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O perigo das drogas lícitas

No documento EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO (páginas 96-99)

4.4 O PERIGO DAS DROGAS

4.4.1 O perigo das drogas lícitas

No que diz respeito às drogas lícitas, há que se abordar a assunção do risco considerando as diferentes espécies de drogas. Aquelas eminentemente medicinais, chamadas de drogas úteis, produzidas pela indústria farmacêutica com o objetivo de tratar ou curar enfermidades ou seus sintomas, não apresentam maiores problemas. Ou seja, mesmo sendo drogas, a sociedade assume o risco porque a princípio são produzidas visando ao bem-estar humano. Não há o que se discutir.

O problema surge quando lidamos com drogas lícitas sem utilidade médica alguma (como o tabaco), ou de utilidade discutível (como o álcool)17, e que ainda assim são legais, embora se apresentem como altamente perigosas, tanto pelo poder de desenvolver dependência quanto pelo males que causam. O álcool é uma típica droga de abuso e, apesar de todos os problemas que possui, a sociedade assume o risco que ele encerra. Jogar a explicação desse fenômeno na conta da hipocrisia humana é solução reducionista; a questão é mais complexa. A aceitação do álcool na sociedade de hoje vai muito além da incoerência diante da proibição de outras drogas, trata-se de questão cultural e, também, econômico-financeira.

17 Quando se diz que o álcool tem utilidade discutível é porque alguns estudos indicam que o consumo moderado de certas bebidas alcóolicas tem efeito profilático para algumas doenças. O principal e talvez mais conhecido exemplo seja o do vinho, apontado como benéfico ao sistema cardíaco, assim como a cerveja, por seus efeitos diuréticos.

Culturalmente, o álcool desde há muito esteve presente na vida do homem. A abordagem histórica nas considerações preliminares ao capítulo remete a tal conclusão. Pode-se dissertar páginas a fio trazendo momentos, dos mais variados, em que o álcool se faz presente na vida social e que não há nenhum tipo de contestação ou contrariedade a respeito. De comemorações esportivas a posses de presidentes da República, brinda-se tudo com álcool. No interior do País, até velórios são regados a cachaça; é a famosa tradição de “beber o morto” (GUIMARÃES, 2012). Reuniões de negócios, celebração de acordos, aniversários, casamentos etc. são também motivos para o consumo de bebidas alcóolicas. Uma das possíveis explicações para isso repousa no aspecto cultural e na tradição que recebemos de nossos antepassados.

A herança cultural é algo tão poderoso que não pode ser desprezada. A história da evolução do pensamento e do progresso técnico-científico do homem18 é feita a partir da ideia de acumulação, já que de geração após geração a herança acumulada por anos é repassada de ascendentes a descendentes. O surgimento da escrita, aproximadamente 4.000 anos a.C., deu impulso significativo a esse processo e propiciou, sem dúvida, que o homem registrasse suas experiências sensoriais, empíricas, sociais, pessoais etc., transmitindo, assim, mais facilmente e com segurança, toda ordem de conhecimento que está na base do processo evolutivo. Diz- se que, não fosse pela herança cultural recebida, o homem estaria hoje vivendo na Idade da Pedra, recomeçando sempre do zero, na medida em que lhe seria negado o conhecimento acumulado pela geração anterior.

Se, de um lado, deve-se o avanço técnico e científico à herança cultural, algo que se apresenta como positivo, por outro, não se pode deixar de considerar que tal herança é uma via de mão dupla e que traz, também, experiências valoradas negativamente. Noutras palavras, os antepassados transmitem tudo de bom e de ruim que encerraram suas existências na Terra; não cabe rejeitar um ou outro aspecto, mas aceitá-los como parte integrante do processo evolutivo. O homem, dotado de livre arbítrio, ao receber a herança cultural do consumo de álcool e tabaco, optou por assumir os riscos de tais práticas. E mais: escolheu dar continuidade a um costume, a uma tradição. Mesmo

18 O conceitos de evolução e progresso são relativos e muito discutidos, dependem do referencial que se toma, pois nos remetem à ideia de melhora, de algo que, com o passar do tempo, torna-se melhor.

que tivesse optado pelo não consumo, isso não evidenciaria uma rejeição da herança cultural, mas tão somente outro aspecto do processo evolutivo, lastreado em novas experiências, em estudos e avanços da ciência, por exemplo.

O consumo do tabaco é uma mostra disso, posto que, vindo de uma tradição herdada há séculos, era absolutamente comum fumar em locais fechados, inclusive públicos como restaurantes, bares e repartições, algo que, nos dias hoje, é impensável. Rejeitou-se o fumar em locais fechados? Não, o homem apenas evoluiu, a partir da constatação de que pesquisas demonstraram a existência do chamado fumante passivo, que sofre os males do cigarro mesmo sem fumar. Dessa evolução, mas a ela atrelada, outra foi promovida: a tomada de consciência por parte daqueles que fumam em não impingir aos demais as consequências de seu vício, muito embora tal consciência tenha natureza na força coercitiva da lei.

De outra banda, há que se considerar também que a mudança de postura no que diz respeito à rejeição do álcool como droga lícita pode acarretar um risco maior do que o intrínseco à própria substância, já que experiências anteriores não se mostraram felizes. Notório é o fracasso do proibicionismo norte-americano que, em 1918, aprovou a 18ª emenda à Constituição, possibilitando que no ano seguinte fosse instituído o

Volstead Act, que tornou ilícita a fabricação, armazenagem, distribuição, importação,

exportação, comércio e consumo de álcool nos Estados Unidos.

As consequências sociais foram bem graves, sobretudo na esfera da segurança pública, já que organizações criminosas locupletaram-se grandemente da ilicitude do álcool, atendendo à demanda de uma sociedade que continuou ávida consumidora de bebidas alcóolicas, mesmo em face da proibição, conforme relata Taffarello(2009). Optar por um modelo proibicionista, a princípio, é fazer com o álcool o mesmo que hoje é feito com outras drogas ilícitas (maconha, cocaína, crack etc.), ou seja, transferir toda essa milionária engrenagem ao mundo do crime.

Mais um aspecto importante que não pode ser desconsiderado quando se trata da aceitação do risco do álcool atuando na sociedade é seu caráter econômico. A indústria do álcool é bilionária e faz girar em torno de si uma enorme engrenagem financeira, alimentando vários setores da economia, gerando empregos direitos e indiretos, além de se constituir em uma importante fonte pagadora de impostos.

Em resumo, no que tange às drogas lícitas, sobretudo com relação ao álcool, conclui- se que o modelo regulatório assumido pelo Brasil é o mais adequado e que não há razão, nem sequer condições culturais e estruturais para mudança. Não se trata de posicionamento hipócrita ou incoerente assumir o risco do álcool e negar o de outras drogas, mas de questão cultural intrínseca à sociedade brasileira.

No documento EDUARDO ROMUALDO DO NASCIMENTO (páginas 96-99)