à persecução penal, está-se, em verdade, promovendo a limitação ou ao menos o controle do poder punitivo estatal, o que se justifica, na medida em que, por mais legítima que seja a demanda penal em face do infrator, ainda assim restarão violados aspectos de sua dignidade humana. A concepção do Direito Penal como ultima ratio está diretamente associada à ideia do “mal necessário”, ou seja, ele sempre será uma mal à pessoa (sobretudo do infrator), porém, necessário, diante das circunstâncias e dos valores que pretende proteger, daí seu emprego somente em último caso (SILVA SÁNCHEZ, 2011).

A limitação do ius puniendi pode concretizar-se pela teoria do bem jurídico, que estabelece critérios à eleição dos bens jurídicos, impossibilitando, assim, que todo e

qualquer bem ou valor seja elevado a tal condição e, portanto, passível de proteção penal. Também concretiza-se pela incidência de princípios constitucionais na relação jurídico-penal, como o da intervenção mínima e seus corolários, entre eles, o princípio da lesividade, que preconiza que a ausência de lesão ou perigo de lesão exclui o crime, e os princípios da insignificância, da subsidiariedade e da fragmentariedade. Diante desse quadro de busca pela limitação do poder punitivo e de valorização da intervenção mínima, parece haver certa contradição entre tais pressupostos e o caráter excepcional dos crimes de perigo abstrato, que adiantam a repressão penal à fase da conduta, numa clara antecipação da tutela penal. Ora, a suposta contradição repousa na evidência de que, de um lado, há esforços doutrinários no sentido de reduzir o Direito Penal à ultima ratio, efetivamente, e, de outro, há a evidência de um processo de expansão do Direito Penal, com a criação de tipos de perigo abstrato, que, em tese, conflitaria com alguns princípios garantistas constitucionais, portanto, retirando a legitimidade dessa classe de delitos.

A suposta carência de legitimidade leva alguns autores no Brasil, principalmente Gomes (2002), a sustentarem a inconstitucionalidade dos delitos de perigo abstrato por expressa afronta ao princípio da lesividade. Contudo, reduzir a questão da inconstitucionalidade à mera observação da lesão ou não ao bem jurídico tutelado parece simplificação perigosa, que não convence, em que pese deva-se respeito à postura dos que defendem tal tese. Desde já, firma-se a convicção pela constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, bem como acredita-se que a análise constitucional não deve perpassar, exclusiva e unicamente, pelos critérios do princípio da lesividade; a questão deve ser abordada, também, sob o enfoque da razoabilidade, da oportunidade e da proporcionalidade.

Retomando a relação entre intervenção mínima e crimes de perigo abstrato, não há aparente contradição em promover o princípio da intervenção mínima e, no mesmo sentido e esteio, conclamar a legitimidade e aplicabilidade dos crimes de perigo abstrato. Isso porque o princípio restará incólume se a construção dos tipos penais de perigo abstrato observar parâmetros democráticos e for orientada pela realização do bem-estar social, e não por interesses pessoais do legislador. Havendo respeito a critérios objetivos, pautados em estudos prévios (mesmo que empíricos) que demonstrem a necessidade e fundamentem a tipificação em regras sólidas, não há

porque se desprezar a utilização dos crimes de perigo abstrato como instrumento hábil à contenção de riscos (NUCCI, 2012a). Portanto, mais importante que submeter os crimes de perigo abstrato aos critérios da lesividade é analisá-los sob a perspectiva da razoabilidade. Esta, sim, teria o condão de ilegitimar tais delitos, pois se a tipificação não se mostra razoável, seja por qual aspecto for (bem jurídico irrelevante, excesso de intervenção estatal, desproporção da pena etc.), evidente a sua inconstitucionalidade.

Parece ser condição inerente ao Direito Penal lidar com conflitos entre valores e princípios, afinal, como já aludido, mesmo que legítima, a privação de liberdade de um indivíduo configura-se, em última análise, sempre uma afronta ao princípio da dignidade humana. Nesse sentido, sempre haverá a defesa de um valor ou bem jurídico em detrimento de outro. Obter o equilíbrio nessa relação pode ser considerado um dos grandes objetivos da dogmática e do processo legislativo penal. O bom termo dessa difícil equação é orientado pela observação dos princípios que regem o ordenamento jurídico, sobretudo o subsistema penal, sendo a razoabilidade, como já dito, um desses elementos que dão substrato jurídico às tipificações penais.

Outro princípio que, junto ao da razoabilidade, se destaca no processo legislativo de caráter penal é o da oportunidade, que também está vinculado à ideia de intervenção mínima e orienta-se no sentido de determinar se é oportuna ou não a intervenção estatal em certas demandas. O princípio da oportunidade pode atuar na fase processual, incidindo no caso concreto. Nesse particular, guarda profunda similaridade com o princípio da insignificância, na medida em que, sendo insignificante a lesão ou perigo a que foi exposto o bem jurídico, mostra-se inoportuna a intervenção estatal penal. Porém, a análise de oportunidade pode ser a priori, ainda na fase legislativa, de modo a determinar se é oportuno e importante ao Estado legislar penalmente sobre determinada matéria ou assunto.

Exemplos há, e muitos, em que a criação de leis penais orienta-se mais pela comoção social fruto de casos pontuais, geralmente violentos e que ganham repercussão midiática, do que pelo princípio da oportunidade. Esse tipo de legislação tende a padecer de ilegitimidade, de desproporcionalidade, tendo efeito muito mais simbólico

do que repressivo/preventivo, considerando os objetivos do Direito Penal. A inclusão do homicídio no rol dos crimes hediondos é um exemplo5.

Contudo, há circunstâncias em que a observação empírica indica a necessidade de intervenção estatal em situações que se mostram de risco, justificando a oportunidade da medida. Nesse sentido, oportuna foi a tipificação do homicídio culposo em acidente de trânsito (art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro), embora tenha sido criticada à época, primeiro, porque já havia tipo penal para tal conduta (art. 121, § 3º) e, segundo, porque a pena da novel legislação era mais severa. Diz-se oportuna a criação de tipo penal mais grave ao homicídio culposo quando praticado no trânsito porque não se podia desprezar os números alarmantes de mortes causadas pela condução imprudente dos motoristas. O trânsito, principalmente nas grandes cidades brasileiras, é uma das principais causas de morte violenta no País e tal aspecto não pode ser desprezado, não podendo ser insignificante ao Direito Penal, razão pela qual se mostra oportuna a intervenção na tentativa de minimizar as causas de algo que à sociedade já não mais era aceitável. Considerando que o homicídio no trânsito muitas vezes tem relação com a condução sob efeito de álcool ou drogas, a tipificação do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro mostra-se igualmente oportuna, pois se tenta, pela via do Direito Penal, evitar que a conduta de dirigir bêbado ocorra, pois ela tem o potencial de causar mal maior.

Portanto, quando razoáveis e oportunas, as legislações penais que criam tipos de perigo abstrato (ou quaisquer outros) mostram-se legítimas e não podem pairar sobre elas dúvidas acerca de sua legitimidade e constitucionalidade. Ao tratar de constitucionalidade, aliás, teriam melhor sorte os detratores dos crimes de perigo abstrato se a buscassem na afronta ao princípio da proporcionalidade, e não no da lesividade.

5 A Lei 7.210/1994 alterou a Lei 8.072/1990, incluindo o homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos. A mudança legislativa deu-se em função do apelo popular em torno da morte da atriz Daniella Perez, cuja mãe, a novelista Glória Perez, reuniu cerca de 1,3 milhão de assinaturas em um projeto de lei enviado ao Congresso Nacional nesse sentido.

No documento EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO (páginas 36-40)