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Aspectos Gerais do Bem Jurídico em DP

d) Jurisdição Universal

3.5.1 Aspectos Gerais do Bem Jurídico em DP

O direito penal internacional volta-se à apuração de responsabilidades atinentes às condutas ilícitas praticadas por indivíduos, com repercussão na esfera internacional. Os crimes objeto de sua abrangência não são aqueles praticados por Estados, como no direito internacional público clássico, mas atribuíveis a indivíduos e que atinja “a paz, a segurança e o bem estar da humanidade”, conforme o preâmbulo do Estatuto do TPI, § 3º514. WERLE afirma que o ataque a estes bens dá a dimensão internacional e converte o

fato em um crime de direito internacional515, ao afetar a “comunidade internacional em seu

conjunto”, nos mesmos termos do preâmbulo, §§ 4º e 9º, e art. 51 do Estatuto do TPI.

Concondamos com GIL GIL, para quem a definição do direito penal internacional passa pela análise de sua função, que como em direito penal interno, é à proteção de bens jurídicos vitais, mais importantes da sociedade internacional, frente a formas mais graves de agressão, mantendo-se, portanto, seu caráter fragmentário, subsidiário e de ultima ratio, ou seja, não visa a proteção de toda a ordem jurídica internacional, mas apenas de seu núcleo essencial. Nessa seara, não faz parte do objeto de estudo em questão temas de direito penal interno, aplicado extraterritorialmente, sobretudo porque a projeção internacional do direito interno retira a essência do direito penal internacional: a construção de uma ordem nova (supranacional), em torno a um bem novo (paz internacional e dignidade humana, em inter-relação), com instrumentos jurídicos novos (resoluções ou tratados constitutivos de tribunais internacionais) em exercício de um poder novo (jurisdição

514 Sobre o valor jurídico do preâmbulo, remetemos à discussão no âmbito do direito constitucional, dentro da teoria do bloco de constitucionalidade, fortalecida a partir da decisão sobre a liberdade de associação do Conselho Constitucional Francês em 16 de julho de 1971. A este respeito, Louis FAVOREAU e Loïc PHILIP consideraram a consagração do valor jurídico do preâmbulo, alargando a noção de conformidade à Constituição, aplicando os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis. FAVOREAU, Louis; PHILIP, Loïc. Le Conseil Constitutionnel, Paris: PUF, 1985, p. 4. Em direito internacional, por outro lado, nos termos do art. 31 da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, para os fins de interpretação de um tratado, faz parte da regra de interpretação a referência ao contexto, que “ compreenderá, além do texto, seu preâmbulo e anexos” (promulgada pelo Decreto n.º 7.030, de 14 de dezembro de 2009).

182 internacional). PELLA considera a paz internacional como o bem jurídico supremo contra o qual atenta direta ou indiretamente os crimes contra a paz, os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra, considerando esta infração como “uma ação ou omissão internacionalmente perigosa que tenha contribuído à preparação ou execução de uma guerra proibida ou a violação das leis e costumes de guerra, ou a criação de situações capazes de perturbar as relações pacíficas entre os Estados, ou uma política nacional que ofenda a universalidade do sentimento humano”516.

Consoante a doutrina moderna, a teoria do bem jurídico vem sendo construída levando em conta os princípios da lesividade e da intervenção mínima para a precisa conformação do Estado Democrático de Direito. A evolução da teoria, no entanto, tem sofrido abalos em função da presença cada vez mais comum de crimes nos quais o bem jurídico ou é de difícil apreensão ou é inexistente. A acomodação desta reorientação em relação à captação do bem jurídico é o desafio à teoria que dá substrato ao direito penal internacional. Essa preocupação encontra-se intimamente ligada em se saber quando, quanto e como usamos o Direito Penal no plano internacional.

A problemática incidente nesta discussão passa mais uma vez pela informalidade típica da norma costumeira, embora não se possa dizer que ela é desconhecida ou que conflite com outras normas internacionais se tomamos como bem jurídico tutelado a existência de sociedades que compõem a humanidade. Assim, tanto a abstração própria do bem jurídico tutelado quanto as características de afirmação da norma costumeira fragilizam sua conformação teórica. Por outro lado, o conteúdo histórico do bem jurídico também permite que novas formas de violação sejam acrescidas em virtude das transformações sociais e históricas da sociedade mundial, podendo chegar ao que TRIFFTERER517 sugeriu de normas

obrigatórias regionalmente consideradas que aderissem a ela. Neste ponto, assumir-se-ia a relatividade dos bens jurídicos em questão, o que não parece ser a melhor orientação para a proteção dos valores subjacentes à proteção contra os crimes contra a humanidade, ou bens jurídicos totais.

516 PELLA, Vespasian.La Guerre-Crime et les Criminels de Guerre, Paris, 1946, p. 49.

517 TRIFFTERER, O. “Völkerstrafrecht im Wandel?”, in Fertschrift für Hans-Heinrich Jescheck zum 70

183 Assim, o conceito, tal como originalmente concebido por BIRNBAUM vem sofrendo paulatinos ajustes, ponderações, aclimatações e não poderia sair ileso da prova de fogo para servir como base, denominador comum, para todos os crimes existentes ao longo dos séculos. O bem jurídico seria o núcleo a partir do qual todo o sistema penal ter-se-ia erigido, como uma construção dogmática capaz de exercer uma função crítica limitadora do direito de punir do Estado ao mesmo tempo em que funciona como um referencial material do delito.

O desencantamento com a teoria do bem jurídico, entretanto, decorre muito mais da incapacidade do exercício da função limitadora do que da falta de identificação referencial material do delito, visto a avalanche de novos tipos e novos bens jurídicos penais, novas acomodações que a teoria faz para se manter como elemento chave na apreensão do fenômeno punitivo da sociedade. A nova categoria de criminalidade, internacional, que afronta os limites da soberania (macrocriminalidade), passa a exigir uma nova lógica e, portanto, nova acomodação da teoria do bem jurídico penal, desta vez sob a ótica de um bem jurídico novo: não individual, não social, não difuso518, mas um pouco de todos e de uma

nova categoria, universal. Entretanto, essa função crítica, abordada por STERNBERG- LIEBEN519, não pode ser prescindida pelo direito penal sob pena de se tornar completamente

vulnerável ao arbítrio autoritário, sem o mínimo valorativo do injusto, que permite a confrontação da dogmática com a valorativa.

Ao adentrarmos na área do direito penal internacional, deixa-se de estar sob o monopólio da legislação e da jurisdição dos Estados, especialmente pela aceitação da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, a adaptação de legislações internas ao seu Estatuto, como no caso de Portugal pela Lei 31/2004, a tipificação dos crimes de violação do direito internacional dos direitos humanos e também do Brasil, por meio do Decreto nº 4.388/2002 e do Projeto de Lei nº 4038/2008, em tramitação no Congresso Brasileiro.

518 Nesse sentido, v. SILVEIRA, Renato M. J.: “Na realidade, parece claro que enquanto os bens jurídicos individuais e coletivos satisfaziam-se com uma proteção bastante atinente ao eventual efeito danoso, tendo por exceção o perigo potencial de dano, no que se refere aos bens difusos ou supra-individuais isso não se verifica. Meio ambiente, Direito Econômico ou do Consumidor, por exemplo, guardam peculiaridades próprias (2003, p. 14).

519 STERNBERG-LIEBEN, Detlev. “Bien jurídico, proporcionalidad y libertad del legislador penal”. In: Hefendehl, Roland. La teoria del bien jurídico: ¿Fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons,2007

184 Em vista das próprias características das fontes de direito penal internacional serem imprecisas, parece inevitável que essas qualidades sejam transportadas ao bem jurídico de seus crimes, numa contaminação cruzada que debilita num sentido a capacidade da teoria do bem jurídico de indicar os limites para a criminalização pelo direito penal internacional, e de outro, autorizar equivocadamente a criminalização de violações de direitos humanos em geral.

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