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Do perigo abstrato do consumo de drogas – art 28 da Lei 11.343/2006

No documento EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO (páginas 116-118)

4.4 O PERIGO DAS DROGAS

4.5.3 Do perigo abstrato do consumo de drogas – art 28 da Lei 11.343/2006

O art. 28 da Lei de Drogas dispõe sobre o porte de substâncias entorpecentes para consumo próprio, que se diferencia do tráfico no que se refere ao elemento subjetivo do tipo27, que é o dolo específico de portar droga para consumo pessoal. Também é classificado doutrinariamente como crime de perigo abstrato e tem o mesmo objeto jurídico do tráfico, a saúde pública. Note-se que a proteção jurídica não incide sobre a pessoa, a saúde individual, mas, sim, sobre a saúde pública, bem jurídico coletivo. Isso porque ainda vigora a presunção normativa de perigo sobre a conduta de adquirir,

guardar, ter em depósito, transportar ou trazer droga consigo (BRASIL, 2006).

A prevalência da presunção de perigo no art. 28 da referida lei remete à ideia de que a presença de drogas no âmbito social será, ao legislador, sempre perigosa à saúde pública, de modo que é impossível considerar que a droga perca sua periculosidade ao ser transferida das mãos do traficante às do usuário. Por isso, criminaliza-se o porte, e não consumo.

Crê-se que, sob critérios dogmáticos, a tipificação do art. 28 da Lei de Drogas seja menos problemática do que seu art. 33. Inicialmente, cabe ressaltar que o art. 28 não pune o consumo, mas o adquirir, o guardar, o ter em depósito, o transportar ou o trazer a droga consigo para consumo pessoal. A punição ao consumo seria, segundo Roxin (2008), uma intervenção penal descabida na esfera pessoal do indivíduo, porque, ao fazer uso de drogas, estaria o agente autolesionando sua saúde física e mental de forma consciente, o que não pode ser alcançado pela lei penal, cujo intuito é a proteção contra ataques alheios, e não de si mesmo.

27 Ambos têm como elemento subjetivo o dolo. Contudo, no art. 28, o dolo é específico em realizar qualquer um dos núcleos do tipo para consumo próprio, enquanto que no tráfico (art. 33) não há dolo específico, embora Nucci (2012a) entenda que devesse haver uma finalidade específica, consistente no caráter de mercância, na intenção de comercializar a droga.

Assim, ao punir as condutas expressas nos verbos nucleares do tipo, que, aliás, estão presentes também no art. 33, o legislador ao menos guarda coerência, na medida em que o fundamento à punição do porte de drogas para consumo pessoal é a periculosidade da conduta, lastreada na concepção normativa de perigo (o mesmo fundamento do tráfico), porque não se pode admitir a presunção de perigo das drogas quando se trata de tráfico, e a ausência de tal presunção quando se trata de consumo. No que tange à proporcionalidade em sentido estrito vinculada às penas cominadas ao delito, não se vislumbra medida de excesso por parte do legislador. Pelo contrário, são proporcionais as penas de advertência, prestação de serviços à comunidade e medidas educativas, posto que se coadunam com a gravidade da conduta, que, nas palavras de Nucci (2012a, p. 233), “não se trata de infração de menor potencial ofensivo, mas de ínfimo potencial ofensivo”. Nesse sentido, o fenômeno da despenalização28 do porte de droga para consumo pessoal que promoveu o art. 28 da Lei 11.343/2006, nas considerações de Nucci (2012a), vai ao encontro dos preceitos da Convenção de Viena de 1971, sobre substâncias psicotrópicas, que recomenda tratamento mais brando aos dependentes e usuários, o que demonstra a adequação da norma no que se refere às penas aplicadas.

Contudo, a crítica lançada contra o art. 33 no que diz respeito à ausência de critérios objetivos de diferenciação entre usuários e traficantes há de ser repetida ao art. 28. Os critérios e circunstâncias distintivos dispostos no parágrafo 2º do artigo são, por vezes, subjetivos e de difícil apreensão no seio do processo. Passados quase dez da edição da lei, ainda muito se discute sobre o que seria pequena ou grande quantidade de droga. A jurisprudência tende a ser mais tolerante com a maconha do que com cocaína ou crack, admitindo que mesmo quantidades maiores da droga na posse do agente venham a ser reconhecidas como sendo para o consumo pessoal. Todavia, é impossível deixar de se reconhecer cabível também ao art. 28 a já comentada crítica de Carvalho (2013), que chama atenção à afronta ao princípio da proporcionalidade causada pela condenação de usuários como se traficantes fossem.

28 A despenalização diz respeito, por óbvio, à pena restritiva de liberdade, porquanto que o art. 28 ainda prevê a aplicação de outras modalidades de pena, ditas alternativas (advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo).

Considerado à luz dos preceitos dogmáticos que regem os crimes de perigo abstrato, bem como sob o critério de proporção das penas e a função de proteção a bens jurídicos constitucionalmente valorados que a lei penal possui, crê-se que o art. 28 da Lei 11.343/2006 goza de legitimidade e constitucionalidade à punição dos portadores de substâncias entorpecentes para o consumo pessoal. Contudo, sua constitucionalidade está sendo questionada perante o Supremo Tribunal Federal, num processo ao que se pode denominar de descriminalização judicial do porte de drogas para o consumo pessoal e cuja fundamentação, em linhas gerais, diz respeito exatamente ao aspecto evidenciado por Roxin (2008), de impossibilidade de punição ao usuário por autolesão consciente, conduta que está inserida na livre escolha do indivíduo no seio de sua vida íntima e privada.

Acredita-se que a discussão do tema seja pertinente ao estudo aqui desenvolvido, haja vista a posse de droga para consumo pessoal tratar-se de delito de perigo abstrato, condição que será subvertida, se declarada a inconstitucionalidade. Isso porque as condições necessárias para tanto seriam, por primeiro, desconsiderar o objeto jurídico do art. 28, a saúde pública e, por segundo, reconhecer que não há perigo à saúde pública (objeto jurídico já desconsiderado preliminarmente), mas, sim, lesão à saúde individual (novo objeto jurídico), alterando a classificação do delito, que deixaria de ser de perigo abstrato, passando a delito de lesão, cuja punibilidade é impossível, por tratar-se de autolesão.

No documento EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO (páginas 116-118)