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1.3. Conformação de um direito penal comum

1.3.2. Consenso na política criminal

O direito penal globalizado será fundamentalmente orientado segundo as visões, políticas e interesses em vigor na Europa ocidental e Estados Unidos, fornecendo uma moldura a qual se encaixem todos os sistemas nacionais alinhados nessas tradições. Publicamente, refere-se a um atendimento ao clamor público, sendo um lugar-comum, uma prática unânime em torno à regulação de infrações em matérias como o terrorismo com reações firmes por parte dos governos, embora seja discutível que exista um tal consenso em relação a medidas ou instituições jurídico-penais101 em implantação. Exemplo dessa situação

é a Resolução nº 2178, de 24 setembro de 2014, adotada por unanimidade, pela Assembleia Geral das Nações Unidas para a adoção de medidas para conter o terrorismo, destinada principalmente ao controle de fronteiras, emissão de documentos de viagem e fortalecimento do intercâmbio de informações operacionais relativa à movimentação de terroristas ou de redes de terrorismo, além de ações de aprimoramento da cooperação internacional nessa área.

100 MORILLAS CUEVA, Lorenzo. “Reflexiones sobre el derecho penal del futuro”, Revista Electrónica de

Ciencia Penal y Criminología, 0406, 2002, p. 19-20.

101 CANCIO MELIÁ, Manuel, “Internacionalización del Derecho Penal...”, p. 230, segundo o autor: “en todo

caso, puede constatarse que la demanda indiscriminada de mayores y ‘más efectivas’ penas ya no es tabú político para nadie; en todo Occidente, y en agentes políticos de muy diversa orientación, el discurso que fía al Derecho penal un papel decisivo en la prevención fáctica del delito es ubicuo”.

47 A resolução recentemente aprovada, ainda, decide que todos os Estados devam assegurar que suas leis nacionais e regulamentos considerem como crimes graves a conduta de pessoa por participação de atos de terrorismo na forma de financiamento, planejamento, preparação ou perpetração, de forma tal que permita processá-la e condená-la102. Mais uma

vez outorga-se ao direito penal o papel de proteger as nações, a paz, a ordem mundial, os direitos humanos contra as ameaças mais graves que a desordem e a desregulação possam causar: “de imediato, o cidadão se acostuma diante do pano de fundo de determinados cenários [ações terroristas] à completa abolição de sua liberdade sem reconhecer o círculo vicioso: os Estados reagem frente ao injusto com um mega-injusto”103. Em defesa de um

reposicionamento da estratégia internacional contra-terrorista para que o problema não se torne pior, o presidente da Argentina104 ressaltou que acima de tudo, seria crítico assegurar

a aderência aos padrões de direitos humanos na luta contra o problema ao invés de reforçar o ciclo de violência e evitar “alimentar o monstro”.

A despeito de ações concertadas, o posicionamento no cenário internacional dos Estados Unidos ocorre de modo unilateral quando entendem que pela relevância do assunto eles devam sobrepor seu interesse à atuação nos termos da lei e do direito internacional. Pode-se incluir nessa referência os escândalos que se sucederam com a divulgação de informações de que o governo norte-americano possui uma prática extremamente viciada e ilegal de desrespeitar a privacidade de e-mails e comunicações telefônicas de diversas pessoas ao redor do mundo, como da presidente brasileira Dilma Rousseff e da chanceler alemã, Angela Merkel105. A função preventiva do uso do direito penal em perspectiva global

justifica que países como os Estados Unidos aprovem legislações específicas nem sempre respeitosas em relação às liberdades digitais fundamentais106, sob a justificativa de se fazer

um mal menor para se evitar um mal maior, criando regras fora do Estado para se combater

102 Item 6 da resolução, em tradução livre.

103 ALBRECHT, ZStW, 2005, p. 117, apud CANCIO MELIÁ, M., “Internacionalización del Derecho Penal (...)”, p. 230.

104 V. a cobertura da reunião do Conselho de Segurança, “Security Council Unanimously Adopts Resolution Condemning Violent Extremism, Underscoring Need to Prevent Travel, Support for Foreign Terrorist Fighters”, de 24 de setembro de 2014, disponível em http://www.un.org/press/en/2014/sc11580.doc.htm (Acesso 10.10.2014).

105 V. reportagem publicada pelo jornal inglês The Guardian, “Edward Snowden´s Surveillance Report Revelations”, disponível em http://www.theguardian.com/world/the-nsa-files, Acesso 27.7.2014, e também no jornal brasileiro Folha de S.Paulo, “Jornalista revelou escândalo de espionagem americana de uma varanda do Rio”, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/serafina/2014/07/1490619-jornalista-revelou-escandalo- de-espionagem-americana-de-uma-varanda-no-rio.shtml, Acesso 27.7.2014.

106 CUESTA, J.L.de la, “Retos y perspectivas...”, op. cit., p. 280, especificamente em relação ao Patriotic Act, lei norte-americana publicada como resposta aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.

48 as ações ilegais de outros agentes criminosos e aproveitando-se desse confronto para deixar que dar respaldo ao direito penal, que classicamente já possui regras dentro do direito para tratar comportamentos que violam as regras máximas de convivência social.

Consoante vimos, a primeira força a operar neste cenário é o da liberalização dos fluxos econômicos, a se notar especificamente em relação aos bens e pessoas, e quando os controles migratórios não são insuficientes para respaldar políticas internas de bem-estar social ou de alocação de mão-de-obra, aumentam os desafios criminológicos e de política- criminal, conforme alertado por DE LA CUESTA, devido acréscimo no número de refugiados, a extensão da exploração e tráfico de pessoas, o incremento do número de crimes de caráter racista ou xenófobo. Assim é que, segundo esse mesmo autor, essa relação da imigração com a percepção social da insegurança cidadã fica cada vez mais estreita – uma percepção fruto de preconceitos, estereótipos e uma leitura enviesada de estatísticas oficiais107. Constrói-se, a partir dessa relação deturpada, uma realidade virtual marcada por

uma ficção que atribui o problema ao elemento externo, abrindo mão de políticas de integração dos imigrantes, para reforçar o consenso social em torno de uma “sociedade punitiva”108. Há um cinismo aceito de que quando a economia progride, os imigrantes são

invisíveis, mesmo sendo necessários, e quando os indicadores econômicos dão mostras de piora, os mesmos imigrantes sobem no ranking dos problemas sociais, mesmo sem deixar de serem necessários.

Não se pode entender a globalização sem identificar a tensão entre essas forças antagônicas, liberação e regulação, mais liberdade e mais virtualização do medo, maior facilidade de transporte e aumento do controle migratório, fortalecimento da proteção dos direitos humanos para a construção de uma cidadania mundial e recurso à sociedade punitiva. Um Estado que cada vez mais perde poder diante dos desafios mundiais colocados pela globalização, paradoxalmente está também mais disposto a outorgar maiores poderes

107 CUESTA, J.L. de la. “Retos y perspectivas...”, p. 282; também no mesmo sentido, VIADA, Natacha,

Derecho penal y globalización, op. cit., p. 18, a requerer uma resposta adequada por parte do direito penal em nível internacional.

108 GARLAND, D., “As contradições da ‘sociedade punitiva’: o caso britânico”, Revista de Sociologia e

Política, 13, 1999, pp. 64 ss., crítico da criminologia como implementada no Reino Unido. Segundo o autor: “nesta linha, nos anos 80 e 90, governos frequentemente adotaram uma posição punitiva que visa a reafirmar a aptidão do Estado a ‘governar’ simplesmente pela exibição de seu poder de ‘punir’. Essa mudança anuncia um novo realismo da representação, mas assinala também o modo pelo qual a justiça criminal se desligou das ideologias de solidariedade” (trad. livre). No mesmo sentido, VIADA, Natacha, Derecho penal y globalización, Madri: Marcial Pons, p. 20.

49 para que outros organismos consigam cumprir as expectativas alocadas a ele109. Para

VIADA, o direito penal sofre de uma ética ambígua para se localizar nesse cenário, uma vez que atua dentro do discurso utilitarista, que busca garantir a lógica e liberdade de mercado, mas também humanista, ligado a proteção de bens comuns da humanidade. O primeiro justifica uma “guerra implacável contra o crime”, e o segundo busca a proteção dos direitos humanos. Do primeiro, decorrem as convenções internacionais contra os crimes transnacionais, do segundo surgem os tribunais internacionais ad hoc e o Tribunal Penal Internacional110. Será, assim, uma tensão constante entre a máxima liberdade e a máxima

repressão em que trafegará o direito penal na globalização.

Em resposta à liberalização propagada pela globalização, seguem-se iniciativas em busca de alguma ordem que ofereça uma alternativa ao discurso pragmático, às perspectivas preventivas do direito penal e à política criminal global. Em alguma medida, a intensificação dos esforços de construção de uma cultura penal compartilhada oferecerá essa resposta ao propor um sistema penal globalizado, por mais distante que isso esteja. Uma cultura penal, nas palavras de DE LA CUESTA, que não pode ser outra que não a dos direitos humanos, únicos valores universais que, apesar das diferenças e dos debates quanto ao seu peso e importância, todos dizem globalmente compartilhar111.

Em termos criminológicos, segundo o mesmo autor, a repressão e negação de direitos fundamentais não é a resposta adequada para a prevenção a largo prazo da criminalidade. Resultados associados à prevenção a largo prazo somente podem ser esperados diante de políticas racionais que identifiquem fatores individuais e sociais que promovam a criminalidade, sem cair na simplificação exaltada pela sociedade punitiva, mas que acima de tudo respeitem suas tradições históricas, jurídicas e culturais dentro do “compromisso integral pelos direitos humanos, a serviço da pessoa, da justiça social e da paz”112.

Em termos institucionais, cabe destacar a relevância dos protocolos de investigação judicial e penal, a intensificação da cooperação judiciária e extradição, mas

109 VIADA, Natacha, Derecho penal y globalización (…), op. cit., , p. 17. 110 VIADA, Natacha, Derecho penal y globalización (…), op. cit., p. 24. 111 CUESTA, J.L. de la, “Retos y perspectivas (...)”, op. cit., p. 283 ss. 112 CUESTA, J.L. de la, “Retos y perspectivas (…)”, op. cit., p. 284.

50 sobretudo da configuração da jurisdição penal universal e da Corte Penal Internacional e Tribunais ad hoc, ou, ainda de um movimento que desembocará finalmente num espaço penal europeu, com normas penais, processuais e controle judicial europeu comum (euro- ordem)113. Assim, a harmonização que se está a assistir no plano internacional em torno do

direito penal passa pela renovação experimentada na proteção internacional dos direitos humanos e consideração de que a violação em casos de crimes contra a humanidade atinge não o indivíduo, mas a humanidade inteira, instrumentalizando o sujeito que representa a vítima para além dela. Essa consideração ocorre a partir da jurisprudência do TPII, no caso

Erdemovic114, ao afirmar que “diferentemente do direito, o objeto do dano não é mais a

integridade física da vítima, mas a humanidade inteira. (...) esses crimes transcendem também o indivíduo, pois, ao ser atacada a pessoa, está sendo visada e negada a humanidade”.

A comunhão de valores universais, subscritos sob a rubrica dos direitos humanos ou de que o ataque produzido por uma ação é contra a humanidade, contém uma aspiração articulada de objetivos de uma sociedade. A vivência global desses objetivos é o que chamamos de consciência do mundo todo. Um bom exemplo desta consciência é a maneira como surgiram dezenas de comissões da verdade no mundo todo a partir da experiência na África do Sul. O reconhecimento da vivencia compartilhada de uma situação de supressão de direitos humanos e a forma alternativa como essa situação foi revista em diversos países motivou a criação de novas comissões, cada uma com seus escopos especiais, esperando-se que com isso as mesmas violações não voltassem a se repetir.

As perspectivas ensejadas ao direito pela globalização, em especial ao direito penal, contém tanto elementos positivos como negativo, como não poderia deixar de ser em relação a um movimento dialético, mas necessariamente aberto, imperfeito e incontrolável. Quanto aos negativos, FERRAJOLI aponta o reconhecimento da incapacidade do direito penal em fazer frente às causas estruturais da criminalidade, executando um programa dirigido a secundar, ou ainda pior, alimentar os medos e tendências repressivas da

113 ARROYO ZAPATERO, Luís. “A harmonização internacional do direito penal...”, op. cit., p. 74. V. igualmente BASSIOUNI, M. Cherif. “International Criminal Justice in the Age of Globalization”, op. cit., pp. 79-81.

114 TPII, Caso Edermovic, decisão de 26.11.1996 (IT-96-22-T), § 20: “As opposed to ordinary law, the

51 sociedade115. Quanto aos positivos, DELMAS-MARTY aponta para as oportunidades

afiançadas às chamadas capacidades criativas do direito. A autora pondera que há que se fazer um esforço não para se opor à globalização de forma dogmática, mas de, tomando por base as circunstâncias, buscar a criação de respostas, num processo de inovação do direito116.

Essa resposta estaria na busca de uma ordem plural, em contraposição a uma ordem única hegemônica, mas de alguma forma expressado, posto, concertado, para que não configure uma desordem invencível. A capacidade criativa do direito remonta, assim, a uma técnica, a soluções que ainda não estão postas, mas que o sistema jurídico vigente dá conta de fornecer, claramente orientado pela solução que seja legítima e conforme os padrões universais de respeito aos direitos humanos e à ordem internacional baseada neles.

O direito penal capta os desenvolvimentos da sociedade moderna, conectada globalmente, dentro de marcos jurídicos concretos, por meio da “sensação de cidadania do mundo”, como em casos extremos diante de genocídios como na Iugoslávia e em Ruanda, o pedido de extradição envolvendo o general chileno Pinochet por crimes perpetrados pelo seu governo durante a ditatura chilena, ou as ilegalidades associadas à guerra do Iraque117, com

suas três consequências de maior relevo: o conceito de guerra de agressão118, o uso da base

militar como prisão, em Guantánamo119 e as prisões secretas e tortura, sendo a mais famosa

a de Abu Ghraib. Esse movimento se reflete de forma muito clara na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos - CorteIDH pela condenação de países que aprovaram leis de anistia aos seus ditadores, determinando-se sua revogação, como decidido no caso

Barrios Altos c. Peru, de 14.03.2011, ou os mandados de criminalização120 para que os países

em que os atos considerados pela CorteIDH como criminosos condenem o fato com base no direito nacional ou também as obrigações positivas de natureza penal emanadas das decisões

115 VIADA, Natacha, Derecho penal y globalización (...); op. cit., p. 22.

116 DELMAS-MARTY, Mireille. “Lo relativo y lo univeral – Études juridiques comparatives et internationalisation du droit”, op. cit.

117 ARROYO ZAPATERO, Luíz, “A harmonização internacional do Direito Penal: ideias e processos”, op. cit., pp. 71-72.

118 BROTÓNS, Antonio Remiro. Agresión, crimen de agresión, crimen sin castigo, Documentos 10, Friede.org, Madri, 2005.

119AVELAR, Idelber. “Desconstruindo o ‘humano’ em ‘direitos humanos’: Vida nua na era da guerra sem fim”, Revista Estudos Políticos, julho/2011 (disponível em http://revistaestudospoliticos.com/desconstruindo- o-%E2%80%98humano%E2%80%99-em-%E2%80%98direitos-humanos%E2%80%99-vida-nua-na-era-da- guerra-sem-fim/, Acesso 05.08.2014).

120 RAMOS, André de Carvalho. “Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos: novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos”, RIBCCRIM 62, 2006.

52 da CorteIDH121. Ao colocar os países no banco dos réus por violações de direitos humanos,

consagra-se uma nova tendência de obrigação dos Estados em reparar as violações, indenizar as vítimas e rever normas que estão em desarmonia com o sistema de proteção dos direitos humanos.

O discurso de direitos humanos se converte em um campo de consenso de prática e de política, inclusive para uso do aparato penal diretamente pelos Estados, ou penalizante, por meio de mandamentos de criminalização, conforme decisões da CorteIDH, ainda que para tanto haja que se recorrer às capacidades criativas do direito e equacionar as diferenças e ambiguidades da prática de direitos humanos, conforme veremos no subcapítulo seguinte.

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