• Nenhum resultado encontrado

b) Ruanda: Tribunal Penal Internacional para Ruanda

Outro episódio de extensivas consequências humanitárias ocorreu em Ruanda, em abril de 1994, em seguida à queda do avião em que viajavam os presidentes de Ruanda e Burundi ocasionada pelo disparo de um míssil. Um novo governo instalou-se em julho de 1994, após uma das guerras civis mais cruéis da história. Segundo MINIUCI228, esse ataque

foi o estopim para a retomada do conflito, que já vinha sendo gestado há décadas. Nos três meses seguintes ao ataque, cerca de 800 mil tutsis foram mortos. Além de assassinatos de indivíduos, cometeram-se também execuções em massa, estupros, pilhagens, torturas, entre diversas outras condutas submetidas a exame da comunidade internacional.

Diante do desastre humanitário que se conheceu, voltando a atuar com base no Capítulo VII da CNU, o Conselho de Segurança adota a Resolução nº 955 determinando a criação do Tribunal Internacional para o julgamento dos crimes internacionais perpetrados

227 Conforme Caso Tadic, supra, § 62 (trad. livre).

88 em Ruanda (TPIR). Por ocasião dos conflitos, Ruanda era um dos membros provisórios do Conselho de Segurança e pediu que fosse determinada a criação de um tribunal. Era uma forma de o novo governo pavimentar o caminho da reconstrução pós-conflito, de atrair a aprovação internacional ao novo regime por meio de um processo de autoavaliação e processamento judicial internacional pelos mais graves abusos que ocorreram durante a guerra civil229. Entretanto, o próprio país votou contra a Resolução nº 955 do Conselho de

Segurança por discordar de algumas de suas disposições230. Entre os motivos indicados pelo

governo, destacam-se os seguintes: a) o país não aceitava a limitação ratione temporis de competência para os atos cometidos em 1994, visto que desde antes já vinham sendo planejados e executados atos graves, inclusive massacres em menor escala, mas em condições de subsumi-los ao crime de incitamento ao genocídio, previsto no art. 2 do Estatuto do TPIR; b) a estrutura do tribunal não parecia adequada, ficando a impressão, nas palavras do Embaixador de Ruanda para a ONU, M. Bakuramutsa, que se estaria apenas apaziguando a consciência da comunidade internacional231; c) o país estava preocupado com

a participação de países que haviam apoiado o genocídio na indicação de juízes para o tribunal; d) também não aceitavam a prisão de pessoas sentenciadas pelo tribunal em países terceiros, e que esses países terceiros tivessem poder sobre os presos; e) tampouco concordava com a exclusão da pena de morte entre as penas aplicáveis pelo tribunal, por se tratar de uma pena ainda em vigor no Código Penal do país232 e desde já adiantou a

controvérsia: os acusados julgados pelo TPIR poderão receber uma pena menor do que os acusados de crimes muito menos graves quando julgados pela justiça local (Arusha x Kigali), como de fato ocorreu; e, ainda d) insistiu-se para que a sede do tribunal ficasse em Ruanda, com efeitos diretos na percepção da população dos julgamentos e efeitos da justiça criminal internacional para os crimes graves ocorridos no país. Apesar do voto negativo, o país afirmou que cooperaria com o funcionamento do tribunal em qualquer caso.

O TPIR seguiu a mesma estrutura do TPII, prevendo os crimes de sua competência em seu Estatuto, a mesma forma de atuação da procuradoria e da Corte de Apelação. E, como tem sido visto em direito internacional, a cada instituição, busca-se aprimorar alguns dos seus aspectos institucionais e de funcionamento, especialmente diante

229 Cassese, A. International Criminal Law, p. 327. 230 Doc. ONU S/1994/1115 e S/PV.3453, respectivamente. 231 Cf. Doc. ONU S/PV.3453, p. 15

232 Conforme os arts. 26 e 312 (homicídio premeditado) do Código Penal Ruandês (Decreto-Lei nº 21/77 de 18 de Agosto de 1977, Journal Officiel de la République Rwandaise de 1º de julho de 1978).

89 da experiência retratada pelo tribunal que o antecedeu. Isso porque, diante de um conflito interno, alterou-se sua competência material e temporal, para abranger apenas os fatos ocorridos após 1994, mas especialmente em relação aos crimes contra a humanidade. Também não se faz mais referência à existência de um conflito armado para a definição da competência do tribunal, como vinha sendo previsto nos estatutos de tribunais anteriores. A configuração de crimes contra a humanidade, portanto, poderia ocorrer dentro de uma mesma base nacional, étnica, racial ou religiosa, inclusive em tempos de paz, em referência à decisão no caso Tadic233.

Entre os principais julgados, citamos o Caso Akayesu, major da região de Taba, onde milhares de tutsis foram vítimas de estupro, tortura e assassinato. Inicialmente recebeu 12 acusações de genocídio, crimes contra a humanidade e violações às Convenções de Genebra na forma de assassinato, tortura e tratamento cruel, e posteriormente foram incluídas ainda outras 3 acusações de crimes contra a humanidade e violações do Artigo 3º, comum, do Protocolo Adicional II por estupro, atos desumanos e violação moral. Pela primeira vez se considerava o estupro como elemento de genocídio em direito internacional. Em 2 de setembro de 1998, o TPIR condenou Akayesu por 9 acusações de genocídio, incitação direta e pública para o cometimento do genocídio e crimes contra a humanidade pela exterminação, assassinato, tortura, estupro e outros atos desumanos234.

Outros dois precedentes também merecem ser citados como importantes resultados e efeitos jurídicos das decisões do TPIR. Foi levado a julgamento Jean Kambanda, que foi o Primeiro Ministro durante o governo interino de Ruanda, durante os 100 dias de genocídio, reconhecendo-se culpado diante de 6 acusações de genocídio, conspiração para o cometimento de genocídio, incitamento direto e indireto para o cometimento de genocídio, cumplicidade em genocídio e crimes contra a humanidade. Foi a primeira vez que um chefe de Estado fora condenado por genocídio, mas também que uma pessoa se declarara culpada pelo cometimento do genocídio ante um tribunal penal internacional.

233 Sentença da Corte de Apelação de 2 de outubro de 1995 (N. IT-94-1-AR72).

234 Conforme o comunicado do Tribunal, essa condenação representou “the first in which an international

tribunal was called upon to interpret the definition of genocide as defined in the Convention for the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide” (v. ICTR Fact Sheet No. 1, The Tribunal at a Glance).

90 Também o TPIR julgou acusações levantadas contra diretores de veículos de mídia, em que se discutiu pela primeira vez desde Nuremberg o papel da mídia na disseminação do discurso do ódio e sua relação com a incitação ao genocídio235. Esse tema

esteve presente no julgamento de Ferdinand Nahimana e Jean-Bosco Barayagwiza, líderes da Radio Television Libre Milles Collines (RTLM), e de Hassan Ngeze, fundador e diretor do jornal Kangura (reunidos sob a denominação comum “The Media Case” - Prosecutor v.

Ferdinand Nahimana, Jean-Bosco Barayagwiza e Hassan Ngeze). Em 2003, Nahimana, Barayagwiza e Ngeze foram condenados pelos crimes de genocídio, conspiração para

cometer genocídio, incitação direta e indireta para o cometimento de genocídio e crimes contra a humanidade236

Após a instalação dos dois Tribunais ad hoc, movimentando grandes esforços do Conselho de Segurança além de recursos financeiros, logísticos, e tempo, justificadamente pode-se dizer que ele chegou a um ponto de “tribunal fatigue”, na feliz expressão cunhada por David SCHEFFER237. Apesar do grande passo dado em relação à construção de um

sistema judiciariforme internacional, o Conselho de Segurança estava constantemente envolvido na defesa dessas instituições contra as críticas, ao mesmo tempo que tendo que responder aos grandes desafios logísticos, consumo de recursos para suas ações, de modo que o Conselho de Segurança viu-se inclinado a não mais pretender a criação destes órgãos.

235 Relevantes reflexões trazidas sobre a criminalização do discurso do ódio, mas também a interpretação extensiva do TPIR, v. ORENTLICHER, Diane F. “Criminalizing Hate Speach in the Crucible of Trial: Prossecutor vs. Nahimana”. American University International Law Review, nº 21, v. 4, pp. 557-593. 236 TPIR, Caso Jean-Paul Akayesu (ICTR-96-4-T), julgamento pela Câmara de Julgamento, decisão de 2 de setembro de 1998; TPIR, Caso Jean Kambanda (ICTR 97-23-S), julgamento pela Câmara de Julgamento, decisão de 4 de setembro de 1998; TPIR, Caso Ferdinand Nahimana, Jean-Bosco Barayagwiza e Hassan Ngeze (ICTR-99-52-T), julgamento pela Câmara de Julgamento, decisão de 3 de dezembro de 2003; TPIR, Caso Ferdinand Nahimana, Jean-Bosco Barayagwiza e Hassan Ngeze (ICTR-99-52-A), julgamento pela Câmara de Apelação, decisão de 28 de novembro de 2007.

237 Assessor ao Representante Permanente dos Estados Unidos na ONU, citado por BASSIOUNI, M.Cherif.

91

2.4.3. Tribunais Mistos Ad Hoc

238

Enfrentando diversas críticas relacionadas à instalação dos tribunais internacionais ad hoc, notadamente com relação aos seguintes aspectos: altos custos; excessivamente lentas em seus processamentos; sua distância em relação ao local dos fatos e, consequentemente seu limitado impacto em relação ao resultado dos julgamentos na população local; e ausência de foco em relação às pessoas sujeitas à jurisdição da corte, resultando no processamento de graduados subalternos na hierarquia dos crimes perpetrados, optou-se pelo estabelecimento de tribunais locais, com a presença de juízes estrangeiros julgando em câmaras também compostas por juízes nacionais (composição híbrida), em julgamentos que se pretendiam mais rápidos e com orçamento reduzido. Consoante será visto, a instalação pode ocorrer de diversas formas, ou por ato internacional das Nações Unidas, com estatuto e instituição dessa natureza, ou por ato local, com apoio e recursos complementados pelas Nações Unidas.

Assim, para além dos tribunais internacionais, localizados fora dos territórios de conflito e compostos por juízes de outros países, o Conselho Geral também considerou a possibilidade de instalação de tribunais ad hoc em Serra Leoa, Timor Leste, Kosovo, Líbano e Camboja em finais da década de 1990 e começo de 2000. Foram tribunais com composição mista, juízes nacionais e internacionais, para julgarem as graves violações ocorridas nos confrontos que resultaram na troca de seus governos.

Outline

Documentos relacionados