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O princípio da intervenção mínima

No documento EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO (páginas 32-36)

1.4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS

1.4.1 O princípio da intervenção mínima

O Estado tem inúmeras funções e objetivos, que, de um modo geral, convergem à promoção do bem-estar de seus cidadãos, algo que não se alcança sem a manutenção da ordem e da paz social, já que não parece razoável que uma sociedade possa desfrutar bem-estar vivendo em meio à desordem e à insegurança. À consecução de seus objetivos, o Estado dispõe de diversos elementos, entre eles, o sistema jurídico, por sua vez, composto por vários subsistemas (civil, administrativo,

trabalhista, penal etc.), cada qual com um campo de atuação próprio e destinado à resolução de lides específicas.

Desde já, portanto, evidencia-se o caráter fragmentário do sistema jurídico, do qual o Direito Penal não é mais do que uma parte, um fragmento que auxilia na promoção da desejada ordem e paz social, mas que não pode responder sozinho por tal missão. Ora, os bens jurídicos protegidos só recebem tal status porque são dotados de relevância social e prestam-se, de alguma forma, à realização da felicidade, do bem- estar e do perfazimento pessoal dos cidadãos, concretizando, assim, a própria noção de dignidade humana. Estão, contudo, sujeitos a uma infinidade de ataques que podem lhes causar lesão. Porém, nem todos os ataques importam ao Direito Penal. Um automóvel, por exemplo, é um bem jurídico, compõe a esfera do patrimônio do indivíduo e é importante à realização da dignidade humana sob o ponto de vista material. Pode ser lesionado por uma má prestação de serviço ou por um acidente de trânsito eivado de culpa. Tais circunstâncias não dizem respeito a condutas penais, tratando-se de ilícitos civis, cuja reparação há de ser buscada na esfera adequada. Porém, há ataques que são intoleráveis, representam profunda agressão ao convívio social e carecem de intervenção estatal mais incisiva, a fim de se restaurar a ordem social. Quando um indivíduo pratica um roubo, além do ataque ao bem jurídico protegido, há que se considerar a violência ou a grave ameaça inerente à conduta que fomenta o sentimento de insegurança social, de modo que o Direito Civil ou o Administrativo não mais se apresentam como instrumentos eficazes de proteção ao bem jurídico e de restauração e preservação da ordem pública.

Portanto, a defesa dos bens jurídicos é realizada de forma fragmentada; divide-se o campo de atuação do Direito entre condutas penalmente relevantes e irrelevantes, de modo que o bem jurídico esteja sempre amparado de forma proporcional à ofensa recebida. Diz-se proporcional, porque, ao atuar somente sobre condutas penalmente relevantes, o Estado reserva seu lado mais opressor e forte, o Direito Penal, às condutas que realmente carecem desse tipo de intervenção. O socorro à lei penal nas situações em que outros subsistemas carecem de efetividade evidencia outro aspecto do Direito Penal, o de subsidiário do sistema jurídico, na medida em que se apresenta como via alternativa e última à proteção do bem jurídico.

Sempre tendo por premissa as modernas funções que lhe são atribuídas, de concretização de um Estado democrático de direito pautado na promoção da dignidade humana, há que se considerar que, em regra, o Direito Penal não é a melhor opção à consecução de tal objetivo. Isso porque, graças ao seu caráter sancionador e de intervenção na esfera privada do indivíduo, restam maculados alguns aspectos da dignidade humana quando se impõe a necessidade de persecução penal, notadamente quando se faz necessária a privação de liberdade.

A defesa dos valores sociais não se faz somente no campo jurídico. Em sentido absolutamente mais amplo, a educação formal recebida nas escolas, a família e a religião também atuam como agentes gestores de risco e defensores de tais valores. Porém, quando os conflitos surgem e a resolução se faz impossível pelas vias não jurídicas, o Direito entra como mediador, mas nunca lançando mão, imediatamente, de seu braço mais forte e opressor. Diz-se, portanto, que o Direito Penal é subsidiário, porque socorre, ajuda, auxilia o Estado na consecução de seus objetivos, atuando no pano de fundo e restringindo sua atuação a casos específicos.

De outro giro, ao enfatizar o caráter subsidiário do Direito Penal, não há que se cogitar o termo sob sua outra significância, ou seja, subsidiário como sinônimo de secundário, de importância reduzida ou diminuta. Não se pode hierarquizar os subsistemas jurídicos, estabelecer que o Direito Civil seja mais importante que o Constitucional, por exemplo. Os subsistemas funcionam em harmonia, dando unidade ao sistema como um todo, de modo que é possível criar critérios de diferenciação, nunca, porém, de hierarquização entre eles. O Direito Civil é evidentemente mais amplo do que o Penal, afinal, a maioria das relações humanas é de caráter civil e assim devem ser, já que, se um dia as relações penais suplantarem as civis, estará instaurado o caos social. A supremacia da atuação do Direito Civil nas relações sociais não importa dizer, por seu turno, que ele seja mais ou menos importante que o Direito Penal, daí afastar-se a concepção de subsidiário no sentido de somenos importância.

Fragmentariedade e subsidiariedade são aspectos do Direito Penal que autores como Bottini (2013) tratam como princípios constitucionais penais autônomos. Há outros, porém, como Nucci (2012), que os concebem como corolários do princípio da intervenção mínima, porque enfatizam o Direito Penal como ultima ratio. Mesmo sendo um legítimo instrumento de gestão de risco, como o caracteriza Bottini (2013),

ainda assim seu emprego há de ser extremamente necessário, não se admitindo a intervenção penal em searas que não lhe sejam pertinentes. O Direito Penal, como

ultima ratio, deve intervir tão somente quando todas as possibilidades de proteção a

bens jurídicos tutelados se mostrem inócuas. Daí resulta seu caráter de subsidiariedade, já que atua no pano de fundo do controle social, tendo o Direito Civil e o Administrativo, por exemplo, a primazia nessa tarefa.

A incidência do princípio da intervenção mínima na esfera penal justifica-se sob diversos aspectos. Primeiro, como já aludido, por se tratar do braço mais forte do Direito e aquele com maior potencial de dano à dignidade humana, mesmo que de forma legítima4

. Assim, se a toda contenda entre particulares ou se a qualquer suposto abalo da ordem pública o Estado respondesse com o Direito Penal, tal resposta teria a tendência de ser desproporcional, porque estar-se-ia punindo demasiadamente forte condutas que, a princípio, não careceriam de tamanho rigor. As consequências de tal postura podem ser as mais variadas, desde o fomento da injustiça à banalização do Direito Penal.

Além disso, se a tudo se respondesse com a lei penal, haveria um estado de terror; o bem-estar social seria promovido muito mais pelo temor da punição do que pelo sentimento nobre de respeito às normas e pessoas. O Direito Penal não pode ser um grande manto de medo que cobre a sociedade e a conduz com mão-de-ferro. Pelo contrário, deve atuar no íntimo de cada um como um bastião de certeza e segurança: aos que se dispõem às condutas ilícitas, a certeza de que o Estado possui normas que não admitem tal comportamento; aos que se coadunam com as normas, não as infringindo, a segurança de que não serão inoportunamente perseguidos, assim como serão punidos os que optam pela infração.

Portanto, o princípio da intervenção mínima se efetiva num contexto de extrema necessidade de perquirição penal, no qual outros freios legais não obstaram a conduta delitiva que, por sua vez, deve mostrar-se relevante. Em consonância com o princípio da lesividade, inclusive, não se mostra adequada a incidência penal sobre conduta que não causou relevante dano ou ao menos expôs a perigo concreto o bem jurídico

4 Faz-se referência às penas privativas de liberdade que, a princípio, representam afronta à dignidade humana, posto que contrariam a condição natural do homem, de ser livre, porém, se justificam, tornando-se legítimas, quando decretadas sob o manto do devido processo legal.

tutelado, de modo que no limiar da intervenção mínima atua o princípio da insignificância, outro de seu corolário e princípio a ela paralelo. Quando a lesão ou exposição a perigo do bem jurídico mostra-se insignificante, algo quase sem valor, o princípio da insignificância indica ao Direito Penal que ele deve se manter afastado, que sua intervenção não se justifica.

No que tange o princípio da intervenção mínima, conclui-se, portanto, que o Direito Penal é apenas uma parte, um fragmento de todo o ordenamento e que seu poder de coerção é o traço marcante que o distingue dos demais subsistemas jurídicos. Por isso, dada a violência da resposta penal em face das demandas que lhe são apresentadas é que o Direito Penal atua de forma subsidiária, em conjunto e no pano de fundo das contendas sociais, intervindo minimamente, senão quando justificadamente necessário, por impossibilidade de apaziguamento social pelas vias do Direito Civil, Administrativo etc. O Direito Penal, orientado pelo princípio da intevenção mínima, como ultima ratio, atende às perspectivas de um Estado democrático de direito comprometido com o respeito à dignidade da pessoa humana na medida em que condutas insignificantes, irrelevantes penalmente, não são objeto de sanção penal.

No documento EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO (páginas 32-36)