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Tendências a respeito: internacionalização e interlegalidade

1.2. Criminalidade no cenário global

1.2.2. Tendências a respeito: internacionalização e interlegalidade

Os efeitos da globalização para o direito penal são recepcionados de maneiras diversas. Em primeiro lugar, destacamos seu efeito multiplicador e condutor da expansão do direito penal, na construção teórica feita por SILVA SÁNCHEZ, que reduzirá seu aspecto garantista e menos próprio de um Estado de Direito, com regras de imputação mais flexíveis

73 BASSIOUNI M. Cherrif. “El derecho penal internacional: historia, objeto y contenido”. ADPCP Oceana Publications, Nova Iorque, p. 11.

37 e relativizando as garantias processuais75. PRITTWITZ, por sua vez, identifica na

globalização fenômeno que causa uma dolorosa erosão de nossa herança cultural comum, além do fato de que a globalização necessariamente conduza a adaptações e equiparações que levará à perda de peculiaridades das distintas tradições76 e referências de suas culturas

jurídicas.

VOGEL reforça a existência de uma nova dinâmica, fruto da integração de maneira desordenada de diversos planos de legalidade ou normatividade, citando que “vivemos em um tempo de (...) redes de contato de ordens jurídicas que nos forçam em direção a constantes transições ou trespasse. Nossa vida jurídica é constituída pela (...) interlegalidade”77. Essa interlegalidade pressupõe a captação dos valores essenciais para a

compreensão e posicionamento nesse contexto, não a condição estática de uma determinada ordem jurídica, mas essencialmente a “dinâmica do processo de intercâmbio entre as distintas ordens”78. É da convergência da atuação de uma miríade de novos agentes, de novas

relações, de novas ordenações e de novos interesses que faz com que interlegalidade seja considerada um fenômeno chave do direito penal da globalização. Notamos que esta interlegalidade, a demandar concertos internacionais para assinatura de determinada convenção internacional, também abrangendo a importância dos papéis desempenhados pelas organizações não-governamentais de alcance global, a influência exercida por Estados poderosos, como os Estados Unidos, na conformação das legislações penais de outros países79.

O segundo elemento para a compreensão da globalização nas esferas jurídicas da interlegalidade é a existência de um objetivo comum que orienta a união dos diversos agentes: o fortalecimento da persecução penal e do interesse globalmente compartilhado nas punições, partindo da ideia de que os ordenamentos jurídicos nacionais são impotentes diante

75 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal..., op. cit., p. 21.

76 Por exemplo, a flexibilização do princípio da legalidade em direito penal internacional, ou as inter- influências do common law no direito civil praticado pelos tribunais internacionais. GIL GIL, Alicia. Derecho penal internacional. Madri: Tecnos, 1999 e BASSIOUI, M. Cherif, Introduction to International Criminal Law. 2 edicao, Brill:Nijhoff, 2012.

77 Do original, “We live in a time of [...] network of legal order forcing us to constant transition or trespassing.

Our legal life is constituted by [...] interlegality”. VOGEL, op. cit., p. 117.

78 VOGEL, “Derecho Penal y Globalización”, op. cit., p. 117. Contrariamente à existência atual de uma tendência de convergência científica, CANCIO MELIÁ, Manuel, “Internacionalización del Derecho Penal (...)”, pp. 226-7, afirmando que não se pode dizer que se tenha progredido muito em direção a um verdadeiro conhecimento mútuo.

38 da criminalidade transnacional. Também em relação a este aspecto, terá mais força o repertório de criminalidade elegida pelos poderes que organizem determinado concerto internacional. Passa a surgir a questão de a partir de quando se está diante de uma criminalidade global, ainda que de efeitos locais, ou de uma criminalidade transnacional. Por criminalidade global entende-se uma criminalidade gestada para ocorrer em diversas partes do globo simultaneamente, desestabilizadora e generalizada. Assim, crimes transnacionais corresponde a uma parte do conceito de crimes globais.

A interlegalidade, em relação ao direito penal, contribui como vetor de mudanças relevantes para a modernização do direito. Consoante observado por VOGEL, o direito penal passa a não desfrutar daquele status especial que confere à pena e o direito penal a ultima

ratio da intervenção estatal, passando a ser tanto a ciência quanto seu mais contundente

elemento, a pena, mais um dos vários mecanismos de intervenção estatal, em equivalência com os demais instrumentos de que dispõe o Estado na definição de suas prioridades e construção de sua política.

O direito penal globalizado se concentra em campos modernos, com características modernas, no sentido da crítica formulada por HASSEMER, com o uso frequente de crimes de perigo e de organização, com estruturas de imputação distintas e provas mais fáceis que as do direito penal clássico, conforme referido por VOGEL, com a incriminação de condutas no campo anterior ou posterior a um dano concreto, como a falsificação de documentos ou lavagem de dinheiro. Para ARROYO ZAPATERO80, por sua

vez, o direito penal moderno não é mais do que a aceitação do direito penal das modernas condições da vida social do tempo contemporâneo, a requerer novas formas e instrumentos de proteção dessas novas necessidades sociais – conquanto vaga a afirmação, em essência trata-se da máxima flexibilização do direito penal para apoiar o combate aos novos inimigos da sociedade. O autor pondera que qualquer novidade absorvida pelo direito penal é parte e consequência da mudança de panorama global do nosso mundo cultural, em alguns dos seus contornos jurídicos, sintetizado na sensação de cidadania do mundo.

80 ARROYO ZAPATERO, Luís. “A harmonização internacional do Direito Penal: ideias e processos”,

RIBCCRIM, ano 18, nº 84, maio-jun/2010, pp. 64-71. Faz referência, em especial, aos “delitos imprudentes”, como os delitos contra a segurança viária, a incriminação da “direção perigosa” e exasperação das penas em caso de morte ou lesão, inclusive pela combinação com a previsão das penas administrativas pelo sistema de pontos na carteira de motorista.

39 Ocorre que o direito penal, ao exigir um alto nível de legitimação do controle do poder punitivo do Estado81, não pode descuidar dessa sua função maior para se concentrar

apenas no poder criativo de tipos penais. A atuação das organizações internacionais ou supranacionais, como a União Europeia, ensejam relevantes questionamentos em suas atribuições relacionadas ao crime e ao direito penal diante do déficit democrático, pela falta do poder de controle da ação punitiva, em suas competências substanciais em matéria de legislação penal ou política criminal82. Ressalta-se, portanto, que esse aspecto pragmático

de um direito mais preocupado com a luta preventiva efetiva e de orientação policial, não gera necessariamente uma preocupação com a justiça ou com a profundidade de um processo de internacionalização do direito penal83. A exigência prática que a sociedade leva ao direito

penal traz um enunciado vazio, sem apontar o que se entende por criminalidade e quais as condutas em questão, pois os instrumentos que se quer manipular, com o aumento das sanções e a redução das garantias, concentram-se nos campos preventivos.

A aplicação do direito penal na perspectiva da sua internacionalização e interlegalidade passa a ser mais complicada, menos previsível e mais custosa em tempo, o que de modo evidente afeta o “princípio jurídico-penal da determinação e do mandamento processual penal da celeridade”, cobrando um preço ainda mais alto de sua legitimação e segurança jurídica de seus preceitos84. VOGEL questiona se nos encontramos a caminho de

uma ciência global do direito penal, que trabalhe ainda que utopicamente sobre um direito penal mundial, ou se a ciência penal continua enraizada à sua família do direito penal de origem, cultivando a identidade e a cultura jurídico-penal nacional e, sobretudo, defendendo- a contra os embates da globalização. Opina que a ciência do direito penal esteja mudando e que deve mudar sob o influxo da globalização em um sentido triplo: da abertura metodológica, sua aproximação da prática de casos e das questões materiais (em oposição às questões da dogmática jurídica) – numa referência à construção de uma gramática própria

81 Manuel CANCIO MELIÁ refere-se à função de bloqueio do direito penal e de elementos de sua configuração dentro de um ordenamento jurídico estatal, “Internacionalización del Derecho Penal y de la Política Criminal: algunas reflexiones sobre la Lucha Jurídico-Penal contra el Terrorismo”, apresentadado nas III Jornadas Jurídicas Luso-Espanholas: Internacionalização do Direito no novo século (ad honorem Jorge de Figueiredo Dias), Univ. de Coimbra, Faculdade de Direito, 24.11.2006.

82 VOGEL, “Derecho Penal y Globalización”, op. cit., p. 119.

83 Para CANCIO MELIÁ, não se está tratando apenas da internacionalização do pragmatismo dos agentes estatais no plano da persecução penal, mas sobretudo da ideologia penal, das perspectivas da teoria da pena, da infiltração das novas concepções penais na política criminal prática dentro dos Estados, “Internacionalización del Derecho Penal...”, op. cit., pp. 227 ss.

40 na qual todos os ordenamentos nacionais se encontrem, se reconheçam e se equivalham. Em terceiro, de dedicar-se menos a questões de dogmática penal, também passa a preocupar-se com a política criminal, fazendo perene o direito penal a uma razão democrática. Estas mudanças, dentro de um contexto maior, de perda de poder estatal, de profundas alterações dentro da estrutura do direito, de integração e interdependência cada vez maior e mais poderosa de instituições de soberania, sistemas, tradições e culturas jurídicas, coloca-nos todos diante da gênese de um novo ramo do direito85, a ser maior debatido e aprofundado

pelas áreas de teoria e filosofia do direito. Fato é que se pode falar de quase 200 sistemas legais nacionais, além instituições internacionais com poder de adjudicação ou escritórios de investigação, “todos perseguindo o mesmo tipo de violações, aplicando mais ou menos as mesmas normas”86.

Apesar da mudança por que passa o direito penal, a existência de uma justiça penal globalizada ainda está longe de qualquer horizonte plausível, até porque são muitas as dificuldades de funcionamento com uma unidade real e operacional, não somente no âmbito interestatal, mas sobretudo no seio dos próprios sistemas nacionais, conforme DE LA CUESTA. Segundo o mesmo autor, as tendências de internacionalização e a emergência de um Tribunal Penal Internacional não são ainda acontecimentos com força suficiente para mudar as bases principais da ordem penal internacional, cujos fundamentos continuam sendo a Paz de Westfalia87.

Conforme já assinalado no item 1.1.1, tem-se localizado na globalização seu potencial de desestruturação das funções de garantias, a espinha dorsal do direito penal: prevenção dos crimes e prevenção das penas arbitrárias. Em termos de prevenção dos crimes, FERRAJOLI trata de uma nova forma de criminalidade que ataca os bens e direitos fundamentais de uma sociedade ao ameaçar de forma mais grave os direitos, a democracia, a paz, o futuro do planeta, a chamada criminalidade do poder88: o crime organizado, o crime

econômico e o crime dos poderes públicos. Está-se falando, não da criminalidade individual,

85 CANCIO MELIÁ, M. “Globalización y Derecho”. Anuário de la Facultad de Derecho de la UAM, num. 9, 2005. Também, em outra perspectiva, reafirmando o atual direito penal internacional em suas bases comuns, BASSIOUNI, M. Cherif. “International Criminal Justice in the Age of Globalization”, op. cit., pp 79-90. 86 Conforme BASSIOUNI, M. Cherif. “International Criminal Justice in the Age of Globalization”, op. cit., pp 80 (trad. livre).

87 CUESTA, José Luís de la. “Retos y perspectivas del sistema penal en un mundo globalizado”, op. cit., p. 275.

41 marginal, mas fortemente organizada, estratificada, com grande poder de destruição ou de causar sofrimento em larga escala. Em alguns casos, por sua ligação com o poder, essa criminalidade representa uma força desenfreada, de difícil persecução e que persiste à margem das leis e do Estado de Direito, com grande expectativa de impunidade e grande capacidade de intimidação, por vezes sequestrando o próprio Estado de suas funções.

Diante da tendência expansiva do direito penal moderno, aliada à flexibilização de regras de imputação e de garantias penais individuais e empresariais, especialmente presente na sociedade do risco, BERDUGO e PÉREZ identificam algumas características relevantes para os propósitos do presente estudo: “a) instrumentalização do direito penal; b) tendência de o direito penal moderno tornar-se inoperativo, seletivo e simbólico; c) excessiva antecipação da tutela penal (prevencionista); d) exasperação punitiva; e) desformalização (flexibilidade das garantais penais, processuais e de execução); f) prisionização (explosão carcerária); g) excepcional, mais severo e repressivo; h) premial (colaboração com a justiça)”89.

Diante dessas considerações, a internacionalização do direito penal tem trazido perspectivas disruptivas em relação ao direito tradicional. Entretanto, não podemos fechar os ouvidos a esses desafios, escondendo-nos no estático plano do direito tradicional, mas aprofundar os questionamentos que precisam ser feitos para posicionar os marcos jurídicos nesse novo cenário.

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