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Justiça de Transição e a Contenção da Perspectiva Punitivista

e) Líbano: Tribunal Especial para o Líbano ou “Tribunal Hariri”

2.6.3 Justiça de Transição e a Contenção da Perspectiva Punitivista

O modelo de justiça promovido pelas comissões de verdade tende a considerar que a reparação pode representar uma forma de sub-rogação, ainda que parcial, da pena, especialmente em relação aos fins da pena consistentes na prevenção e reintegração social por meio da restauração das relações sociais. ROBINSON336 defende que há casos nos quais

os trabalhos de uma comissão da verdade poderia representar uma alternativa à reponsabilidade penal internacional, com base nos arts. 17 e 53 do Estatuto do TPI, casos em que o procurador pode entender que houve investigação pelo Estado, ainda que não judicial, dentro da fórmula consagrada pelo Estatuto de que “tendo em consideração a gravidade do crime e os interesses das vítimas, não existirão337, contudo, razões substanciais

para crer que o inquérito não serve os interesses da justiça.” Há, no entanto, posições divergentes com relação isso, inclusive durante as discussões para a aprovação do Estatuto,

335 Em relação ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade, no Brasil, seus membros afirmam a importância histórica da revelação de suas investigações: “mesmo que adequadamente consagrada, a verdade não promove o resgate da memória social se não é revelada e compartilhada. Essa constatação – a de que mais de 80% dos brasileiros nasceram após o golpe de 1964 e que 40% (80 milhões) nasceram depois do final da ditadura, em 1985 – levou a CNV a dar especial atenção à efetivação do direito à memória, também uma de suas finalidades legais”. DALLARI, Pedro, et. al. “Verdade, memória e reconciliação”, Jornal Folha de S.Paulo, 10.12.2014, p. A3.

336ROBINSON, D. “Serving the interests of justice: Amnesties, Truth Commissions and the International Criminal Court”, European Journal of International Law, 2003, p. 493.

337 Art. 53, 1.c, do ETPI. Infelizmente a tradução oficial do Estatuto do TPI no site do Planalto fornece uma tradução equivocada da versão original do dispositivo, conforme segue: “Taking into account the gravity of the crime and the interests of victims, there are nonetheless substantial reasons to believe that an investigation would not serve the interests of justice”( grifo nosso). Nesse caso, a melhor tradução seria a que afirmasse que levando em consideração a gravidade do crime e os interesses da vida, houvesse razões substanciais (e não “não houvesse razões”) para crer que o inquérito não serve os interesses da justiça.

119 tendo-se optado por uma fórmula ambígua para a valoração caso a caso.

A redação do art. 17 estabelece que se o “caso for objeto de inquérito ou de procedimento criminal por parte de um Estado que tenha jurisdição sobre o mesmo”, o TPI decidirá pela sua não admissibilidade. A doutrina debate se a expressão “inquérito” abrange apenas aqueles procedimentos policiais e de controle judiciário ou se abrangeria investigações voltadas ao descobrimento da verdade e levadas a cabo dentro de certas condições, como seu caráter “quase-judicial”, independência do órgão, efetividade, necessidade, vocação de fazer justiça e não de oferecer impunidade, entre outros, consoante ROBINSON. HOLMES, no entanto, defende uma interpretação restritiva do dispositivo de somente referir-se a investigações criminais, matizada por AMBOS338, com base na

proibição à impunidade para crimes de extrema gravidade, quando somente poderiam se admitir exceções em casos de “emergência nacional extrema”. Ou seja, na dúvida entre uma interpretação mais ampla de admissibilidade do caso pelo TPI e outra mais restritiva, aplicar- se-ia o princípio da máxima efetividade da proteção dos direitos humanos339, ainda que

existentes mecanismos internos procurando discutir aspectos singulares do caso de acordo com os mecanismos de justiça de transição. Essa não nos parece ser a melhor solução, porque o país demonstraria que possui condições genuínas de investigar e processar o caso, ainda que em outros padrões. E o TPI não pode pretender que apenas o padrão ocidental de justiça seja o único entre as formas de as sociedades resolverem seus conflitos, nem que somente diante destes a jurisdição do TPI se afastaria para reconhecer a validade de um sistema de justiça não formal.

O outro lado da moeda, que afirma o direito ao castigo por parte das vítimas ou seus familiares é inspirado numa concepção neopunitivista, tendente a uma “punição infinita”340, configurando uma ameaça à concepção garantista do direito penal e em busca

338HOLMES, “The Principle of Complementarity”. In: LEE, R.S. (ed.), The ICC: the making of the Rome

Statute, 1999. AMBOS, K. Temas de derecho penal internacional y europeu, Madri: Marcial Pons, 2006, p. 30. A mesma posição restritiva é defendida por ONGs de direitos humanos, como a Human Rights Watch e a Anistia Internacional, com base na presunção favorável à investigação.

339 Adaptando-se o conceito de CANOTILHO, J.J., o princípio da máxima efetividade "é um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas, é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)”. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição, p. 227.

340 PASTOR, D. El poder penal internacional. Una aproximación jurídica crítica a los fundamentos del

120 da consolidação do que SILVA SÁNCHEZ chamou de princípio do “nullum crimen sine

poena”341. Essa tendência levaria, ainda, a um modelo para o sistema penal que desnaturaria

as garantias por meio de teorias como a imprescritibilidade ou a relativização do princípio do ne bis in idem. O cuidado, no fundo, que merecem essas ponderações é do uso exagerado do discurso punitivista diante dos crimes graves que desembocam no direito penal internacional e na proteção internacional dos direitos humanos, simultaneamente. A expansão, nesse sentido, deve contar com o freio constante que representa o direito penal mínimo, como critério que organiza o discurso penal, e ainda que se abra passo para punições exemplares pela justiça de transição ou pelas cortes penais internacionais, preservar o corpo jurídico da ciência penal para que a atribuição da pena não ocorra ao seu arrepio. Mas o fato é que algumas construções terão que ser reformuladas para que o escopo do direito penal internacional atinja seus objetivos, e uma delas é a de que o direito penal internacional não represente o avanço do discurso punitivista, mas a afirmação dos direitos humanos no plano internacional.

Embora a noção de punição domine o entendimento do que corresponde a justiça de transição342, remontando aos julgamentos simbólicos das Revoluções Inglesas e

Francesas, dos Reis Carlos I e Luís XVI, o grande dilema é calibrar o espelho que olha para o passado, refletindo no futuro a imagem de uma sociedade sã. A manipulação das instituições do direito penal e processual penal são extremamente importantes para os regimes de exceção, como vemos com a suspensão das garantias do pedido de habeas corpus por meio do Ato Institucional nº 5 (AI-5) em casos de crimes políticos, ou como as alterações sofridas pela teoria do bem jurídico a partir da Escola de Kiel343. Essa manipulação é natural

dentro de um regime que pretende se firmar, inclusive como garantidor e legitimador de suas instituições políticas e jurídicas. Por isso que a manipulação que o discurso de proteção dos direitos humanos deve ser cautelosa, criteriosa e valorosa das barreiras que lhes devem ser impostas, para não justificar um alto arbítrio em nome dos mais altos valores. E o arbítrio não deve ser cultivado pelo Estado de Direito nem para a máxima fortaleza dos direitos humanos, nem sua completa vulnerabilidade, mas consoante os critérios que se adotem para

341 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. “Nullum crimen sine poena? sobre las doctrinas penales de la “lucha contra la impunidad” y del “derecho de la víctima al castigo del autor”, Universidad Externado de Colombia, 2008, pp. 27 ss.

342 TEITEL, Ruti, Transitional Justice, p. 27.

343 FRAGOSO, Heleno Claudio. “Objeto do crime”, Direito Penal e Direitos Humanos, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1977.

121 a contenção do arbítrio. Assim, real e presente a frase de BECCARIA, de que “a crueldade dos tiranos é proporcional, não às suas forças, mas aos obstáculos que se lhes opõe”344.

É frequente que a nova ordem instaurada procure afirmar sua legitimidade e seu direito julgando os crimes da ordem política que a antecedeu. Os julgamentos dos Reis Carlos I e Luís XVI, assim como os julgamentos de Nuremberg, são referidos como atos políticos fundacionais, dizendo-se que “revolucionários devem se entender com o regime anterior: isso significa que eles devem encontrar algum processo ritualístico por meio do qual a ideologia que esses regimes defendem (...) possa ser publicamente repudiada”345.

Com relação ao julgamento do Rei Luís XVI, afirma-se que o “regicídio público é uma forma absolutamente decisiva de romper com os mitos do antigo regime, e é por essa única razão, o ato fundacional do novo”, nesse caso, de que o rei não estava acima da lei. Por outro lado, as investigações levadas a cabo pelo novo regime tendem a controlar o curso das investigações, justamente para jogar luz sobre fatos de interesse do passado político do país346.

O dilema dos processos de transição tem como traço comum a atribuição de responsabilidade individual pelos ilícitos sistematicamente perpetrados sob um regime repressivo. Entretanto, o resultado do processo investigativo e das audiências públicas propõe uma reflexão sobre o papel dos objetivos retributivos, que não necessariamente atribuem a culpabilidade ou determinam penas. Ao contrário, pela reconstrução dos fatos, fortalece-se a memória histórica e os discursos revelados, ao mesmo tempo que estigmatiza- se o fato mais do que as pessoas, a ação coletiva como fato reprovável, pelo contexto político e forma sistemática de perpetração. Conforme RICOUER347, deixa-se conduzir pela ideia da

reconstrução do sentido simbólico buscado pelas sociedades que recorrem à justiça de transição, pois que seu reverso, a fragmentação, seria a dispersão da memória e, nisso, o sentimento de culpa.

Notamos que muitas vezes recorre-se às instâncias internacionais pelo fato de não se encontrar no direito nacional a forma de ter as demandas pelas violações graves

344 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Cap. IV, sobre a interpretação das leis. 345 WALZER, Michael. Regicide and Revolution, p. 88 (trad. livre).

346 TEITEL, Ruti G. Transitional Justice, op. cit., p. 50 (trad. livre).

122 acolhida. Há casos nos quais os julgamentos dos responsáveis por violações são difíceis de serem julgados dentro da perspectiva do modelo de justiça comum348. A intensidade com

que o recurso às instâncias internacionais tem ocorrido, a criação de diversas instâncias com esse objetivo no plano regional ou internacional e, especialmente, o diálogo que se estabelece entre a esfera nacional e internacional, na expressão de CARVALHO349, “diálogo entre as

cortes”, marca o impulso a essa área jurídica do direito penal internacional.

2.7 O sistema latino-americano de proteção de direitos humanos e o direito

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