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a) Iugoslávia: Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia

O conflito que ocorreu entre as diversas repúblicas que compunham a antiga Iugoslávia levou o Conselho de Segurança da ONU a tratar a crise sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas - CNU, diante das diversas violações ao direito internacional humanitário reportadas. Trata o Capítulo VII das ações em caso de ameaça à paz, e autoriza o uso de intervenção militar, “por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que seja necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais” (art. 42 da CNU). Nesse cenário, o Conselho de Segurança estabeleceu em 25 de maio de 1993, numa votação unânime, o Tribunal Internacional para o julgamento dos supostos responsáveis pelas graves violações de direito internacional humanitário cometidas no território da ex-Iugoslávia, cuja sede se estabeleceu em Haia (Resolução n º 827, que previu o Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia – TPII).

A comissão de especialistas formada para investigar e informar sobre as evidências das graves violações das Convenções de Genebra de 1949 e outras do direito internacional humanitário, confirmou a prática de assassinatos massivos, detenções sistemáticas e organizadas, estupro de mulheres e prática de limpeza étnica216. Como

primeira experiência institucional de direito internacional penal após Nuremberg e Tóquio, o Conselho de Segurança determinou a instituição do TPII pela conjunção de três fatores principais: o fracasso do Estado como mantenedor de uma ordem pública, ao não conseguir evitar uma massiva violação dos direitos humanos; o apoio do Conselho de Segurança,

216 Segundo o relatório do Secretário Geral para o presidente do Conselho de Segurança (Doc. NU: S/1994/674): “On the basis of the information gathered, examined and analyzed, the Commission has concluded that grave breaches of the Geneva Conventions and other violations of international humanitarian law have been committed in the territory of the former Yugoslavia on a large scale, and were particularly brutal and ferocious in their execution. The practice of so-called ‘ethnic cleansing’ and rape and sexual assault, in particular, have been carried out by some of the parties so systematically that they strongly appear to be the product of a policy, which may also be inferred from the consistent failure to prevent the commission of such crimes and to prosecute and punish their perpetrators”, apresentado por Boutros-Gali (disponível em http://www.icty.org/x/file /About/OTP/un_commission_of_experts_report1994_en.pdf, Acesso 12.09.2013)

84 unindo a atuação propositiva de intervenção militar à falta de membros que vetassem iniciativas nesse sentido; e, por fim, a intensa e detalhada cobertura dos meios de comunicação das atrocidades, levando a opinião pública a demandar reações da comunidade internacional217.

Quando o processo de elaboração de um código e um tribunal penal internacional de caráter permanente parecia uma realidade ainda distante, as atrocidades cometidas na antiga Iugoslávia e posteriormente em Ruanda anteciparam o processo, também favorecido pelo cenário político mundial pós-Guerra Fria, fazendo desvanecer a animosidade que predominou por meio século no contexto bipolar geopolítico. Em um ambiente não mais bipolar, mas multipolar, aumentou a fragmentação da comunidade internacional ao mesmo tempo em que se intensificou a sensação de desordem, motivando, inclusive, o aumento do nacionalismo e fundamentalismos, numa espiral de conflitos armados internos. A implosão de sociedades multiétnicas pré-existentes levou a violações graves ao direito humanitário internacional em escala comparável, em alguns aspectos, àquelas cometidas durante a II Guerra Mundial218. Outro significativo fator que contribuiu para a construção do direito

penal internacional foi a importância cada vez maior da doutrina de direitos humanos, que rapidamente se tornaria uma espécie de “religião secular”219, sobretudo pela confirmada

deficiência de seus mecanismos de monitoramento de respeito aos direitos humanos, ganhando voz a ideia de que deveriam ser punidos aqueles indivíduos responsáveis pelas violações, na perspectiva de que a efetivação das punições contribuísse para alastrar a ideia de cumprimento dos standards de proteção dos direitos humanos.

Diante da comoção da opinião pública que exigia medidas urgentes, de eficácia imediata, prescindiu-se do procedimento que seria o mais adequado para o estabelecimento de um tribunal internacional: a conclusão de um tratado internacional por meio do qual os Estados Partes criariam um tribunal, aprovariam seu estatuto, sendo ainda preferível que tal tratado fosse escrito por um órgão internacional apropriado, como a Assembleia Geral, e aberto à assinatura e ratificação dos Estados. Diante dos fatos relatados, pois que o modelo ideal levaria muitos anos e envolveria debates intensos, optou-se pela criação dos tribunais

217 Avaliação realizada por BOS, Adriaan, “The experience of the preparatory commitee”. In: POLITI, Mauro; NESI, Giuseppe (eds.), The Rome Statute of the ICC: a challenge to impunity, Ashgate/Dartmouth, Asdershot, 2001, pp. 22.

218 CASSESE, A. International Criminal Law, Oxford, p. 325. 219 CASSESE, A. Idem, ibidem.

85 por meio de resoluções do Conselho de Segurança220. Outra questão também levantada foi a

do caráter recomendatório das resoluções da Assembleia Geral, sem o caráter obrigatório das decisões próprias de Tribunal.

A competência do TPII221 era a de apurar e julgar as violações às Convenções

de Genebra (art. 2º), crimes de guerra (art. 3º), genocídio (art. 4º), crimes contra a humanidade (art. 5º). Com base no relatório do Secretário Geral, o princípio do nullum

crimen sine previa lege deveria ser aplicado em relação aos “crimes contra o direito humanitário que é sem nenhuma dúvida o direito consuetudinário de tal forma que o problema da adesão de alguns mas não de todos os Estados a algumas convenções específicas não surja. Isso parece ser particularmente importante no contexto de um tribunal internacional processando pessoas responsáveis pelas graves violações em direito humanitário internacional”222.

A questão da legitimidade de se criar um Tribunal com base numa decisão do Conselho de Segurança, sem o respaldo da Assembleia Geral das Nações Unidas, foi intensamente debatida, encontrando artificiosamente justificativa para sua instauração com base no arts. 2.5, 25, 48 e 49 da CNU223. Para CASSESE, o Tribunal representou uma

tentativa de disfarçar a impotência diante da crise humanitária que grassava na região, tendo fracassado todas as instituições que poderiam ter atuado para evitar os massacres. Ao mesmo tempo, necessitavam respostas as indagações sobre a legitimidade de instauração de um tribunal internacional pelo Conselho de Segurança. O Secretário Geral defende que era necessária a instauração do tribunal internacional diante da ameaça à paz que representava a situação na ex-Iugoslávia e que a instalação de um tribunal penal contribuiria para a restauração da paz224. Mas esse assunto foi especialmente tratado no julgamento do caso

220 Resolução do Conselho de Segurança da ONU R/RES/827, de 25 de maio de 1993 e Resolução do Conselho de Segurança da ONU R/RES/955, de 8 de novembro de 1994. Também, para maiores aprofundamentos, GIL GIL, Alicia. Derecho Penal Internacional, op. cit., pp. 61-62.

221 Neste momento, abordaremos somente os aspectos relativos à instalação e competência do TPII, visto que o conteúdo de seus julgados, compondo a parte material do direito penal internacional, será abordado ao longo de todo o capítulo e do próximo. O mesmo em relação ao TPIR.

222 Doc. ONU, S/25704, de 3 de maio de 1993, § 34.

223 ZAFRA ESPINOSA DE LOS MONTEROS, Rafael. “El establecimiento convencional de la CPI: grandes y servindumbres”, p. 169. In: CARRILLO SALCEDO, J.A. (Coord.). La criminalización de la barbárie: la CPI, Madri: CGPJ, 2000. CASSESE, Antonio. “From Nuremberg to Rome: International Military Tribunals to ICC”. In: CASSESE, A. et. al. The Rome Statute of the ICC: a Commentary, Oxford: Oxford Univ. Press, 2002, p. 13.

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Tadic, quando o TPII confirmou esse entendimento na decisão do agravo de instrumento

(interlocutory appeal) de 2 de outubro de 1995225, no qual a defesa questionava

especificamente a jurisdição do tribunal.

Nessa ocasião, a defesa apresentou os seguintes argumentos:

a) Fundação ilegal do tribunal internacional;

b) Primazia indevida do tribunal internacional sobre as cortes nacionais; c) Falta de jurisdição ratione materiae.

Todos estes argumentos foram rejeitados pelo tribunal, após detalhado exame sobre a jurisdição e sua atribuição de definir a “competência da competência”. Considerou- se, inclusive, que o art. 14.1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, ao afirmar que:

“Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil (...)”

não afirma que o tribunal deva ser pré-estabelecido por lei. Essa interpretação é feita pelo Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, referindo-se a que a vontade do Pacto é a de que se deve assegurar que qualquer tribunal, seja ele extraordinário ou não, deve “genuinamente conferir ao acusado as amplas garantias de um julgamento justo, previsto no art. 14 do PIDH”226. Com base no Estatuto do TPII, das regras de procedimento e de prova,

considerou-se que havia respeito ao Estado de Direito e, portanto, que o tribunal respeitava os critérios para ser considerado como “estabelecido por lei”.

225 Caso Tadic, TPII (IT-94-1-A), decisão sobre o pedido da defesa questionando a jurisdição do TPII, de 5 de outubro de 1995, § 2.

226 Nos termos do Comentário Geral ao Article 14, H.R. Comm. 43ª Sessão, Sup. nº 40, § 4º, Doc. ONU A/43/40 (1988), Cariboni contra Uruguay H.R.Comm. 159/83. 39ª Sessão Sup. No. 40 Doc. ONU A/39/40. De maneira semelhante, pela Comissão Interamericana de DH, Annual Report 1972, OEA/Ser. P, AG/doc. 305/73 rev. 1, 14 de março de 1973, item1; Inter-Am C.H.R., Annual Report 1973, OEA/Ser. P, AG/doc. 409/174, 5 de março de 1974, itens 2-4.).

87 Com relação à submissão a uma corte internacional quando ele poderia ser julgado nacionalmente, a corte afirma que: “de fato, ele será removido de seu foro nacional “natural”, mas ele será levado diante de um tribunal no mínimo igualmente justo, mais distante dos fatos do caso e que adotará uma visão mais ampla do assunto”227. Não se trata,

portanto, de um argumento jurídico, que deveria ser muito mais substancioso à hora de sub- rogar-se uma garantia processual penal ao juiz natural da causa. Nota-se que esse tipo de critério de definição de competência será melhor endereçado na redação do princípio da complementariedade da jurisdição do tribunal permanente penal internacional.

À diferença dos tribunais de Tóquio e Nuremberg, o TPII não era um tribunal militar, e os juízes que compunham as câmaras não eram nacionais das potências vencedoras julgando os vencidos, mas eleitos entre juristas de reconhecido prestígio de diferentes nacionalidades. Entretanto, não tendo sido criado por resolução da Assebleia Geral, mas do Conselho de Segurança, deixou de obter a legitimidade máxima das instâncias nas Nações Unidas.

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