• Nenhum resultado encontrado

Conflito na consolidação do direito penal internacional

e) Líbano: Tribunal Especial para o Líbano ou “Tribunal Hariri”

3.1. Crimes Internacionais vs Crimes de Direito Internacional

3.1.3 Conflito na consolidação do direito penal internacional

O fato de se buscar a integração em uma área nova de elementos do direito internacional humanitário e dos direitos humanos, instrumentalizados para aperfeiçoar no plano internacional a atribuição de responsabilidade penal, sem dúvida, apresenta dificuldades. Ao mesmo tempo em que o direito penal e o direito internacional se unem para criar condições de punição para os crimes que de forma mais grave e intolerável atingem a comunidade internacional, numa relação de subsidiariedade ou apoio mútuos, existe por outro lado, a dificuldade no que diz com dogmáticas e princípios fundamentais conflitantes. O direito penal internacional pretende a punição dos autores de crimes ao mesmo tempo que busca garantir seus direitos contra acusações e punições arbitrárias, correspondendo a uma de suas principais exigências a de que os tipos sejam tão precisos, claros e detalhados quanto possível. Resulta disso que qualquer pessoa tem o direito a saber se sua conduta, ex ante, é criminalmente proibida ou permitida. E, em outra medida, de maneira complementar, que ninguém será punido por uma conduta que não seja considerada criminosa no momento em que ela foi praticada.

A questão que se coloca é se o direito penal internacional estaria jungido à obediência de uma estrita legalidade ampla e flexível, compatível com as fontes do direito costumeiro, próprias do direito internacional público. Isso porque o Estatuto do TPI traz, no art. 38, como base normativa do direito penal internacional aplicado pelo TPI tanto as normas escritas como as não escritas385. E isso traz um descompasso evidente entre o valor

da norma para o direito penal e para o direito internacional público: para o direito penal, o efeito repressivo da norma supera seu efeito normativo ou declaratório, por atribuir poder punitivo a um ente determinado para o exercício do poder de atribuição de responsabilidade

385 BASSIOUNI, M. Cherif. Introduction to the ICC Law, op. cit., 2003, p. 2-4; AMBOS, A parte geral do

DPI. Bases para uma elaboração dogmática, op. cit., 2006, p. 35; WERLE, G. Tratado de derecho penal internacional, op. cit., 2005.

138 e consequências no campo penal. Para o direito internacional, o poder normativo é mais importante do que sua função repressiva386. No direito internacional clássico, criado para

resolver conflitos entre Estados soberanos, o processo legislativo é fluido e gradual, construído por regras frequentemente soltas, por meio dos costumes ou até mesmo das “soft

laws”, entendidas como padrões ou orientações desprovidas de força vinculante. O poder da norma escrita, assim, não decorre do conteúdo do que ela prescreve, mas do que ela consegue, a partir da construção de consenso entre os Estados, alinhar e organizar comportamentos. Resulta disso certa desconfiança e desconforto em aceitar que normas de conteúdo punitivo não cumpram com os requisitos da máxima legalidade.

De toda forma, o direito penal internacional não se forma e não se executa como os poderes do Estado nacional, sendo bastante razoável que ele seja aplicado, construído e compreendido de forma distinta. Basta considerarmos que não há um poder legislativo mundial que legitime a criação de suas normas, que inexiste um poder judiciário universal que funcione com um orçamento aprovado e financiado por tributos de seu próprio Estado- Nação para cumprir suas próprias leis, que não possui uma polícia com poder e a atribuição de proteger a segurança mundial e garantir a proteção dos valores da paz, segurança e bem- estar da comunidade internacional. Além disso, as instituições nacionais gozam de estabilidade, estrutura e pessoal dedicado a cumprir seu papel nas áreas da justiça criminal, inclusive na obtenção dos efeitos preventivos do crime. Contrariamente, a jurisdição criminal internacional não possui instituições com poderes semelhantes, de maneira estável e cujo império seja capaz de exercer um poder dissuasório para os crimes de sua competência, restando ao sistema a realização das funções retributivas e, nas palavras de BASSIOUNI, justo merecimento, onde o objetivo de reabilitação e integração social é remoto387, muito embora possa fazer uso de forma eficiente das técnicas relacionadas à

justiça de transição, conforme abordamos no capítulo 2. Ou seja, funciona nos dois limites do espectro de funções da pena: reconciliação (por meio da justiça de transição) e puro retributivismo (por meio da execução das penas de prisão do direito penal internacional)388.

386 Conforme arguta observação de CASSESE, Antonio. International Criminal Law, op. cit., p. 8.

387 Conforme BASSIOUNI, M. Cherif. “International Criminal Justice in the Age of Globalization”, op. cit., p. 88 (trad. livre).

388 Os efeitos preventivos das normas de direito penal internacional serão abordados no capítulo 4º, ao tratarmos da crítica aos institutos e funcionamento da área em relação à realização dos direitos humanos.

139 O sistema de justiça criminal internacional não será aperfeiçoado como resultado de uma ação plenamente concertada, planejada e estruturada, construído de uma forma não ordenada, sujeita a eventos fortuitos, exigências práticas a incrementar os objetivos que se quer atingir, aliado à necessidade de se fortalecer a prática de cooperação interestatal, em direção a uma harmonização de prática e uniformização de normas e procedimentos. Ainda assim, BASSIOUNI entende que os dois sistemas, nacional e internacional, baseiam-se nas mesmas fundações filosóficas. MONTIEL, entretanto, entende que para se aplicar ao direito penal internacional um sistema ampliado de fontes em relação ao direito penal clássico, um sistema que aceita a validade de normas não escritas e incertas, a despeito da inderrogabilidade do princípio da legalidade, seria necessário renunciar à irrenunciável ideia de que o poder punitivido deve necessariamente possuir limites e que a justiça não apenas pode se restringir a uma dupla missão: a punição infinita e a impunidade zero389.

Ainda assim, CASSESE aponta dois eixos de grande mudança dentro do próprio direito penal internacional, reconhecendo a elevada velocidade com que seus contornos têm sido ampliados ao mesmo tempo que suas garantias fortalecidas. Segundo o renomado autor francês, recorrentes atrocidades continuam a vicejar no mundo atual, com a difícil contenção dos fatos pela força que não seja a militar. Entretanto, o que era um emaranhado pouco consistente de regras jurídicas começa a ganhar corpo com razoável coerência e, se no passado buscava a realização da justiça substantiva, atualmente ganha força a tendência de fundamentar a punição no princípio da estrita legalidade. Felizmente é uma tendência que vai de encontro a um dos princípios essenciais do moderno direito penal, de controle do poder arbitrário do Estado e proteção do cidadão que somente poderão ser condenados por fatos considerados crime após estes serem considerados crimes por meio de normas vinculantes.

389 MONTIEL, Juan Pablo. “La ‘mala costumbre’ de vulnerar derechos humanos: análisis y pronóstico de la costumbre como fuente del dpi”. In: MONTIEL, Juan Pablo. La crisis del principio de legalidad en el nuevo derecho penal: ¿decadencia o evolución?, Madri: Marcial Pons, 2012, p. 400.

140

3.2 O direito penal internacional e suas fontes

Outline

Documentos relacionados