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O Judiciário legislador

No documento EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO (páginas 118-121)

4.6 A DESCRIMINALIZAÇÃO JUDICIAL DAS DROGAS

4.6.1 O Judiciário legislador

A percepção de que as questões relativas às drogas, sejam lícitas ou ilícitas, estão muito além de aspectos jurídico-legais parece evidente. A discussão sobre o tratamento penal dos entorpecentes não comporta análise exclusivamente dogmática, porque, se assim o fosse, forçoso seria reconhecer a inconstitucionalidade da lei, senão total, ao menos de alguns de seus mais importantes artigos.

Nesse contexto, a apreensão de aspectos relativos à política criminal, sociológicos e históricos é fundamental para se compreender a política de drogas adotada no Brasil, pois se trata de importantíssima questão social que, em verdade, nenhuma nação do

mundo conseguiu resolver a contento. Entre as nações, a regra é o proibicionismo, mas exemplos há, mundo afora, de países que optaram pela legalização das drogas e cada um, atendendo às suas especificidades, construiu legislação própria que, por certo, apresenta aspectos positivos e negativos, soluções e problemas que, com o passar do tempo, devem ser aperfeiçoados ou superados por meio de um processo contínuo de adequação.

Porém, antes de se discutir o tema, cabe uma breve digressão acerca dos termos

despenalização, descriminalização, legalização e legalização regulamentada, para

clarificá-los.

a) Despenalizar significa isentar de pena determinada conduta, o que nos

remete a uma certa contradição, na medida em que direito penal sem pena parece ser um tanto quanto incongruente. Contudo, a isenção de pena promovida pela despenalização diz respeito às penas privativas de liberdade e o art. 28 da Lei de Drogas é o melhor exemplodisso.

b) Ocorre descriminalização quando uma conduta típica deixa de sê-lo, torna- se irrelevante penalmente e ganha foros de licitude frente ao Direito Penal. c) A legalização ocorre quando se revoga a legislação que impõe proibição a

determinada prática ou conduta, tornando-a absolutamente legal, sem restrições de caráter civil ou penal. A título de exemplo, seria como se a atual Lei de Drogas fosse revogada e todas as condutas relacionadas às drogas pudessem ser praticadas livremente (produção, distribuição, comércio etc.).

d) Por fim, a legalização regulamentada diz respeito à criação de regras para o exercício de determinada atividade ou conduta que, por sua importância ou grau de risco, demanda um efetivo controle por parte do Estado. A legalização regulamentada tira o caráter ilícito penal da conduta, mas impõe ao seu exercício uma série de normas, a maioria de caráter civil e administrativo. Somente a eventualidade de não cumprimento dessas normas é que poderia ensejar punição penal, desde que, evidente, tipificado. É o caso das armas de fogo: a princípio, não é proibido tê-las, mas o exercício da posse carece da observação de uma série de requisitos legais que, quando desrespeitados, situam-no no campo da ilegalidade típica.

Feitos os esclarecimentos, evidencia-se, por óbvio, que no Brasil está se promovendo a descriminalização da posse de drogas para consumo próprio e que esse processo está sendo levado a cabo pelo Judiciário, algo com o qual não se pode concordar e as razões para tanto são muitas.

O sistema político no Brasil assenta-se na democracia representativa. A cada quatro anos, o povo brasileiro vai às urnas e escolhe, pelo voto direto, seus representantes em três níveis de governo. O Congresso Nacional, composto pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados, em tese, representa os interesses do povo e espelha a multiplicidade cultural do País e de sua gente. Portanto, tema tão complexo como a descriminalização das drogas não pode passar ao largo do Legislativo, que é o verdadeiro detentor moral e legal da competência para lidar com o assunto.

O Judiciário, que, por sua vez, age por provocação, não pode se furtar ao julgamento de demanda que lhe bate às portas, sobretudo se juridicamente viável. Contudo, ao adentrar a seara da descriminalização como vem sendo feita, reconhecendo, inclusive, o caráter de repercussão geral do caso concreto, está trazendo para si responsabilidade que efetivamente não é sua. Diz-se mais: está avalizando conduta covarde dos congressistas brasileiros, que se recusam à discussão do tema, muito em função do desgaste político que ele pode causar. Os senadores e deputados federais, infelizmente, não têm coragem, tampouco disposição e interesse de assumirem o ônus político de tamanha magnitude, já que o debate em torno da descriminalização do consumo ou, quiçá da própria legalização das drogas, levantará, por certo, opiniões das mais divergentes, incluindo as das camadas mais moralistas da sociedade brasileira.

O passo dado pelo Judiciário é conveniente à classe política. São 11 ministros fazendo as vezes de 594 parlamentares. Se a descriminalização não for bem aceita pela sociedade ou se no futuro representar algum tipo de problema ou perigo social, toda a responsabilidade recairá sobre o Judiciário. A conveniência da situação evidencia- se no fato de que os ministros do Supremo Tribunal Federal não ocupam cargos eletivos, de tal forma que estão livres do escrutínio das urnas, diferentemente dos deputados e senadores.

Além desses aspectos de caráter político, há que se ressaltar que a tomada de tão importante decisão deve ser acompanhada e precedida de amplo debate social, nas academias de Direito e de Medicina, sem prejuízo a outras ciências, como a Sociologia, a Antropologia e a História, nas ciências sociais, bem como a Farmacologia e a Psicologia, ligadas à saúde, que podem contribuir para o aprofundamento da discussão. Fóruns, audiências públicas, estudos científicos, formação de comissões de especialistas, tudo isso não está fora de cogitação quando se pretende lidar com assunto tão controverso e rico.

Porém, malgrado todas essas ponderações, o que se tem são 11 magistrados que, apesar de seu notório saber jurídico, não reúnem condições técnicas para fundamentar tão relevante decisão sobre questão que vai muito além das fronteiras do Direito. Basta citar, por exemplo, que o ministro Edson Fachin, para proferir seu voto no julgamento do recurso em que se pretende a descriminalização da posse de drogas para o consumo, relatou aconselhar-se em conversas com Dráuzio Varella que, embora médico conhecido e respeitado, não pode ser considerado um especialista no tema.

Não se está aqui a diminuir a figura dos ministros do STF, tê-los por incompetentes. Muito pelo contrário, trata-se, em verdade, de reconhecer que a tarefa é sobre- humana e que não há pessoa que concentre em si todos os saberes necessários à construção de uma saída viável ao problema. O único meio é o debate em nível nacional, em processo legislativo, e, definida a opção pela descriminalização, ou, quiçá, pela legalização, que a mesma ocorra, desde que a postura assumida seja de consenso, firmada e fundamentada em estudos prévios, consideradas as peculiaridades da sociedade brasileira, seus valores e interesses.

No documento EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO (páginas 118-121)