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A proporcionalidade e os crimes de perigo abstrato

No documento EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO (páginas 43-48)

1.4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS

1.4.4 A proporcionalidade e os crimes de perigo abstrato

No que diz respeito aos crimes de perigo abstrato, o princípio da proporcionalidade ganha especial relevo, porque nessa modalidade de delito antecipa-se a proibição à

conduta e o bem jurídico não chega a ser efetivamente lesionado, nem sequer exposto a perigo concreto, de modo que não se justificam, a princípio, penas mais severas aplicadas aos crimes de perigo do que aos de lesão.

A efetividade do princípio da proporcionalidade resulta exatamente na correção de eventuais distorções, muito embora nem sempre isso seja possível. Um exemplo seria o crime previsto no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, que estabelece pena de seis meses a um ano de detenção para quem conduzir veículo automotor sob a influência de álcool ou outra substância psicoativa, que é de perigo abstrato e tutela o bem jurídico incolumidade pública (NUCCI, 2012a; MARCÃO, 2013; JESUS, 2000a), mas a lesão se efetiva na pessoa (lesão corporal) ou no dano ao patrimônio. Pois bem. Contudo, conforme analisa Marcão (2013), se da conduta perigosa resulta dano efetivo de lesão corporal culposa a outrem, o delito é absorvido pelo art. 303 do mesmo Código de Trânsito (lesão corporal culposa em acidente de trânsito), cuja sanção, no mínimo legal, é a mesma de seis meses do art. 306, porém, no máximo, é de dois anos de detenção, inferior aos três anos do art. 306. Desse modo, havendo a efetividade da lesão corporal (crime de dano e mais grave), a pena seria a mesma ou até menor do que para dirigir embriagado (crime de perigo e menos grave)7.

Ora, se um motorista que bebeu uma garrafa de cerveja optar por conduzir seu veículo e, consciente de que sua habilidade motora possa estar prejudicada, o fizer de forma muito cuidadosa e diligente, com velocidade reduzida, trafegando pela direita da via, estará sujeito a pena mais severa do que um outro que, embriagado, provocar acidente de trânsito com lesão corporal. Pior, a condução sob efeito de álcool nem

7 Nesse sentido, digno de nota é o julgado trazido por Marcão (2013, p. 132-133) em seus comentários ao art. 303 do Código de Trânsito Brasileiro, posto que evidencia a ilogicidade e a desproporcionalidade das penas aplicadas aos delitos em comento, porque entende o delito de embriaguez ao volante menos grave do que o de lesão corporal, consideradas, pois, suas naturezas, o primeiro de perigo e o segundo de dano. Contudo, não observa que o delito dito mais grave tem pena mais severa que o outro: “ocorre o denominado conflito aparente de normas quando uma mesma conduta infracional se encontrar prevista em mais de uma norma penal incriminadora, devendo os operadores do Direito valer-se de princípios lógicos e de processos de valoração jurídica do fato, a fim de atribuir ao agente infrator a tipificação exata em que se encontra incurso. Segundo o princípio da subsidiariedade, haverá relação de primariedade e de subsidiariedade entre duas normas penais incriminadoras quando ambas descreverem graus diversos de violação a um mesmo bem jurídico, sendo a norma subsidiária, por possuir reprimenda menos grave, absorvida pela norma mais grave. O delito de embriaguez ao volante, por ser crime de perigo concreto, é subsidiário tácito do tipo de lesão corporal decorrente de acidente de trânsito, este, sim, verdadeiro crime de dano. Tutelando ambas as figuras penais a incolumidade pública, ainda que em graus diversos de proteção, tem-se que a ocorrência da norma mais grave, dotada de primariedade, acaba por absorver a incidência da norma menos grave, por ter natureza subsidiária”.

sequer qualifica a conduta, já que não se encontra entre as causas de aumento de pena dispostas no parágrafo único do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, combinado com o também parágrafo único do art. 303.

Portanto, patente é a desproporção, seja pela gravidade concreta das condutas, seja pela cominação da pena. A situação torna-se ainda mais desproporcional caso se considere que da embriaguez resulte somente dano ao patrimônio. Ora, o crime de dano, capitulado no art. 163 do Código Penal, não aceita a forma culposa. Portanto, os danos materiais gerados a partir da conduta de trafegar em velocidade incompatível nem sequer têm repercussão na esfera penal8

, pois se trata de ilícito civil. Há pouco foram traçados os critérios hábeis a designar a desproporcionalidade das normas penais. Ressalte-se, todavia, que o processo de verificação das máximas da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporção em sentido estrito) são de caráter contínuo, incidem em diversos momentos, desde a cominação (criação da lei penal), perpassando pela aplicação e chegando, por fim, à execução da pena. O controle de proporcionalidade é exercido, portanto, desde a fase legislativa até a fase judicial de incidência da norma penal. Porém, há de se reconhecer que a fase legislativa tem especial importância, porque, uma vez criadas leis penais desproporcionais, restará ao Judiciário, na resolução da lides durante o processo, a árdua tarefa de lidar com tal desproporção e com a missão muitas vezes inglória de saná-la.

Outro aspecto que se pretende ressaltar é que, entre as formas possíveis de a lei penal se apresentar desproporcional, parece que a mais relevante e que, portanto, demanda maiores esforços no sentido de se evitar sua concretude, é a (des)proporção em sentido estrito. Como já aludido, a proporção em sentido estrito está intimamente ligada à cominação da pena, à ideia de justa medida e, quando o sopesamento das vantagens e desvantagens é feito de forma equivocada, invariavelmente tem-se desproporção nas penas. Crê-se, portanto, que no melhor exercício do critério da proporção em sentido estrito, a análise não deve ficar restrita à consideração das vantagens que se busca nos fins, em detrimento das desvantagens dos meios. Há

8 Para que houvesse a possibilidade de repercussão penal, haveria se de considerar o dolo eventual, partindo da premissa de que o autor assumiu o risco de causar dano ao trafegar em velocidade incompatível.

que se ampliar os critérios, buscando-se aperfeiçoar a proporcionalidade, por exemplo, comparando-se os delitos, considerando-se sua classe, natureza e objeto jurídico.

Em busca da ampliação dos critérios de verificação de proporcionalidade, cuide-se que o Direito Penal, tradicionalmente, protege bens jurídicos e que, inicialmente, a afetação do bem se dava com sua efetiva lesão. Assim, quanto mais se aproximar da lesão, tanto mais grave e reprovável será a conduta. A partir dessa premissa, não é errado estabelecer uma hierarquia, considerando a natureza mesma dos crimes de perigo abstrato, de perigo concreto e de lesão, segundo a gravidade de cada um. Mais graves, por certo, seriam os delitos de lesão, posto que efetivamente lesionam o bem jurídico, causando-lhe abalo ou imprestabilidade. Depois, seriam os crimes de perigo concreto, já que, de forma concreta e inequívoca, expõem a perigo o bem jurídico tutelado, cuja lesão não se perfaz graças a fatores externos e alheios à vontade do agente. Por último, como menos graves, apresentam-se os crimes de perigo abstrato, cujo bem jurídico nem sequer foi exposto a perigo, sendo presumido por lei. Portanto, num contexto de proporcionalidade, as penas cominadas a cada espécie de delito deveriam, além das máximas de proporcionalidade e da relevância do objeto jurídico, respeitar essa hierarquia, de sorte que as penas mais severas ficassem adstritas aos crimes de lesão e as mais brandas, aos de perigo abstrato.

Sob tal perspectiva e aproximando o tema deste capítulo ao objeto de estudo, há que se criticar, considerados os critérios expostos, a proporcionalidade das penas atribuídas a diversos crimes de perigo abstrato, incluindo o crime de tráfico de drogas. Portanto, no capítulo destinado à análise dogmática desse delito, serão abordadas as questões críticas relativas à desproporção de suas penas em relação a outros crimes, tanto de lesão quanto de perigo concreto.

Assim, de tudo quanto se tratou neste capítulo inicial, destaca-se a extrema importância que tem o princípio da intervenção mínima no contexto dos crimes de perigo abstrato, já que, ao antecipar consideravelmente a punição, esse tipo de delito pode representar uma ameaça ao exercício do Estado democrático de direito e dos direitos e garantias fundamentais, exigindo do legislador especial consideração quando da tipificação, observando, pois, rigidamente, os critérios de intervenção mínima. Em igual sentido opera o princípio da proporcionalidade, cuja observância

atua em favor da intervenção mínima, já que permite aferir se as medidas penais adotadas pelo Estado mostram-se adequadas e necessárias à proteção do bem jurídico.

2 BEM JURÍDICO PENAL

No documento EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO (páginas 43-48)