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CASSESE189 define o direito penal internacional como o corpo de regras

internacionais voltadas a condenar certas categorias ou condutas (crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio, tortura, agressão, terrorismo) e tornar os indivíduos que pratiquem estas condutas criminalmente responsáveis. Além disso, o direito penal internacional abrangeria as normas procedimentais diante dos tribunais para o processamento e julgamento dos acusados destes crimes. Desta forma, as obrigações de obediência e de atribuição de responsabilidade são aplicáveis diretamente, sem a intermediação de um Estado.

O direito penal internacional é um ramo reconhecidamente híbrido, filho de um casamento tripartite entre o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional humanitário (primo do jus in bello) e o direito penal nacional. A dificuldade e o debate central na consolidação dessa nova área é precisamente a diferente orientação de cada um desses ramos jurídicos e uma perspectiva de conciliação destas diferenças, às vezes

188 V. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal: Parte

General, 2ª ed., Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 195, e DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral, 2ª ed., Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2004,p. 109.

74 improvável, sobretudo à custa do direito penal de ultima ratio. Enquanto um dos primados centrais do direito penal é a elaboração de regras jurídicas precisas, o propósito dos instrumentos de direito internacional dos direitos humanos é sua invocação especialmente para justificar interpretações extensivas de crimes de modo a assegurar que “se um dano é reconhecido e remediado, ao longo do tempo, há a maior e progressiva realização do respeito pela dignidade humana e liberdade”190, uma forma de buscar fazer justiça longe do rigor da

norma e da ciência penal, ou de outra forma, justiça substantiva191.

Principalmente a partir de meados dos anos 1990, o direito penal internacional experimentou um grande impulso, tanto por meio da criação de instituições quanto pela articulação normativa, liderado principalmente pelos internacionalistas, com experiência e conhecimentos sobretudo na área dos direitos humanos e direito humanitário. Visto como uma realização dessas áreas, com o primeiro esboço prático da criação de um tribunal internacional de caráter permanente para a punição dos perpetradores das violências mais graves contra os direitos humanos, rapidamente esses especialistas passaram a adotar e a trabalhar conceitos do direito penal, mas a partir de uma base formativa prévia e consolidada: a proteção internacional dos direitos humanos contra as graves violações, ou, “por meio das lentes dos pressupostos normativos de seus originais domínios de expertise”192. As

consequências não foram pequenas, o que pode ser demonstrado pela facilidade de adaptação à norma internacional direitos já previstos em tratados de direitos humanos, como os direitos ao devido processo legal, já enunciados no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

190 Cf. DANNER e MARTINEZ. “Guilty associations: joint criminal enterprise, command of responsibility, and the development of international criminal law”, 93 California Law Review, 2005, p. 75 (trad. livre). 191 Buscando justificar a aplicação da justiça substantiva a despeito das formalidades jurídico-criminais: “Some

criminal defense lawyers from national systems may be scandalized at the ease with which the [international criminal law] judges have enlarged the definitions of crimes and the general principles of criminal responsibility. But this writer is not overly troubled by the point, because whether or not criminal behavior falls within the scope of international prosecution by the ‘ad hoc’ Tribunals is fundamentally a jurisdictional issue. Even if we suppose, for the sake of argument, and as many believed before the Tadić Jurisdiction Decision, there was no individual criminal liability at international law in internal armed conflict, the underlying acts of killing, torture and rape remained crimes under general principles of law. An offender can plead that the Tribunal is without jurisdiction, based on a certain interpretation of the subject matter provisions, but it cannot be argued that he or she did not know it was wrong”. SHABAS, William. “Interpreting the Statutes of the Ad Hoc Tribunals”, In: VOHRAH, L. C. (ed.). Man´s Inhumanity to Man: Essays on International Law in Honor of Antonio Cassese, 2003, p. 887.

192 ROBINSON, Darryl, no original: “through the lens of the normative assumptions from their native domains of expertise”. “The identity crisis of international criminal law”. Leiden Journal of International Law, 23, 2008, p. 928.

75 (1966), mas não em relação a princípios como a culpabilidade, proporcionalidade, legalidade em suas diversas dimensões193, temas mais identificados com a ciência penal pura.

Algumas modulações que ocorrem nesse momento formativo de uma nova área são necessárias, considerando a máxima incidência de um poder público, ainda que de direito internacional, na liberdade individual, isso porque, mais do que tratar os acusados como objetos de uma lição a ser aplicada, há que buscar tratá-los como meio de realização da justiça, aplicando-se diversas restrições principiológicas e garantindo o gozo de todos os direitos gerais dos acusados nos processos. A transposição das normas que determinam aos Estados que efetivem as punições por violações aos direitos humanos e ao direito humanitário para normas penais de aplicação direta deve ser visto com cuidados e ponderações. Para tanto, pode-se citar a norma do TPI, art. 28, a respeito da responsabilidade por comando dos superiores hierárquicos, já vertida em outros diplomas de direito penal internacional (Estatuto do TPII e do TPIR, arts. 7.3 e 6.3, respectivamente), veiculando um critério de culpabilidade no âmbito penal, mas cujas origens foram transplantadas do direito humanitário, conforme originalmente previsto nos arts. 86.2 e 87.3 do Protocolo Adicional I à Convenção de Genebra, de 1977194. Assim, uma integração artificial de uma norma do

direito humanitário para o direito penal internacional permitiu que o TPI considere crime, tanto a realização das condutas típicas de um crime contra a humanidade quanto o fato de o comandante não evitar que o crime ocorra e, ainda mais grave, falhar em punir sua ocorrência. O equívoco do diploma é tratar sob a mesma conduta típica ações completamente diferentes e que não dizem respeito, da mesma forma (evitar o crime e não punir sua

193 Certamente que a influência dos direitos humanos e direito humanitário não são apenas negativas, mas para uma abordagem crítica, que saia do lugar comum, esse tipo de colocação é relevante.

194 Conforme os artigos, reconhece-se a responsabilidade do comandante pela ação de seus subordinados, mas não se equipara a responsabilidade deles pela ação dos subordinados, nem se considera a responsabilidade penal como a única sanção. Art. 86.2: “O facto de uma infração às Convenções ou ao presente Protocolo ter sido cometida por um subordinado não isenta os seus superiores da sua responsabilidade penal ou disciplinar, consoante o caso, se sabiam ou possuíam informações que permitissem concluir, nas circunstâncias do momento, que aquele subordinado cometia ou ia cometer tal infracção e não haviam tomado todas as medidas praticamente possíveis dentro dos seus poderes para impedir ou reprimir essa infracção.” e art. 83.3: “As Altas Partes Contratantes e as Partes do conflito devem exigir que qualquer comandante, que tiver conhecimento de que subordinados seus ou outras pessoas sob a sua autoridade vão cometer ou cometeram uma infracção às Convenções ou ao presente Protocolo, tome as medidas necessárias para impedir tais violações às Convenções ou ao presente Protocolo e que, oportunamente, tome a iniciativa de uma ação disciplinar ou penal contra os autores das violações”.

76 execução) com o cometimento do crime. Ainda, o direito humanitário permitia a punição disciplinar das falhas dos comandantes – o que o direito penal internacional pune como o crime em si.

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