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e) Líbano: Tribunal Especial para o Líbano ou “Tribunal Hariri”

3.1. Crimes Internacionais vs Crimes de Direito Internacional

3.1.1 Aspectos Gerais e Definição

Ao lado do movimento relacionado à instauração dos tribunais penais internacionais, também faz parte do direito penal internacional a tipificação internacional de delitos e sua forma de repressão, por meio das fontes próprias de direito internacional, visando a proteção penal da comunidade internacional e dos bens jurídicos supranacionais ou supraindividuais, por meio da repressão aos crimes internacionais próprios ou crimes de direito internacional. Desta forma, de maneira simplificada, inclui-se na disciplina o que for do interesse da comunidade internacional367 e exclui-se o que é da esfera interna do Estado,

ainda que relacionado à persecução penal e à atuação internacional do Estado368. Retomando

367 Faz-se referência, a respeito do interesse da comunidade, à presença de um “elemento internacional”, buscando proteger os mais relevantes bens jurídicos da comunidade internacional dos ataques que ocorrem num contexto sistemático ou massivo de violência, cuja responsabilidade por estes ataques recai, em geral, sobre um ente coletivo, o Estado (embora o próprio art. 25.4 do Estatuto do TPI estabeleça que a responsabilidade do Estado é independente da das pessoas naturais). O fato global de violência organizada (“Gesamttat”) é o que diferencia dos crimes individuais, referido em relação aos crimes de genocídio e contra a humanidade, por exemplo. V. WERLE, Gerhard. Tratado de DPI. Op. cit., pp. 81-83.

368 Nossa definição de direito penal internacional nos separa de grandes estudiosos, como BASSIOUNI e, entre nós, JAPIASSÚ, para quem o direito penal internacional abrangeria também regras relativas à aplicação

131 o conceito apresentado no início do segundo capítulo, entendemos o direito penal internacional como a área do direito que estuda a aplicação das disposições com conteúdo penal emanadas da comunidade internacional com o fim de tutelar seus interesses fundamentais, às quais estariam submetidos diretamente os cidadãos de todas as nações e que seriam aplicadas por órgãos internacionais ou nacionais cujo ordenamento admitisse a aplicação direta dos tipos penais baseados no direito penal internacional. Assim, conforme WERLE, o direito penal internacional compreende todas as normas que fundamentam uma punibilidade de forma direta no direito internacional369. Uma outra definição, trazida por

AMBOS, é a de que o direito penal internacional é o conjunto de todas as normas de direito internacional que estabelecem consequências jurídico-penais, combinando “princípios de direito penal e de direito internacional”370, ou, em outras palavras, “o sistema penal da

comunidade internacional”. Para CASSESE, é o corpo jurídico criado para proibir certas categorias de condutas e para tornar aquelas pessoas que as praticam criminalmente responsáveis. Eles consequentemente ou autorizam Estados, ou impõem sobre eles obrigações para processar e punir estas condutas371.

A origem do direito penal internacional também encontra-se ligada ao processo de afirmação dos direitos humanos, tendo por raiz comum o direito internacional humanitário. Segundo WERLE, os direitos humanos são fonte de direitos individuais e o direito penal internacional a fonte de responsabilidade penal na órbita internacional, tendo essa relação se estreitado profundamente após os eventos catastróficos da II Guerra Mundial. Como duas caras da mesma moeda, sustenta WERLE que cada pessoa natural seja destinatária de direitos (humanos) e deveres (responder diante de omissões ou ações penalmente tipificadas) internacionais. Os direitos humanos objeto de proteção penal internacional são somente aqueles mais violentamente atacados, representando a

extraterritorial do direito penal interno, como a extradição, que, ligados à internacionalização do crime e de sua repressão, não o destacam para essa nova dogmática rumo a um direito supranacional. V. BASSIOUNI, M. Cherif. International Criminal Law. Project for an International Criminal Code.; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Direito Penal Internacional. Belo Horizonte, Ed. Del Rey, 2009, pp. 4-5.

369 WERLE, Gerhard. Tratado de Derecho Penal Internacional, op. cit., p. 76. WERLE afirma que essa definição encontra apoio majoritário da doutrina alemã, condensada na expressão Völkerstrafrecht (direito penal internacional), empregada pela primeira vez por BELING, Die strafrechtliche Bedeutung der Exterritorialität, 1896, pp. 40 ss.

370 AMBOS, Kai. A parte geral do direito penal internacional: bases para uma elaboração dogmática (Trad. Carlos Eduardo Adriano Japiassú e Daniel Andrés Raizman). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2008, p. 42.

132 criminalização internacional o mais alto nível de proteção, aplicando-se com vigor o princípio de que o direito penal atua como mecanismo de ultima ratio.

O direito penal internacional passa a fazer sentido e a ganhar concreção quando os atores jurídicos internacionais no âmbito do direito público não são mais restritos apenas aos Estados-Nação. O sistema prevalente de um direito internacional público criado e controlado por Estados soberanos, para sua conveniência, valorosos de suas doutrinas clássicas de imunidade diplomática e soberania, não intervenção em assuntos domésticos, não submissão compulsória à Corte Internacional de Justiça, igualdade de votos dos Estados na Assembleia Geral, prejudicam os direitos humanos372.

O sistema de justiça criminal proposto por BASSIOUNI seria uma combinação de instituições internacionais, como o TPI, os tribunais ad hoc, escritórios de investigação, sistemas nacionais de justiça criminal que atuem de forma complementar373 para a aplicação

das normas de direito penal internacional. Diante do horror que afeta a consciência mundial, resulta um regime jurídico próprio, cujas características, no entender de ZILLI, ASSIS MOURA e MONTECORNADO374, abrangem a consagração do direito costumeiro, da

imprescritibilidade, da impossibilidade de anistia e da imprestabilidade da coisa julgada fraudulenta. DELMAS-MARTY375 agrega, ainda, elementos estruturais para a confirmação

de uma gramática comum. A primeira é a da legitimidade/efetividade, combinando a relação de legitimidade, em referência axiológica à proteção e exaltação dos mesmos valores: uma construção que seja equilibrada entre os critérios em torno dos quais gravita essa comunidade de Estados, as circunstâncias relativas aos acusados, aos interesses das vítimas, em relação

372 Nas palavras do autor, “at the beginning of the twenty-first century, international law remains subordinate

and subservient to state power, which tends to favor economic, political or military interests whenever they conflict with those of justice. That said, realpolitiking these days must take human rights into account, if only because CNN viewers cast votes and NGOs in the area attract considerable funding and popular appeal”. ROBERTSON, Geoffrey. Crimes Against Humanity – The Struggle for Global Justice, Alan Lane: Penguin, 1999, pp. 91 e 92.

373 BASSIOUNI, M. Cherif. “International Criminal Justice in the Age of Globalization”, International

Criminal Law: Quo Vadis?, op. cit., pp. 79-81.

374 ZILLI, Marcos; ASSIS MOURA, Maria Thereza; MONTECONRADO, Fabíola Girão. “A Justiça de Transição no Brasil – um caminho ainda a percorrer”. In: AMBOS, Kai; ZILLI, Marcos; ASSIS MOURA, Maria Thereza; MONTECONRADO, Fabíola Girão. Anistia, Justiça e Impunidade – reflexões sobre a Justiça de Transição no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2010, pp. 186-187. AGUILAR, Francisco. Amnistia e constituição. Coimbra: Almedina, 2004, p. 186.

375 DELMAS-MARTY, Mireille. “La CPI et les interactiones entre droit internacional pénal et droit pénal interne à la phase d´ouveture du procès pénal”. Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé, 3, jul/set, 2005, p. 480.

133 à efetividade, que remete à possibilidade de sucesso das investigações e de julgamentos e da credibilidade do Tribunal. A segunda gira em torno de um eixo formado pelo universalismo/relativismo, buscando a conjugação do universalismo de uma justiça penal com vocação mundial, baseada na gravidade dos crimes contra o direito internacional, invocando valores de base universal, com o relativismo das situações nacionais, devendo-se levar em conta de modo diferenciado alguns critérios, como o interesse das vítimas, o impacto dos processos na situação de cada país ou o recurso, em alguns casos, às formas alternativas de resolução de conflito. Cabe-nos refletir sobre o conjunto, que não deve ser uma ordenação da soma das várias partes, mas da construção de uma nova unidade, em torno de valores e funcionalidades, que corresponda e atente para a ordenação plural dos sistemas que compõem ou inspiram a justiça criminal internacional.

Numa perspectiva formal, encontramos a construção proposta por WERLE, que formula que para uma norma fazer parte do corpo jurídico penal internacional, ela deve preencher três condições: a norma deve descrever um injusto imputável individualmente e ameaçar com uma sanção penal376; a norma deve ser parte do ordenamento jurídico

internacional; e, por fim, a punibilidade deve existir com independência à recepção do tipo delitivo na ordem jurídico estatal.

Em relação a esses critérios, para o direito internacional clássico, não havia o indivíduo como ator das disputas que sob ele se produziam. Assim, era inimaginável que uma norma de direito internacional pudesse ser infringida por pessoas individuais. Há delitos do indivíduo, mas não delitos contra o direito internacional, conforme cita JESCHECK377.

Afirma o autor que somente o direito estatal poderia proteger com suas próprias normas o direito internacional, resvalando ao final no indivíduo sua responsabilidade jurídico-penal

376 Isto porque já se declarou a importância do princípio da culpabilidade em direito penal internacional: “well

settled legal principles, one of the more importante of which is that criminal guilt is personal, and that mass punishments should be avoided” (“bem estabelecidos os princípios legais, dos quais um dos mais importantes é o de que a culpa criminal é pessoal, e o de que as punições massivas devem ser evitadas” – trad. livre), Tribunal Militar Internacional, sentença de 1º de outubro de 1946. A necessária vinculação da pena à culpabilidade do autor é um dos princípios centrais do direito penal, a indicar a possibilidade de existência de sanção (“se” existe pena), mas também sua extensão. A esse respeito, entre outros, FRISCH, Wolfgang, “Sobre el futuro del derecho penal de la culpabilidade” (Trad. Bernardo J. Freijoo Sánchez). In: FREIJOO SÁNCHEZ, Bernardo José (ed.). Derecho Penal de la Culpabilidad y Neurociencias, Civitas, Madri, 2012. Também BASSIOUNI, M. Cherif. Crimes against humanity, 1992 e Crimes against humanity in international law, 1999 e LEBEN, Charles. “The changing structure of international law revisited. By way of introduction”. EJIL, 1997, p. 399-409.

377JESCHECK, H.H. “Nuremberg Trials”. In: BERNHARD, R. (ed). Encyclopedia of Public International

134 em relação às obrigações impostas ao Estado – ou seja, a relação do indivíduo com a comunidade internacional era indireta, intermediada pelo Estado. Apenas recentemente passou-se a considerar, em casos específicos, o indivíduo como sujeito passivo e ativo das obrigações na ordem internacional, notadamente diante de graves violações de normas protetivas da existência e integridade de uma comunidade378. Seguindo os passos do Tribunal

de Nuremberg e de Tóquio, e posteriormente os tribunais ad hoc para a Iugoslávia e Ruanda, transformou-se a natureza da responsabilidade criminal, originalmente atribuída aos Estados, para uma responsabilidade centrada no indivíduo, afirmando-se que o direito resultante das decisões dos tribunais internacionais humanizaram o próprio direito humanitário sob dois aspectos principais: por meio da interpretação que leva à busca da realização dos objetivos da norma (perspectiva propositiva); pela prioridade dada à nova forma de se compreender a cláusula Martens379, do direito dos conflitos armados e a proteção

da população civil no âmbito do direito internacional (perspectiva protetiva).

O direito penal internacional tem como destinatário as pessoas naturais, e não o Estado, promovendo, pela renovação própria do direito, a atualização do direito internacional, que passa a não apenas considerar o indivíduo como sujeito de direitos na esfera internacional, mas especialmente a receber as influências domésticas à hora de formular teorias jurídicas, construir os princípios, respaldar suas decisões, avaliar elementos políticos na definição dos processos de justiça de transição. Embora de forma diferente, o direito internacional se fez especialmente perene ao direito nacional primeiro, na conformação da proteção internacional dos direitos humanos, e segundo, na interação propiciada e demandada pela construção do direito penal internacional.

As características desta nova área são, no entender de CASSESE380: a) uma

formação ainda em progresso, ainda não concluída do conjunto de regras geralmente aplicáveis; b) fundada em regras baseadas no direito consuetudinário, com novas classes de crimes e elementos constitutivos vigentes ainda que naquela época ainda não totalmente

378 Sobretudo a partir da decisão do TMI de Nuremberg, ao se afirmar que : “crimes against international law

are committed by men, not abstract entities, and only by punishing individuals who commit such crimes can the provisions of international law be enforced” (Decisão do TMI, p. 41).

379MENON, Theodore. “The humanization of humanitarian law”. AJIL, 94, 200 p. 239. Sobre a cláusula

Martens, Corte Internacional de Justiça, “Legality of the threat or use of nuclear weapons”, de 8 de julho de 1996, e TICEHURST, R. "The Advisory Opinion of the International Court of Justice on the legality of the threat or use of nuclear weapons " , War Studies Journal, Outono, 2, 1, 1996, pp. 107-118.

135 claros (relativos, por exemplo, às condições objetivas e subjetivas do crime – actus reus e

mens rea), assim como suas penas. Essa situação fica clara na atuação dos tribunais

internacionais que se baseiam no seu estatuto e que previram uma série de crimes que deveriam ser punidos. Entretanto, esta série de crimes não foi enumerada nem previamente descrita com o rigor e a sistematização de código penal, mas simplesmente como a especificação da competência judiciária do tribunal em questão. Foi comum, portanto, o uso do texto que atribui competência para um tribunal internacional processar determinados crimes para fundamentar o entendimento daquela corte sobre o tipo legal que seria julgado381; c) e decorre simultaneamente do direito internacional humanitário e dos direitos

humanos, assim como do direito penal comum. Isso porque, diante da escassez de tratados, reconheceu-se a transposição gradual ao nível internacional das regras próprias do direito penal nacional. Como uma nova área jurídica, é essencialmente híbrida: direito internacional público impregnado pelas noções, princípios e construções jurídicas derivadas do direito penal comum, do direito internacional humanitário e dos direitos humanos. Desta forma, são considerados crimes de direito internacional ou crimes internacionais próprios os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade, genocídio, tortura, agressão.

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