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CAPÍTULO 2: O CANTO DE ITAIPU E OS PESCADORES ARTESANAIS

2.3 Itaipu: tombamentos e monumentos

A praia de Itaipu, única da Região Oceânica que oferece águas tranquilas para banho, foi tombada em seu conjunto paisagístico pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro em 198565. Está salvaguardado por esse instrumento o canto sul da Praia, composto pelo Pontal do Morro das Andorinhas e pelas Ilhas do Pai, da Mãe e da Menina.

Segundo o Diagnóstico 02, elaborado para o projeto urbanístico mais recente do Canto de Itaipu, de realização da Secretaria de Desenvolvimento Regional, Abastecimento e Pesca - SEDRAP66, o tombamento do conjunto paisagístico pode ser considerado vanguardista, uma vez que só no ano de 1988, na Constituição Federal, o patrimônio imaterial recebe algum amparo legal. O referido processo já indica em seu conteúdo a integração entre a paisagem natural e a presença humana.

De acordo com o arquiteto Ítalo Campofiorito, diretor do Departamento Geral de Cultura do INEPAC nesse período, “pela primeira vez será reconhecido o valor cultural de uma associação espacial e, por assim dizer, simbiótica entre povoados tradicionais de pescadores e a faixa de terra emersa das águas oceânicas” (1985 apud

SEDRAP, 2013 p.79). Nesse mesmo processo é possível encontrar outras referências à “harmonia” entre a paisagem natural salvaguardada e o “aldeamento de pescadores”.

65 Tombamento publicado no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro em 9 de dezembro de 1985. Processo de Tombamento E-18/300.459/85

66 Secretaria Estadual de desenvolvimento regional, abastecimento e pesca – SEDRAP, Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro – FIPERJ. Projeto urbanístico e sócio ambiental do Canto de Itaipu: uma construção coletiva. Diagnóstico 02. Niterói, junho de 2013.

98 A pesca artesanal em Itaipu também foi tombada. Embora de natureza patrimonial imaterial, sendo passível, portanto, de registro e não de tombamento, a Lei Municipal n. 7.874 de dezembro de 2011 considera a pesca artesanal praticada em Itaipu “Patrimônio Cultural de interesse público, para fins de tombamento de natureza imaterial”67. Ambos, tombamento e registro, são instrumentos de salvaguarda que

reconhecem o valor cultural do bem. No entanto, compreende-se que o tombamento preserva as características originais, impedindo a destruição, demolição ou mutilação, ou seja, não se aplica aos saberes e fazeres que carregam, incorporadas à sua dinâmica, as mudanças constantes. O registro, por sua vez, possibilita ao bem em questão a manutenção de sua dinâmica cultural, aceitando as possíveis transformações como parte desse movimento.

A região que limita esta pesquisa possui, portanto, cinco bens de natureza cultural tombados ou em processo de tombamento. São eles: o Sítio Duna Grande, o Recolhimento de Santa Teresa, a Igreja de São Sebastião de Itaipu, o Canto sul da Praia de Itaipu e a pesca artesanal. Ainda dentro dessa mesma área, entre o MAI, a Duna Grande e a Praia de Itaipu, podem ser encontrados mais dois monumentos: um obelisco e o canhão.

De acordo com as informações fornecidas pelo Diagnóstico 02 da SEDRAP, o canhão era um aparato de comunicação, que tinha por objetivo avisar sobre a presença de embarcações estranhas à Coroa Portuguesa no litoral fluminense. Esse sistema de comunicação por canhões funcionava da cidade de Cabo Frio à cidade do Rio de Janeiro, e um dos seus "comunicadores” situava-se justamente em Itaipu, no Topo da Duna Grande. Atualmente o canhão está localizado ao final da Estrada Francisco da Cruz Nunes, no meio da rotatória, a poucos metros do MAI e se encontra em péssimo estado de conservação68.

O obelisco também é uma instalação militar e marca a concessão das terras da Marinha do Brasil para a Colônia de Pescadores Z-10 no ano de 1961, reconhecendo dessa forma a ocupação histórica dos pescadores nessa localidade. O monumento foi erigido um pouco antes da faixa de areia, na beira da praia, também próximo ao Museu. Hoje passa despercebido aos olhares menos atentos, cercado por amendoeiras e muito exposto à rebentação. Embora só tenha sido construído em 1961 é importante lembrar

67 Disponível em: www.leismunicipais.com.br/a/rj/n/niteroi/lei-ordinaria/2011/287/2874/lei-ordinaria-n-

2874-2011-considera-patrimonio-cultural-de-natureza-imaterial-a-pesca-artesanal-de-itaipu-2011-12-13- versao-original.html acesso em: 21 de julho de 2014

99 que o obelisco marca a presença da Marinha no local e representa, sobretudo, uma política nacional em todo o litoral brasileiro que procurava promover o saneamento, assegurar a saúde, fornecer instrução e incorporar a pesca às forças produtivas da nação. Em outras palavras: nacionalizar, disciplinar e gerir a produção pesqueira (LIMA, 1997, p.23).

Embora esteja de acordo com a criação das áreas e monumentos de preservação em Itaipu, o pescador Jairo afirma que os gestores responsáveis pelos tombamentos em Itaipu “engoliram mosca” e não cuidaram da manutenção dos patrimônios tombados. Ele afirma que as mudanças são um reflexo das fragilidades que envolvem os sucessivos tombamentos e os problemas na gestão pública do espaço:

Eu acho que houve assim uma falha de setores públicos e das próprias gestões passadas. (...) tinham os moradores tradicionais da época, mas ao longo do tempo, infelizmente, foram feitas negociações de imóvel dentro da área que não são permitidas. Mas isso passou. Então os gestores, não sei por quê...De repente o medo de represálias ou pela força da negociação, o que foi acontecendo....as arbitrariedades foram acontecendo. Não teve a fiscalização adequada pra isso, né? Essa negociação não foi permitida para terceiros, só para a atividade da pesca, índio ou quilombola, dentro da portaria que existe no SPU, só que foi “nego” chegando e hoje todo mundo vê como tá a situação, né? Hoje a gente tem... sei lá...a gente tem a atividade ainda muito forte da pesca, mas a gente percebe a descaracterização do povo tradicional. Hoje a gente tem muito poucas pessoas tradicionais... Se não me engano a gente pode contar nos dedos, as famílias daqui... Então essas negociações, ela passou né? Engoliram mosca, não era pra ser permitido, né? O poder público, o órgão que cuida dessa fiscalização e as próprias gestões que deveriam estar de olho - porque quem deveria estar de olho nessa situação são as gestões publicas - as gestões da Colônia inclusive, e infelizmente isso foi acontecendo até chegar esse ponto de hoje, né? A gente vê uma situação bem diferenciada do que era. (SILVA, Jairo Augusto da. Depoimento [junho 2015] entrevistadora: Mirela Leite de Araujo. Niterói, 2015)

Podemos perceber ainda, especialmente pelo depoimento do Seu Chico, que os instrumentos de preservação estão desacreditados principalmente no que diz respeito à sua efetividade de uso pelas populações tradicionais. Na sua percepção, os tombamentos acabam por privilegiar camadas mais ricas e aqueles com inserção na vida política de Niterói, destacando as diferenças e contribuindo para uma divisão social ainda maior. Quando questionado sobre os sucessivos tombamentos, ele responde:

Isso me assusta bastante, né? Me assusta. O Morro das Andorinhas, que a Serra da Tiririca tá incluído, a gente tem umas mansões em Itacoatiara .... e o único cara que fica sofrendo pressão pra ser expulso de lá, não é as casas nem mansões que foram fabricadas e construídas de 10 anos pra cá, mas as casas que foram construídas há mais de 100 anos. E eu digo isso por que já teve pesquisa, tese de mestrado, de doutorado, de biologia, de antropologia, sociologia, história e ficou comprovado...tem a característica dessa casa com mais de 100 anos, e isso está documentado . Essas casas elas foram invasoras do Morro das Andorinhas e da Serra da Tiririca. Agora, as mansões que estão no entorno e em cima do Morro das Andorinhas, elas não são invasão. Não

100 são invasões por que tem deputado federal, tem juiz, desembargador, então são pessoas de bem que moram lá. Enquanto o produtor de alimento e o pescador, as pessoas simples...Eu não sei o que eles são, mas são considerados pelos poder publico de “não de bem”. Quem é de bem é essas outras pessoas. Então esses tombamentos eu fico muito preocupado, por que se cria uma reserva, né? Mas nunca se criou um reserva pra população tradicional e pra população de baixa renda. (SOUZA, Jorge Nunes de. Seu

Chico. Depoimento [junho 2015] entrevistadora: Mirela Leite de Araujo.

Niterói, 2015)

A fala do Seu Chico sobre o tombamento do Recolhimento de Santa Teresa e da expulsão dos moradores da Duna Pequena, de Camboinhas, demonstram também um descolamento das políticas públicas de preservação dos interesses e das necessidades das populações tradicionais. Podemos afirmar que esses dois momentos, diretamente ligados e associados ao MAI, deixaram marcas na história e na memória dos pescadores locais, contribuíram para a desestabilização dos modos de vida e para uma imagem negativa da instituição perante esse grupo. No que diz respeito ao Recolhimento, houve a perda de um espaço de relacionamento social, que funcionava como local de guarda de barcos e petrechos, ponto de descanso para alguns pescadores que vinham de outras praias, onde eram celebradas as missas a São Pedro, batizados e casamentos. Além, evidentemente, das marcas deixadas pela expulsão das famílias sem nenhuma indenização, benefício assistencial temporário ou permanente. No caso da Duna Pequena, os pescadores relatam que foram expulsos de lá com a justificativa de preservar os sítios arqueológicos, que logo depois foram destruídos e transformados em loteamentos de alto padrão.

No caso aqui do Recolhimento de Santa Terezinha, que era o 21, a gente tinha três famílias de pescadores que moravam aqui dentro. Com o tombamento eles foram despejados pela Polícia Federal, e não tiveram pra onde ir. Foram jogados na rua. A gente tinha também dois quartos de pescarias, que era um espaço onde guardava equipamento, rede, onde pescador dormia...que antigamente bastante pescador dormia nesse espaço. Por que ia pescar às duas horas da manhã e vinha praqui e ficava, e dormia junto desse equipamento. Então essas pessoas foram despejadas. Na duna também, na duna lá em Camboinhas. Que hoje é Camboinhas. Na Duna Pequena, foi despejado o pescador também porque o pescador não podia ficar em cima da duna, porque a duna era um espaço tombado, era uma reserva, era...e com isso desapropriou essas pessoas. Aí várias pessoas foram despejadas, não tiveram pra onde ir, tiveram conflito depois. E hoje deu lugar pra hotel, pra apart hotel, pra prédio, pra comércio, casa e ainda tá pra ser construído um resort onde era a Duna. Mas os pescadores não podiam morar. Por que era um lugar, né? Era um sítio arqueológico. Então eu vejo essas coisas e eu vi essas coisas acontecerem, né? (...) Tudo o que não se podia fazer, que os pescadores até apanhavam, foram expulsos, foram humilhados. Eu hoje, eu vejo que eles destombam, dependendo da necessidade. (SOUZA, Jorge Nunes de. Seu Chico. Depoimento [junho 2015] entrevistadora: Mirela Leite de Araujo. Niterói, 2015)

101 Diante da concretude da urbanização descontrolada, da degradação ambiental, da falta de saneamento e de serviços essenciais, dos poucos recursos (humanos, financeiros e materiais) investidos para preservação desses bens, e, principalmente, do distanciamento dos bens culturais e naturais dos modos de vida dessa população, explicita-se a visão segmentada das políticas públicas de preservação ambiental e cultural. É possível interpretar que talvez não seja o vínculo entre indivíduos e patrimônio a principal motivação dos atos de patrimonialização e é necessário destacar as denúncias dos pescadores sobre práticas elitistas, clientelistas e manipulatórias sobre esse patrimônio.

É importante evidenciar, no entanto, que não se trata de uma sujeição absoluta e irrestrita dos indivíduos envolvidos nesse território. Os pescadores e os demais moradores de Itaipu e da Região Oceânica constroem sentidos simbólicos (e também econômicos e culturais) e fazem uso desses mesmos instrumentos para manifestar, exigir, controlar, permitir e negar, de acordo com os seus interesses. Ou seja, são sujeitos e não sujeitados, mas é evidente que se estabelece aqui uma disputa de forças pelos instrumentos de controle e de preservação que vai influenciar diretamente nos usos sociais desses patrimônios.

Robert Sack (1986) compreende o território especialmente a partir de sua dinâmica política, uma área delimitada onde algumas pessoas influenciam e controlam, através de instrumentos e estratégias, a maioria. Para o autor, o sentido de território está intimamente ligado às estratégias de controle, especialmente aquelas fomentadas e utilizadas pelo Estado, mas também diz respeito a grupos sociais ou a indivíduos. Nesse sentido, a territorialidade – as relações dentro desse território – é condicionada pelo controle de atividades, recursos, fenômenos e indivíduos. Diante da profusão de tombamentos e monumentos em Itaipu é preciso questionar o que eles representam para os órgãos responsáveis pela patrimonialização e preservação e como são vivenciados e utilizados pelas pessoas que habitam o local.

No caso de Itaipu, a direta intervenção do Estado não está somente no tombamento dos edifícios ou na criação de instituições e monumentos para representar o tal patrimônio histórico-cultural. Com a criação do PESET69 e posteriormente da

69 O Parque Estadual da Serra da Tiririca foi criado em 1992 e é considerado uma das principais Unidades de Conservação para a preservação da Mata Atlântica em Niterói.

102 RESEX70 marinha, as águas, marítimas e fluviais, a fauna e a flora, os remanescentes de florestas, as paisagens e a pesca também são controlados. No entanto, nas falas e referências dos pescadores, podemos perceber que a idéia da patrimonialização do ambiente natural, das evidências históricas, culturais e sociais da região também estão associada à memória e à identidade da população em questão, e diz respeito também aos seus vínculos com o passado e com o presente.