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CAPÍTULO 1- O MUSEU DE ARQUEOLOGIA DE ITAIPU E SUAS

1.2 Identificação do Museu de Arqueologia de Itaipu

1.2.3 A invenção do Museu de Arqueologia de Itaipu

Letícia Julião afirma que a criação de museus não era um dos focos principais da política patrimonial na década de 50, principalmente se comparado à proteção do

54 patrimônio edificado. No entanto, as iniciativas museológicas desse período foram inovadoras e se mantiveram ao longo da história da instituição. Para a autora,

[...] os chamados museus regionais não apenas conformaram a tradução museológica do pensamento patrimonial forjado pelo SPHAN, como operaram, pode-se dizer, uma virada silenciosa na cultura museológica do país [...] (2009, p.142)

O Museu de Arqueologia de Itaipu foi pensando como um desses museus regionais, conformado à influência da política cultural dos anos 70. Maria Cecília Londres Fonseca também expõe o caráter inovador dessa tipologia que, diferente dos museus nacionais, buscava reconhecer os valores históricos e artísticos da produção popular: “esse era também o sentido que presidia a concepção dos museus regionais, que deviam informar o visitante sobre a vida social na comunidade, ou melhor, mais do que isso, fazer com que sentissem que a vida ali havia existido.” (FONSECA, 2005, p.106 - grifo nosso)

De acordo com Julião (2009, p. 144), Rodrigo Melo Franco de Andrade confirmou que o órgão teve poucas ações sobre o patrimônio arqueológico e que sua proteção ficava mais sobre a competência do Museu Nacional. Podemos aferir ainda que a relação entre o acervo arqueológico e o Instituto continuou não sendo a tônica da política de preservação. Ao longo da história da instituição voltada para a preservação do patrimônio brasileiro, apenas dois museus36 foram criados sob essa temática e apenas o MAI se manteve no quadro de unidades vinculadas ao IPHAN. Apesar da pouca intimidade com o tema arqueologia, em 1961 é promulgada a Lei Federal número 3.924, que dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos do país, encarregando todos os seus cuidados ao IPHAN.

O projeto de criação do Museu, empreendido pelo arquiteto Edgard Jacintho, chefe do Departamento de Conservação e Restauração, foi pensado para dotar o espaço de uma função didático-científica comprometida com a salvaguarda e a difusão do patrimônio cultural de natureza arqueológica, alinhado às diretrizes do Ministério da Educação e Cultura - MEC37. Segundo o projeto, embora centrado no acervo arqueológico, as suas ações deveriam manter uma relação direta e integradora com seu

36 Um deles é o Museu de Arqueologia de Itaipu, o outro é o Museu de Arqueologia e Artes Populares, situado em Paranaguá no Paraná. Esse último foi criado em 1962 através de um convênio entre DPHAN e a Universidade Federal do Paraná, com vigência entre 1962 a 1969.

55 entorno e suas atividades deveriam envolver também os sítios arqueológicos da região. De acordo com o Plano Museológico 2007 do MAI, sobre o projeto de criação do MAI, No que tange à estreita relação da comunidade local com o bem em si, assim como com o passado histórico da região caberiam ao acervo a ser abarcado pela instituição e às futuras exposições contemplar tal relação, posto que se centrariam, principalmente, nos vestígios arqueológicos de ocupações territoriais anteriores coletados ao longo do litoral do Estado do Rio de Janeiro, compreendendo, no período, a faixa de Niterói a Cabo Frio. Desta forma, se explicitaria e chamaria à atenção a perpetuação e as modificações ocorridas na economia de subsistência dessa população local através da pesca, recuperando no passado pré-histórico origens dessa cultura. (Plano Museológico - MAI, 2007, p.6. Arquivo Técnico do Museu de Arqueologia de Itaipu)

Apesar do esforço do projeto para relacionar a atividade de pesca atual às origens pré-históricas, essa ideia não foi muito bem-sucedida. Como afirmou Fonseca sobre os museus regionais, os visitantes poderiam sentir que a vida havia existido ali, mas somente há 8 mil anos.

A ocupação do interior das ruínas por um museu era usada também como uma justificativa para garantir, sob uma ótica da preservação da edificação, a proteção das mesmas. É certo que não houve, em toda a história do MAI, nenhum caso relevante de depredação do patrimônio arquitetônico e a criação do museu tornou definitivamente inviável que os moradores voltassem a ocupar o espaço para habitação.

A pesquisa também estava contemplada no projeto de criação do MAI: houve a intenção de estabelecer um convênio entre o IPHAN e o Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense - UFF para a instalação de um laboratório de antropologia no Museu, no intuito de promover o ensino e a pesquisa de antropologia e arqueologia dentro da instituição. Foi elaborado por Renato Soeiro38 um anteprojeto para essa ação, mas nem o convênio nem o laboratório foram efetivados e as pesquisas relativas aos afloramentos locais ficaram sob a responsabilidade do Museu Nacional. É importante lembrar que, até os dias atuais, os salvamentos arqueológicos efetuados na

38 Renato Soeiro assume a direção do SPHAN em 1967, após a aposentadoria de Rodrigo Mello Franco de Andrade.

56 região continuam sendo realizados pela equipe do Museu Nacional, para onde se destinam também os artefatos encontrados recentemente39.

Maria de Simone Ferreira (2012, p.16) afirma que não é apenas a proximidade com o Sambaqui da Duna Grande que define o caráter arqueológico do Museu, mas potencialmente é a querela entre arqueólogos profissionais e amadores e a busca pela profissionalização dessa profissão que vai influenciar a criação do MAI. Maria Cristina de Oliveira Bruno reconhece que os processos museológicos sempre estiveram vulneráveis às intenções e problemas externos, afirmando ainda que essa relação entre política e ciência já era uma ação recorrente nos museus de arqueologia desde o século XIX nos Estados Unidos e na Europa:

Em primeiro lugar, a conivência entre processos políticos e procedimentos científicos passou a nortear a vida dos museus e, em outras décadas, foi responsável pela estruturação de outros modelos museológicos preservacionistas. (...) mostram a importância determinante de certas personalidades à frente dos processos museais. Estes conseguiram moldá-los por meio de seus princípios ideológicos (BRUNO, 1999, p.66)

A evidência desse conflito, no caso do MAI, está no empoderamento profissional que se percebe a partir da promulgação da Lei Federal 3.924/61 e do funcionamento do Projeto Nacional de Pesquisas Arqueológicas – PRONAPA, uma parceria entre o IPHAN e o Smithsonian Institution, que funcionou entre 1965 e 1971. Além disso, profissionais arqueólogos, como Lina Maria Kneip, estavam diretamente ligados às escavações locais e à destinação que seria dada aos vestígios encontrados. Sob essa ótica, é interessante notar que a maior coleção do Museu, aquela recolhida ao longo dos anos na Duna Grande e com os moradores locais pelo arqueólogo amador Hildo de Mello Ribeiro, foi considerada, pelos arqueólogos profissionais, sem finalidades científicas. A parceria com o Smithsonian Institution é reflexo de uma influência sobre a profissionalização do campo da arqueologia e dos museus que já se via no país desde meados da década de 1950, mas teve pouca repercussão no que diz respeito à comunicação museológica:

A partir desse momento, o país passou a ser decifrado arqueologicamente por equipes estrangeiras - especialmente - francesas e norte-americanas. Estes “programas” ou “missões” - dependendo da origem - tiveram uma singular importância para o encaminhamento das estratégias de pesquisa e formação de pessoal, mas pela própria origem, não tiveram grandes envolvimentos com as instituições museológicas. O tratamento e a comunicação dos vestígios

39 O último afloramento no sambaqui Duna Grande aconteceu em 2010 e o resgate dos vestígios foi realizado pela equipe do Museu Nacional.

57 recuperados, a partir de grandes intervenções arqueológicas, não foram considerados como prioridades. (BRUNO, 1999, p.110)

No âmbito da gestão do Museu essa disputa ganha novos contornos quando analisamos a produção documental. Desde o tombamento, o responsável pelas ruínas e interlocutor frequente na relação entre bem tombado, moradores e IPHAN é o Sr. Hildo de Mello Ribeiro. Ele relata ao Instituto tudo o que considera irregularidades da região: retirada de árvores, construções no interior e no entorno das ruínas, retirada de areia das dunas, instalações de placas e propagandas. Por seu interesse e empenho em proteger as ruínas e a Duna, ele recebe do IPHAN o título de arqueólogo amador e passa a recolher os afloramentos arqueológicos não só na Duna, mas também junto aos moradores locais.

Com a criação do Museu e a chegada de uma equipe de arqueólogos profissionais, a pertinência do seu trabalho é questionada e ele encaminha ao IPHAN um pedido de confirmação de suas credenciais. Este, por sua vez, já tendo entregue a coordenação cultural do Museu à arquiteta Maria Lucia Goulart e à arqueóloga Lina Maria Kneip, ambas funcionárias do Museu Nacional, esclarece em ofício que o Sr, Hildo não tem direito a reclamar vínculo empregatício ou indenizações e que entre outras funções deve “Colaborar com os atuais encarregados do Museu de Arqueologia, apoiando-os sempre que solicitado e quando se verificar situação irregular ou ameaça ao monumento.”(Ofício. 2 de fevereiro de 1979. Arquivo Central: Arquivo Noronha

Santos – IPHAN).

As exposições do MAI estavam todas subordinadas ao acervo arqueológico. No entanto, a Arqueologia, tanto nas exposições, como no desenvolvimento das pesquisas e ações técnicas do Museu, aparece mais como um dado subsidiador desse acervo do que incentivador de pesquisa, problematizador das condições de preservação dos sítios arqueológicos ou de suas relações com a população local.

Qual era então a intenção de afirmar de modo tão categórico o passado pré- histórico da região? Por que era tão importante naquele momento enfatizar um passado mais antigo que o da própria edificação ou da população do entorno?

No livro A Invenção das Tradições, Eric Hobsbawm afirma que “toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal” (1997, p. 21), de modo a enraizar na mais remota

58 antiguidade a sua existência. Sendo o oposto do novo, as tradições inventadas procuram identificar-se como “naturais” e, dessa forma, não precisam justificar ou definir aquelas ações realizadas em prol de seus próprios interesses.

Analisando a Europa no século XIX, Hobsbawm afirma que as tradições inventadas foram realizadas oficial e não oficialmente, sendo que as oficiais possuíam um caráter conscientemente político. Sendo assim, “de acordo com a ordem natural das coisas, a consequente invenção das tradições políticas foi mais consciente e deliberada, pois foi adotada por instituições que tinham objetivos políticos em mente” (Idem, p.271). O

autor ressalta ainda que as invenções transmitidas com maior êxito eram aquelas que o público sintonizava de imediato, tais como feriados, heróis e símbolos oficiais públicos.

A produção em massa de monumentos públicos era uma característica da nova república francesa e, como afirma Fonseca (2005, p.105), a orientação de preservação e a atribuição de valores da política de patrimônio brasileira era influenciada diretamente pela tradição europeia de constituição de patrimônios nacionais. É importante lembrar que no processo de tombamento do Recolhimento de Santa Teresa inexiste referência ao destino que será dado ao conjunto arquitetônico tombado.

Hobsbawm (1997, p.17) explica ainda que as tradições inventadas podem ser classificadas em três categorias: aquelas que estabelecem ou legitimam a coesão social de comunidades reais ou artificiais, aquelas que legitimam instituições, status ou relações de autoridade e aquelas que inculcam ideias, valores e padrões de comportamento.

Guardadas as devidas proporções na transposição das análises que Hobsbawn faz a partir das Europa, a busca por essa conexão entre os moradores locais e os vestígios arqueológicos pode ser interpretada como uma tentativa, ainda que frustrada, de coesão social. Por outro lado, a existência concreta de tantos sítios arqueológicos é o que legitima a temática do Museu e este colaborou para fortalecer a luta dos arqueólogos para a profissionalização do seu trabalho. Tombar as ruínas e criar dentro delas uma instituição ligada diretamente à certificação do patrimônio certamente é estabelecer e afirmar uma relação de autoridade.

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