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Estabelecer e subverter: comunicar através das exposições

CAPÍTULO 3: POLÍTICAS E PROCESSOS COMUNICACIONAIS – AS

3.1 Estabelecer e subverter: comunicar através das exposições

Sabemos que, desde o seu surgimento, recaiu sobre os museus uma forte confiança nos discursos ali proferidos. O senso comum parte do princípio de que os museus são o lugar dos discursos pautados na verdade e essas instituições, por sua vez, buscam promover essa confiança. Na maioria das vezes a verdade é comprovada cientificamente, atestada pelo Estado ou por um grupo de intelectuais. Anunciar uma verdade já é, em si, uma tarefa complexa e problemática: trata-se de narrar experiências, saberes, acontecimentos ou diferentes modos de perceber um determinado assunto

136 apoiado em subjetividades e intencionalidades e que certamente não contemplarão todas as versões existentes. Soma-se a essa dificuldade o fato de que para os museus não basta falar, é preciso fazer-se compreender, ou seja: a verdade anunciada pelos museus precisa ser transformada em elucidação e em conhecimento sobre a existência cultural e material do homem.

Nos museus, esse anúncio é feito especialmente, mas não exclusivamente, através das exposições. No entanto, o museu não produz discursos de forma autônoma. A elaboração do discurso é essencialmente dependente da sociedade, uma vez que é produzido um discurso sobre e para uma sociedade, mas também necessita, para ser efetivo em seus objetivos, constituir-se enquanto espaço de representação e de saber dessa mesma sociedade. Sua dependência está ainda ligada pela necessidade de dialogar com outros campos para constituir o seu discurso e certificar os tais saberes (RESENDE, 2004, p.02)

O processo de comunicação museológica, dentro da perspectiva atual de museu, carrega em sua origem a contradição: como dar um tratamento dialógico se ele está baseado em um olhar seletivo da musealização? Ou ainda, como transformar em patrimônio, em elemento suscitador da crítica e do aprendizado, um objeto que foi retirado do seu contexto de uso, valorizado e significado sem o “acordo em torno dos signos” do qual fala Freire? O autor afirma que comunicação, inteligibilidade e compreensão não podem ser separadas:

É então indispensável ao ato comunicativo, para que êste seja eficiente, o acôrdo entre os sujeitos, recìprocamente comunicantes. Isto é, a expressão verbal de um dos sujeitos tem que ser percebida dentro de um quadro significativo comum ao outro sujeito. Se não há êste acôrdo em tôrno dos signos, como expressões do objeto significado, não pode haver compreensão entre os sujeitos, o que impossibilita a comunicação. Isto é tão verdadeiro que, entre compreensão, inteligibilidade e comunicação não há separação, como se constituíssem momentos distintos do mesmo processo ou do mesmo ato. Pelo contrário, inteligibilidade e comunicação se dão simultâneamente. (FREIRE, 1987, p.45-46)

Sob a atual ótica da comunicação museológica, as exposições foram desobrigadas de elaborar um estatuto único de verdade e passam a ser pensadas a partir da proposição de ideias, significados e sentidos (CURY, 2005 p.91). Isso não significa que os museus abriram mão de seu papel educativo ou do revestimento de confiabilidade que seus discursos elaboraram ao longo dos séculos. Para Waldisa

137 Rússio (GUARNIERI, 1986, p.138), a exposição“(...) informa, comunica; registra, questiona. Uma exposição estabelece e subverte.”

Estabelecer um sentido e subvertê-lo. É nas inúmeras possibilidades oferecidas pelas exposições que reside a sua engenhosidade. Enquanto linguagem mista (verbal e não-verbal), as exposições conjugam, em um determinado espaço e tempo, a expressão de uma ideia através de objetos, imagens, músicas, desenhos, cores e textos. No entanto, a exposição só se realiza na interação – quando age e interage com o outro sujeito. Sendo assim, uma exposição precisa (com) partilhar seus códigos e significados, pois a sua efetivação depende do domínio sobre eles.

Compartilhar códigos e significados em uma exposição museológica está além de contextualizar, de explicar o que eles significam ou de encadear um discurso a partir de uma explicação. Trata-se de construir códigos e atribuir significados de forma comum, em igualdade de enunciação e construindo vínculos com os partícipes desse diálogo. Para Marília Xavier Cury, a relação dialógica está diretamente ligada aos vínculos estabelecidos:

Contextualizar os objetos museológicos alcança sentido se, ao mesmo tempo, contextualizamos o tema e o assunto diante do cotidiano das pessoas. Não basta expor contextualizando a partir da origem e trajetória do artefato, e sim expor fazendo com que se estabeleçam vínculos entre culturas, entre grupos e entre pessoas de culturas diferentes, e isto só se dá na comunicação de sentidos. Acredito que somente estabelecendo vínculos é que conseguiremos estabelecer uma relação dialógica entre exposição – e grupos culturais – e o receptor. (CURY, 2005 p.23)

Dessa forma, compreendemos que a comunicação museológica não se dá exclusivamente através das exposições, mas, principalmente, pelo estabelecimento de relações e vínculos com seus interlocutores. Essas relações podem ser construídas em alguns momentos e situações dentro de uma instituição, mas não são travadas exclusivamente dentro dos seus muros. De forma genérica, os museus elaboram ferramentas e criam momentos específicos para “interagir” com as pessoas, mas com um enfoque maior na enunciação de suas ideias e trabalhos do que construir um diálogo. Podemos afirmar que diversas formas foram encontradas pelos museus para divulgar os conteúdos produzidos ou mostrar-se para a sociedade: publicação de artigos científicos, palestras, produção de filmes e documentários, estudos sobre coleções, atividade educativa e elaboração de material didático e de divulgação, etc (CURY, 2005, p.34). No entanto, ainda não foram encontradas muitas formas de efetivar-se dialogicamente e,

138 na maioria das vezes, a comunicação nos museus ainda possui apenas essa característica de difusão.

Essa dimensão dialógica da comunicação em museus é recente. No Brasil, há menos de 100 anos os museus reafirmam em seus discursos e práticas, especialmente nas exposições, seu caráter hermético no que diz respeito ao diálogo, plenos de certezas e de razões que os definem, limitam e restringem os modos de relacionar-se com a sociedade. Expressão disso, Desvallés, afirma que comunicar nem sempre foi uma tarefa tida como óbvia ou evidente para os museus. Até a segunda metade do século XX, os museus tinham por função principal a preservação e não necessariamente a comunicação do bem preservado (DESVALLÉS; MAIRESSE, 2013 p.36).

Notar essa herança discursiva não é uma tarefa complicada, principalmente por- que ela ainda é perceptível nas práticas da maioria dos museus. Essa herança fica ainda mais clara quando afirmamos o museu como “meio78”, ou seja: um instrumento de

comunicação, que, nesse caso, serve para expor, informar, educar, apresentar, incutir. A partir desses objetivos se elabora um discurso essencialmente voltado para a mensagem, uma narrativa institucionalizada que se preocupa menos com o receptor (entendido sempre como ouvinte e não como interlocutor) e mais em atestar a própria veracidade.

Focados na mensagem e empenhados no papel de transmitir o patrimônio (DESVALLÉS; MAIRESSE, 2013 p.36), os museus desenvolveram, com o apoio de uma sociedade crédula em seu discurso, técnicas e práticas que ocultam a sua parcialidade e as suas posturas ideológicas. Essa forma específica de dominação da informação (RESENDE, 2004, p.12) foi criada para conferir aos museus um conjunto de qualidades que os levam à consideração pública, atributos como imparcialidade, respeitabilidade e seriedade. Essa forma de encobrir o enunciador é comum a outros meios de comunicação e pode ser uma estratégia para naturalizar a mensagem, como afirma Rodrigues (1984, p.22), “uma camuflagem do sujeito da enunciação, criando

78 A Declaração de Caracas (1992) possui um tópico denominado Museu e Comunicação, onde se explicita os museus como meios de comunicação e a sua função comunicacional: “A função museológica é, fundamentalmente, um processo de comunicação que explica e orienta as atividades específicas do Museu, tais como a coleção, conservação e exibição do patrimônio cultural e natural. Isto significa que os museus não são somente fontes de informação ou instrumentos de educação, mas espaços e meios de comunicação que servem ao estabelecimento da interação da comunidade com o processo e com os produtos culturais.” (BRUNO, 2010 p.73)

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uma autêntica mais-valia simbólica de credibilidade de enunciado, pela anulação do lugar de onde se fala, universalizando e naturalizando aquilo que se diz”.

A crítica dada aqui, formulada por diferentes autores, a exemplo de Marília Xavier Cury, se coloca a partir da compreensão recente de que a comunicação museológica, no sentido social, torna imprescindível a criação de um diálogo e a troca de informações para a produção de conhecimento. Não interessa, pois, simplificar e objetivar uma informação para que ela seja repassada em um processo de transmissão e sim elaborar uma “atividade conjunta de construção de uma perspectiva comum, de um ponto de vista partilhado, como base para inferência e ação” (CASTRO, 1997, p.266).

Para Mario Chagas, é necessário que os museus promovam esse deslocamento do lugar passivo do público do museu:

Enquanto o homem sentir-se um estranho, uma visita ou simples expectador nas salas de exposições do museu, não estará havendo transmissão e vivenciação cultural, quando muito ocorrerá uma simples memorização de fatos, nomes e coisas. A contemplação passiva é de todo incompatível com as funções educativa e social do museu. (CHAGAS, 1985, p.189)

Jesús Martín-Barbero chama atenção para a necessidade de pensar a comunicação a partir de um novo paradigma, transferindo a atenção do meio para a mediação: “o eixo do debate deve se deslocar dos meios para as mediações, isto é, para as articulações entre práticas de comunicação e movimentos sociais, para as diferentes temporalidades e para a pluralidade das matrizes culturais” (1997, p. 258). Isso

significa lançar um olhar para os usos sociais dessa mensagem e a compreender que as relações sociais, culturais e políticas são essenciais para a constituição dos meios e da mensagem. Ou seja, analisando somente o meio ou somente a mensagem, sem compreender a relevância e a complexidade das relações não poderemos compreender como se dá a comunicação. Marília Xavier Cury (2005, p.24) explica como esse deslocamento de foco pode ser compreendido na ótica da comunicação museológica:

(...) significa que o cotidiano do público é o enfoque contemporâneo a ser enfrentado por essa instituição. As pessoas vão ao museu e têm contato com conhecimentos, significados e valores. Isso tudo é posto por elas mesmas em confronto com os conhecimentos, significados e valores que elas já têm. Muitas vezes elas modificam o que sabem, entendem e sentem, e outras não, pelo contrário, confirmam. E outras vezes as pessoas rechaçam o que viram. E outras vezes o confronto se processa durante muito tempo, até mesmo durante suas vidas. A recepção é um processo mediado pelo cotidiano dessas pessoas, e quando elas chegam ao museu esse processo já se iniciou. Isso é comunicação e isso é participar da dinâmica cultural, visto que a recepção é um processo individual mas compartilhado socialmente. O processo de (re) significação parte do indivíduo-sujeito e se torna efetivamente apropriado

140 quando gera outra significação que é compartilhada no e com o contexto social – a significação circula no contexto cultural.

Quando pensamos o receptor como agente e produtor dos próprios significados e, principalmente, quando o público dos museus deixa de ser apenas “concebido” e passa a ser vivenciado, uma nova relação se estabelece e, consequentemente, novos pontos de poder são acionados. Essa diferente ordem de dominação sobre a informação é muito significativa para a comunicação museológica porque permite outras atitudes sobre as relações de poder, principalmente as que envolvem diretamente a informação. Como afirma Cury (2005, p.40), o deslocamento de foco acaba por revelar também os vários sujeitos promotores da elaboração do discurso museológico: o público, o autor, o usuário do objeto e o profissional de museu, atribuindo a todos a (re)significação do objeto patrimonial e a circulação da significação. Para Paulo Freire (1987, p.45), essa interação entre os sujeitos é fundamental para a comunicação: “(...) na comunicação,

não há sujeitos passivos. Os sujeitos são co-intencionados ao objeto de seu pensar se comunicam seu conteúdo”.

De acordo com essa lógica, o receptor é cada vez mais autônomo e recebe mais estímulos para desenvolver o seu próprio processo de (re)significação do bem cultural e assim a relação de poder sobre a informação é estabelecida de forma mais equilibrada. Quando é rompida essa relação passiva e quando deslocamos o olhar da mensagem para a mediação, transforma-se também a função educativa do museu que está diretamente associada à comunicação museológica. Nesse sentido, Paulo Freire afirma:

Conhecer não é o ato através do qual um sujeito transformado em objeto, recebe dócil e passivamente os conteúdos que outro lhe dá ou lhe impõe. O conhecimento, pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sôbre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica invenção e reinvenção. (FREIRE, 1987, p.09) Apesar dessa atitude ativa do interlocutor do museu, é importante ressaltar que as mensagens não circulam livremente ou deixam de carregar as posições ideológicas do emissor, mas passam a ser negociadas, interpretadas e compartilhadas no espaço de relações do cotidiano – no trabalho, junto aos seus familiares ou na praia. As diferentes leituras e interpretações a partir dos próprios referenciais de entendimento são fundamentais para a formação identitária (HALL, 2003, p.363). Para Stuart Hall, o significado da mensagem é “contingencial, contextual e multirreferencial”, o que

significa que a leitura e a decodificação da informação não serão fixas. No caso dos museus, embora o emissor da mensagem ainda seja, na maioria das vezes,

141 exclusivamente a instituição, não haverá nesse processo de comunicação um controle de que a mensagem seja compreendida exatamente da maneira pretendida pelo emissor.

John B. Thompson (1995, p.06) compreende que as leituras e interpretações da mensagem estão diretamente associadas às questões identitárias. Para o autor, as diferentes formas de recepção, de interpretação e de reelaboração das mensagens se associam a ação do receptor em seu cotidiano e fazem parte de um contínuo processo de compreensão de si mesmos e da realidade social em que vivem. Para Martín-Barbero (1997, p.54) essa realidade social é permeada todo o tempo pela luta por reconhecimento social.

Quando são demonstradas, ainda que parcialmente, como nos capítulos anteriores, as territorialidades que conformam o território, podemos perceber a importância que a comunicação museológica possui para o estabelecimento e desenvolvimento dessas relações. Os espaços públicos, nesse caso o próprio Museu e o território conformado pelas relações entre a instituição, os moradores, os pescadores e os diversos agentes que atuam em Itaipu, podem ser compreendidos como espaços simbólicos de interações sociais, políticas, econômicas e culturais, de articulação de práticas e saberes e passíveis de reorganizações constantes. Nesse sentido, buscamos observar como e se esse território/espaço público está representado no Museu de Arqueologia de Itaipu através de suas exposições.