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CAPÍTULO 1- O MUSEU DE ARQUEOLOGIA DE ITAIPU E SUAS

1.2 Identificação do Museu de Arqueologia de Itaipu

1.2.2 As condições do tombamento

De acordo com o processo de tombamento do Recolhimento de Santa Teresa, data de 1946 a primeira busca do então Diretor Geral do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional32 - DPHAN, Rodrigo Melo Franco de Andrade, pela propriedade legal do terreno. O Diretor enviou diversos ofícios buscando essa informação: para as prefeituras de Nova Iguaçu e de Niterói, para a Secretaria de Patrimônio da União, para o Arquivo Público Nacional e para a Priora do Convento de Santa Teresa. Nesse mesmo ano o prefeito de Niterói afirma que o terreno pertence à Companhia Territorial Itaipu S. A., empresa responsável pela urbanização do bairro. Essa informação parece ser ignorada pelo diretor do DPHAN, talvez pela falta de documentação cartorial comprovante, e continua buscando, via ofícios, a proprietária legal. Data de 1948 a primeira recomendação de tombamento da Divisão de Estudos e Tombamentos.

Em outro documento, ainda no ano de 1948, aparece pela primeira vez uma referência aos moradores do local. O técnico responsável por uma inspeção na área se pronuncia sobre a excepcionalidade do conjunto arquitetônico e reitera uma denúncia informal dos moradores locais sobre a instalação de um gerador no interior das ruínas. Fala ainda que “a praia fronteira ao Convento é ocupada por uma colônia de Pesca, o

32 O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN começou a funcionar em 1936 dentro do Ministério de Educação e Cultura – MEC. Em 1946 o SPHAN passa a ser denominado Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – DPHAN. Em 1970 o DPHAN passa a ser o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Em 1979 o Instituto é divido em Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN e Fundação Nacional Pró-memória – FNpM. Em 1981 é criada a Secretaria de Cultura - SEC e o SPHAN passa a ser um sub-secretaria. Em 1985 com a criação do Ministério da Cultura – MinC, o SPHAN volta a ser uma secretaria. Em 1990, com a extinção do MinC, do SPHAN e da FNpM, é criada uma Secretaria de Cultura ligada diretamente a Presidência da República e também o Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural - IBPC. Em 1992, o MinC. Por fim, em 1994 o IBPC volta a se chamar Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, como permanece até hoje.

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que contribue, a nosso vêr, para maior interêsse do aspecto do conjunto, e do monumento [...]” ( processo de tombamento s/numeração. Arquivo Técnico do Museu

de Arqueologia de Itaipu)

Sabemos que, ao contrário do silêncio que se fez quanto às sondagens da posse do terreno, os pescadores, organizados através da Colônia de Pescadores Z-10, entraram em contato duas vezes no ano de 1950 com o DPHAN. Na primeira vez, solicitam o tombamento das ruínas, e no segundo momento entregam uma planta com as condições atuais do terreno, solicitando que fosse incluída ao processo de tombamento.

Figura 1 - Recolhimento de Santa Teresa antes do restauro e consolidação das ruínas

Fonte: Arquivo técnico - MAI. Sem data.

É possível afirmar também que os pescadores entraram em contato com o Governo do Estado do Rio de Janeiro. Consta no processo de tombamento uma cópia da documentação enviada pelo governador do Estado no ano de 1954 ao presidente da República, Getúlio Vargas, solicitando que o bem em questão viesse a servir de sede à Colônia de Pescadores33, a pedido dos próprios pescadores, que se comprometeram em respeitar seu estilo “barroco”.

49 Ainda em 1954, logo após esse pedido do governador ao presidente, seguem as recomendações do Chefe da Seção de História do Ministério da Educação e Cultura, Sr. Carlos Drummond de Andrade e do DPHAN. Em ambos os documentos, os responsáveis solicitam que a concessão feita pelo Presidente da República à Colônia de Pescadores, só se efetive mediante a obrigação assumida de que qualquer projeto de obras seja submetido à aprovação do DPHAN.

Considerando que não foi possível apurar os antecedentes da propriedade, o DPHAN inscreve os remanescentes do Recolhimento de Santa Teresa no livro do Tombo das Belas Artes em 1955.

Embora seja uma área da Marinha34, a posse das ruínas do antigo Recolhimento foi identificada como pertencente à Companhia Territorial Itaipu somente em 1958, três anos após o tombamento. A apresentação da posse do terreno só é apresentada pela empresa após receber o pedido de desocupação por parte do DPHAN.

Na documentação que compõe o processo de tombamento, a única referência feita às relações e aos conflitos existentes na região diz respeito à instalação de um gerador elétrico dentro das ruínas no ano de 1948. A trepidação e a derrubada de um pórtico incomodam o DPHAN e os moradores e assim continuará até meados da década de 1960, quando a empresa termina por se abster de quaisquer iniciativas de retomar a posse e desocupa o terreno.

No entanto, através de documentos do arquivo técnico administrativo, especialmente no que trata dos casos judiciais, podemos encontrar diversas denúncias no período de 1957 a 1974. As acusações partem tanto dos moradores, quanto da Companhia Territorial de Itaipu. A empresa acusa os moradores de ocupar indevidamente o espaço. Os moradores, por sua vez, acusam a empresa de instalar irregularmente um gerador de energia no interior das ruínas, de retirar areia das dunas e de destruir os sambaquis. Algumas vezes denunciam diretamente ao DPHAN, mas na maioria dos casos recorrem ao interventor da Colônia de Pescadores, o Sr. Hildo de Mello Ribeiro, que estabelece esse contato entre moradores e o Instituto. O DPHAN

34 Os terrenos da Marinha são identificados como a média das marés altas no ano de 1831. A partir dessa média, todo terreno que estiver a 33 metros da linha do preamar é considerado da União e de posse desdobrada, ou seja, a União é proprietária da área e pode reivindicar o seu uso.

50 posiciona-se em vários documentos a favor dos moradores, como podemos perceber no trecho abaixo:

Falamos a respeito da denuncia recebida com um grupo de elementos locais que providenciou o acesso à capela e contestou, com grande veemência, as acusações da Cia. Territorial de Itaipu. Fazia parte do grupo o filho de um antigo pescador, hoje falecido, que mantinha contato assíduo com o DPHAN, como representante da Colônia e afiançou-nos juntamente com os demais a improcedência das acusações que lhes foram feitas. (...) Êstes, ao contrário, parecem-nos os maiores interessados na conservação do que ainda subsiste do antigo recolhimento de Sta. Tereza. (Relatório de vistoria em Itaipu. 11.07.1963. Arquivo Central: Arquivo Noronha Santos – IPHAN)

No entanto, essa relação de cumplicidade transforma-se quando a Companhia Territorial de Itaipu é comprada pela empresa VEPLAN e deixa de disputar pelo terreno. A partir de então, o órgão de preservação começa a se queixar do mau uso das ruínas e a esforçar-se para a retirada desses moradores:

É um descalabro a situação das ruínas do antigo recolhimento de Santa Tereza, em Itaipú, Niterói. Como se vê pela documentação fotográfica que colhemos, são graves os problemas que estão surgindo em relação à conservação das ruínas. Estes se constituem principalmente com as construções ilicitamente levantadas em torno do monumento e que aos poucos os vão bloqueando, além de outras inseridas no próprio recinto; do uso prejudicial que a Colônia de Pesca vem fazendo com a localização de tachos no seu interior empregados no preparo do material necessário para às suas atividades (...). (Relatório de inspeção realizada nas ruínas do antigo Recolhimento de Santa Tereza. 7 de junho e 1966. Arquivo Central: Arquivo Noronha Santos – IPHAN)

Em 1969, a União notifica três moradores que residem com suas famílias de forma irregular nas ruínas tombadas, exigindo a desocupação. Como era de se esperar, a medida de salvaguarda torna as ruínas inabitáveis levando à remoção, em meados da década de 1970, dos pescadores que utilizavam o espaço para habitação, trabalhos, realizações de festas e procedimentos religiosos.

Não podemos afirmar, com base nos documentos, qual era o entendimento do grupo de pescadores à frente da Colônia, naquela época, sobre os sentidos e significados desse patrimônio, apesar de termos a confirmação de seu interesse em tombar as ruínas. Pela documentação é possível aferir ainda que os pescadores estiveram diretamente ligados às disputas pelo uso desse patrimônio. Apesar do interesse expresso pela Colônia, sabe-se que ela não ocupou o espaço cedido para ser sua sede. Mas isso não significa que os pescadores não fizeram uso do terreno.

51 Podemos, com base na legislação da época, compreender qual era o entendimento do Estado. Naquele período, a única legislação brasileira sobre esse assunto era o Decreto-lei número 25 de 30 de novembro de 1937, que entendia o patrimônio como um conjunto de bens móveis e imóveis vinculados a fatos memoráveis da história do Brasil, por seu valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou artístico.

De acordo com Fonseca (2005, p.104), as questões que envolvem o direito à propriedade foram o principal problema para aprovação dos instrumentos de proteção do patrimônio cultural até a promulgação do decreto-lei em 1937. A autora afirma ainda que, preocupado em construir a imagem de uma instituição coesa e voltada para os interesses públicos, Rodrigo Melo Franco de Andrade investiu sua habilidade política em fortes batalhas judiciais para registrar nos livros do Tombo os bens identificados como patrimoniáveis.

Existem ainda diversos autores que discutem o caráter classista ou elitista das escolhas dos intelectuais envolvidos nas escolhas dos bens tombados nesse período. É certo que o tombamento não é um instrumento adequado para as manifestações culturais entendidas hoje como imateriais. O que hoje compreendemos como patrimônio imaterial – saberes, fazeres, celebrações, formas de expressão – naquele momento era objeto de estudo dos folcloristas e etnógrafos (FONSECA, 2005, p.156) e não contava ainda com um instrumento de preservação. Imperava nesse período a dicotomia entre cultura erudita e cultura popular. Dentre outras formas, essa oposição pode ser compreendida como uma expressão da divisão social das classes e também pode ser observada como uma diferenciação qualitativa, que atribui à cultura erudita uma maior complexidade na elaboração, uma ligação direta com movimentos de vanguarda e uma sofisticação de linguagem artística (CHAUÍ, 2006, p.13).

Podemos afirmar também que a maioria dos bens tombados nesse período foram os remanescentes da arte colonial brasileira, em especial aqueles ligados à arquitetura religiosa, e o Recolhimento de Santa Teresa é mais um exemplo dessa prática. Fonseca (2005, p.211) afirma ainda que a instituição dava preferência a tombamentos que não estivessem em uso pelas populações tradicionais, alegando que “o tipo de uso desses bens pelas classes populares era incompatível com o tombamento, e que não seria correto impor a essas classes valores culturais que lhes eram estranhos.”, confirmando

52 preciso considerar que o Decreto-lei 25 atuava em um contexto que entendia a defesa do patrimônio através da tutela e não da cidadania, noção que só vem a ser incorporada depois da Constituição Federal de 1988. Em todo caso, é importante lembrar que ainda hoje é o mesmo decreto que orienta a ação de tombamento, estabelecendo os critérios legais, formais e técnicos.

Se o exercício do poder é intencional e objetivo como afirmado no início desse capítulo, por que o diretor do DPHAN ignorou a resposta do prefeito de Niterói sobre a posse do terreno? Por que, mesmo sabendo que a Companhia Territorial ocupava o terreno, ela não foi avisada do tombamento? Por que os pescadores, que pleiteavam as ruínas como sede da Colônia e já tinham entrado em contato com o DPHAN e o Governo do Estado, também não foram comunicados do tombamento ou receberam a concessão de uso, conforme autorizado pelo presidente da República?

Com base nas afirmações de Fonseca sobre as habilidades políticas do diretor do DPHAN e sua preocupação com as questões relativas à propriedade podemos supor que, havendo interesse político, era (e ainda é) muito mais simples tombar um bem que pertence à União35 do que à iniciativa privada, o que explicaria a proposital falta de reconhecimento sobre os direitos legais da Companhia Territorial.

Uma vez retirada a empresa dessa disputa, a problemática de preservação do bem se volta exclusivamente para o uso que os moradores fazem do prédio e para as construções levantadas no seu entorno. Não foram encontradas repercussões sobre a desocupação das famílias residentes no interior das ruínas mas sabemos, pela documentação, que houve resistência por parte dos pescadores que, se não violenta ou agressiva, certamente se deu pela insistência em permanecer e fazer uso do espaço. A desocupação definitiva do prédio só se efetiva com a implantação do Museu.

35 De acordo com o artigo 5º do decreto lei 25/1937, o tombamento de bens pertencentes à união se dá por ofício, sendo necessária apenas uma notificação ao proprietário legal.

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Figura 2 - Pescadores tingem rede dentro das ruínas do Recolhimento de Santa Teresa

Fonte: Acervo pessoal de Eliana Leite. Arquivo técnico - MAI. Sem data.

De acordo com a previsão da lei, os bens tombados, não podem ser destruídos, demolidos, mutilados e nem reparados, pintados ou restaurados sem autorização prévia do IPHAN. Sendo assim, somando-se a falta de recursos financeiros e de equipe e mão- de-obra para o restauro com o grau de especialização exigido pelo IPHAN, seria inviável que os pescadores pudessem construir suas moradias no interior das ruínas. Claro que a isso se junta a percepção, por parte do órgão de proteção, de que alguns valores culturais são incompatíveis com as classes populares. No processo de tombamento e na documentação pesquisada não foi encontrada nenhuma referência sobre a destinação que seria dada às ruínas. A proposta de um museu de arqueologia só começa a ser pensada após a descoberta do sambaqui da Duna Grande em 1962.

Criado sobre as bases de um conflito entre o Estado, a iniciativa privada e a sociedade civil organizada, o Museu de Arqueologia de Itaipu inicia suas atividades 22 anos após o tombamento, no dia 22 de março de 1977.