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Crimes globais e enfrentamentos internacionais

1.2. Criminalidade no cenário global

1.2.1. Crimes globais e enfrentamentos internacionais

A intensificação das trocas internacionais aliadas às facilidades propiciadas pela tecnologia, transporte e informação, ainda que de maneira moderada, alterou a realidade da criminalidade, mas sem que tenha gerado em si uma criminalidade global, apesar dos

53 DELMAS-MARTY, M. (trad. Marta M. Morales Romero), “Un pluralismo ordenado - Estudios jurídicos comparativos e internacionalización del derecho”, op. cit., p. 14.

54 Sobre o uso político dos direitos humanos, IGNATIEFF, Michel. Los derechos humanos como política e

idolatría. Barcelona: Paidós Estado y Sociedad 108, 2003.

55 BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE, I.; PÉREZ CEPEDA, A. “Derechos Humanos y Derecho Penal...”, op. cit., p. 100 (trad.livre).

32 sensíveis efeitos criminológicos. O fato de um crime transitar e transpor fronteiras modula a criminalidade transnacional56, e isso pode ter encontrado na globalização um fator que

favoreça esse tipo de crime57. Assim, a ocorrência de crimes relacionados à atividade

econômica é potencializada, assim como a criminalidade em relação ao controle aduaneiro, exigindo uma regulação global de temas como a corrupção de funcionários públicos estrangeiros, crimes contra a propriedade intelectual, crimes por meio da internet, tráfico de pessoas. É comum os crimes aproveitarem-se das oportunidades oferecidas com a abertura de caminho propiciada pelas novas correntes econômicas, novas formas de capitalismo e de organizações capitalistas, até porque as oportunidades econômicas chamam a atenção para a riqueza que criam e pelo meio de que se valem.

Abrindo o campo internacional para a evolução do direito penal, por meio dos crimes internacionais, contribui-se para o processo de globalização do direito penal, pressupondo questionamentos de ordem axiológica, por estarmos projetando em escala universal a parte mais simbólica do direito, “aquela que expressa pelo jogo dos ilícitos fundamentais uma identidade comum, a do pertencimento à sua comunidade de valores”, num universalismo normativo, ainda que fragilmente encontrado no plano empírico, conforme DELMAS-MARTY58, mas que confirma o pensamento de BORDIEU de que “os

símbolos são instrumentos por excelência da integração social”59. A preocupação em relação

ao uso simbólico do direito penal infelizmente é que não se atinge, por meio dele, a função primordial de efetivamente comunicar e fazer vigorar os valores de uma comunidade internacional segura e livre dos crimes mais violentos, vivida em paz e em harmonia60, por

56 Para CANCIO MELIÁ, Manuel, esse seria o grande vetor para a internacionalização do direito penal, “Internacionalización del Derecho Penal...”, p. 227.

57 VOGEL, Joachim. “Derecho Penal y Globalización”, op. cit., pp. 115-6.

58 DELMAS-MARTY, Mireille; CASSESE, Antonio. Crimes internacionais e jurisdições internacionais. Barueri: Ed. Manole, 2004, p. xvii. Também SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo, Finalidades da Pena, Conceito Material de Delito e Sistema Penal Integral, Tese de Doutorado, FADUSP, 2008, p. 5, sobre a expansão do conceito de delito para campos tradicionalmente não penais.

59 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. (Trad. Fernando Tomaz). 4ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 10.

60 A respeito do uso simbólico do direito penal, v. JAKOBS, Günther; CANCIÓ MELIÁ, Manuel. Derecho

Penal del Enemigo. Madri: Civitas. 2003, p. 217, ou cf. HASSEMER, W., ressaltando a prevalência de “uma oposição entre realidade e aparência (...) entre o ‘verdadeiramente querido’ e o ‘diversamente aplicado”, “La autocomprensión de la ciencia del derecho penal frente a las exigencias de su tiempo” (Trad. María del Mar Diaz Pita). In: MUÑOZ CONDE, Francisco (Coord.). La ciencia del derecho penal ante el nuevo milenio. Valência: Tirant lo Blanch, 2004, p. 28.

33 características típicas destes crimes, como o contexto organizacional da prática e as deficiências da função preventiva nesses casos61.

Essa avaliação também é compartilhada por SILVA SÁNCHEZ62, quando

observa que a expansão do direito penal decorre de uma espécie de perversidade do aparato estatal, e mesmo no âmbito internacional, da ação atribuída a cada Estado na construção dos institutos de direito internacional, ao buscar na legislação penal a solução de todos os problemas sociais, com o deslocamento do foco para o plano simbólico. Como resultado desta ação, afirma o autor, resulta que “as instituições do Estado não somente acolham tais demandas irracionais sem qualquer reflexão, em vez de introduzir elementos de racionalização nas mesmas”, alimentando-as em termos populistas. O sistema penal, além de mais extenso e cruel, nas palavras de SALVADOR NETTO63, torna-se mais impaciente

em vista da desenfreada antecipação de tutela, tipificações de perigo abstrato e mera conduta, num “desespero protecionista”.

Os casos de violações graves de direitos humanos ou de infrações ao direito internacional humanitário são problemas tratados como da comunidade mundial, ainda que VOGEL alerte para o risco de que problemas que não sejam realmente globais, como a escravidão e a pirataria, a criminalidade relacionada às drogas, terrorismo internacional, a partir da vinculação a que se trate de “ataques à civilização” ou aos “interesses comuns de todos os povos civilizados”64. Junto com o incremento da criminalidade65, próprio do mundo

contemporâneo, nota-se também uma criminalidade nova, potencializada por uma forma de organização mais profissionalizada, uma integração em formato de rede que se organiza ao redor do mundo (p. ex., ligada ao tráfico de drogas), o tráfico de seres humanos, criminalidade econômica66, marcados essencialmente pelo excesso de inteligência, mas

também pela capacidade de dano.

61 Tema a ser aprofundado no capítulo IV da tese.

62 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal..., op. cit., p 23.

63 SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Finalidades da pena, conceito material do delito (...), op. cit., p. 6.

64 VOGEL, Joachim, op. cit., p. 116.

65 Afirma-se que os tempos atuais assistem o incremento da criminalidade, conforme entende o Conselho Científico Criminológico do Conselho da Europa. V. SHAW, Mark; VAN DIJK, Fan; RHOMBERG, Wolfgang. “Determining trends in global crime and justice: an overview of results from the united nations surveys of crime trends and operations of criminal justice systems. Disponível em http://www.unodc.org /pdf/crime/forum/forum3_Art2.pdf (Acesso 30.08.2014).

66 V. ARROYO ZAPATERO, Luís. “A harmonização internacional do Direito Penal: ideias e processos” in

34 Fato é que cada vez mais a globalização é vista como um potencializador de uma criminalidade especial, chamada por alguns de criminalidade globalizada, marcando uma nova agenda para o direito penal, que se depara com a crença de que “frente a internacionalização do crime, urge responder com a internacionalização da política de combate ao crime”67. Nesse sentido, reforçam-se as ações de integração para a luta,

cooperação internacional e intercâmbios de conhecimentos e de ações de polícia. Reflexão aprofundada merecem as palavras do Ministro federal do interior alemão: “na luta contra o terrorismo temos que fazer uso efetivo de todos os instrumentos que estão à disposição do terrorismo. O direito penal é parte de uma missão de segurança do Estado de orientação preventiva. Temos que combater o terrorismo, também com o direito penal, ali onde comece a ser perigoso, e não somente quando se tenham produzido atentados”68, alterando-se

fundamentalmente a atuação do Estado, com discurso preventivo (“quando comece a ser perigoso”), para uma política proativa (“e não somente quando se tenham produzido atentados), inclusive à margem do Estado de Direito69 (“com o uso efetivo de todos os

instrumentos que estão à disposição do terrorismo”).

Os mecanismos de resposta a essa criminalidade global têm sido articulados de maneira conjugada, dentro do uso preventivo do direito penal, de persecução coordenada de agressões criminais e favorecendo a articulação das instituições que compõe o sistema de justiça criminal internacional, como forma de se forjar uma coesão intra-sistêmica70. Essa

articulação em torno do combate internacionalizado do crime, por sua vez, segue um rito específico quando liderados por agências ou organismos internacionais. Inicialmente, aprovam-se programas globais de ação, buscando assumir a liderança na promoção e

67 MIRANDA RODRIGUES, Anabela; LOPES DA MOTA, José Luís. Para uma política criminal europeia.

Quadro e instrumentos da cooperação judiciária em matéria penal no espaço da União Europeia, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 15.

68 SCHÄUBLE, Wolfgang. Zeitschrift für Rechtspolitik, 2006, p. 71, conforme citado por CANCIO MELIÁ, “La internacionalizacioón del derecho penal...”, op. cit., p. 232.

69 Em confronto exatamente com o já antecipado por RUDOLPHI: “si se quiere evitar que el Estado de

Derecho sea vaciado y minado desde dentro por la lucha contra el terrorismo, ha de prestarse una estricta atención a que no se renuncie de ningún modo a los principios propios del Estado de Derecho. Hay que evitar que nuestro Estado de Derecho ni siquiera por aproximación se convierta en aquella imagen que los terroristas, desconociendo radicalmente la realidad, presentan ya ahora injuriosamente de él. Pues también esto en última instancia supondría el triunfo de los terroristas sobre el Estado de Derecho”, RZP 1979, p. 214, citado por CANCIO MELIÁ, “Internacionalización del derecho penal...”, p. 239.

70 Conforme BASSIOUNI, M. Cherif. “International Criminal Justice in the Age of Globalization”,

International Criminal Law: Quo Vadis, AIDP, nº 19, 2004, p. 79, a respeito das instituições do Sistema de justiça internacional, e p. 90, sobre o progresso movido pelos atributos da globalização.

35 coordenação de ações interestatais daquelas infrações consideradas de especial interesse de ocorrência ou impacto internacional. Os instrumentos aprovados pelas agencias71

privilegiam um enfoque puramente punitivo do fenômeno, e concentram-se na harmonização de definições e dos padrões de criminalização e no estabelecimento de bases firmes para a cooperação na investigação e persecução dos crimes, sendo que apenas de maneira residual refere-se a temas de prevenção criminológica dos crimes ou do tratamento dos delinquentes72.

Do que vimos até então, encontram-se na agenda da globalização para o direito penal os seguintes temas:

a) criminalidade empresarial

b) criminalidade econômica individual

c) criminalidade organizada (tráfico de pessoas, terrorismo, drogas) d) criminalidade ambiental

e) criminalidade contra os valores da humanidade f) política criminal

Cada um destes tópicos representa uma lógica e um interesse nacional e setorial por trás, com esforços políticos e teóricos próprios a lhes dar substrato. Ainda que representem reflexos do mesmo sentido expansivo da tutela penal na globalização, ensejam os mesmos desafios de: aumento de esforços de harmonização em matéria penal, intensificação das iniciativas voltadas à cooperação, flexibilização do princípio da territorialidade desencadeando um processo supranacional de integração jurídica (judicial e legislativa) ao que VOGEL chamou de interlegalidade.

Tratando desta criminalidade internacional, BASSIOUNI entende que crimes internacionais não são sinônimos de delitos internacionais. Para o autor, são crimes internacionais aqueles atos que afetam ou a paz e a segurança da humanidade, ou são contrários aos direitos humanos, ou resultado de uma ação política do Estado. Em

71 Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Drogas e Substâncias Psicotrópicas de 1988, Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, 2005, com capítulo sobre prevenção, Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado, 2000.

36 consequência, são crimes típicos do direito penal internacional, quando se estuda sua competência. Por outro lado, delitos internacionais são aquelas infrações penais que afetam um interesse protegido pelo direito internacional, sem chegar à relevância e magnitude dos crimes internacionais, por outro, contém elementos de transnacionalidade. Assim, entre os delitos internacionais, BASSIOUNI73 enumera: pirataria, atentados à segurança da

navegação aérea internacional, atentados à navegação marítima e das plataformas em alto- mar, infrações contra as pessoas protegidas internacionalmente, sequestro internacional, financiamento ao terrorismo, uso ilícito dos meios postais, criminalidade transnacional organizada, atentados contra o meio ambiente, corrupção de funcionários públicos estrangeiros, tráfico de pessoas, entre outros.

Ocorre que em direito internacional penal, poucas vezes se declara claramente que um fato incriminado é um crime internacional. A contrário, o que ocorre comumente é os Tratados internacionais conterem prescrições dirigidas aos Estados parte com três principais mandamentos: a) obrigando-os a tipificar o fato em seu ordenamento interno; b) obrigando-os perseguir o fato punível, julgar e executar a pena; e b) atender a obrigação de extraditar aquelas pessoas acusadas ou declaradas culpadas pelo fato incriminado no tratado em outro Estado parte74. Organiza-se, assim, em torno de um tratado em matéria penal, uma

comunidade de Estados que perseguem o mesmo fato, envolvidas que estão em torno do mesmo objetivo e critério de valores e que optaram pelo recurso à ação em conjunto e de conteúdo penal para criar um ambiente mais seguro à sua população.

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