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A LÓGICA DA “CHAPADA”

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 151-156)

Contrariando o que afi rmam as narrativas mestras acerca do vazio das “chapadas” (Figura 5.5) (Moraes, 2000), essas áreas sempre foram incorpo- radas ao cálculo econômico das famílias camponesas. Isso se dá quer pelo extrativismo de madeira, para construções e fabrico de móveis, de frutos e plantas, para alimentação humana e animal, de ervas terapêuticas, quer pela caça, criação do gado e caprinos “na solta” e até mesmo por alguma agricultura de sequeiro – pequenas roças de mandioca e feijão – praticada nos “tabuleiros” ou no “ourelo do baixão” (transição entre o “baixão” e a “chapada”).

O que pode, a princípio, induzir observadores incautos em erro é o fato de as próprias populações camponesas dizerem que a “chapada” não tem utilidade no sistema agrícola tradicional. No entanto, à medida que se aprofunda o conhecimento sobre formas de trabalho e modo de vida, delineia-se um conjunto de atividades desenvolvidas por essas populações, nas “chapadas”, indicativas da importância desse ecossistema na sua repro- dução social, no ambiente dos cerrados, tornando-se claro que o sentido da falta de utilidade referida diz respeito apenas ao cultivo agrícola strictu

Não se deve, então, imputar a essas populações uma visão reducionista da própria reprodução social, tentando restringir o uso da “chapada”, no sis- tema camponês, apenas ao cultivo agrícola. Essa é uma interpretação típica das narrativas mestras (Moraes, 2000) desmentida pelas práticas camponesas reais e por seus conhecimentos e falas, apreendidos pela pesquisa. Com isso, desmonta-se o contrabando ideológico das narrativas mestras sobre as chapadas como “zonas vazias” (sem usuários), supostamente confi rmadas pela idéia de que seriam zonas sem usos, portanto possíveis de ocupação pelo agronegócio.

De fato, os solos da “chapada”, nos cerrados, só se tornaram propícios à prática da agricultura moderna com as tecnologias geradas pela chamada Revolução Verde (Moraes, 2000), nos anos 70.25 Esse terreno tampouco era

tido pelos(as) camponeses(as) como lugar de cultivo agrícola, mas o sistema de reprodução desses povos agroextrativistas, tomado em sentido mais am- plo, supõe uma articulação essencial entre “baixões” e “chapadas”. Assim, se o “baixão” signifi ca territorialidade, topofi lia (Tuan, 1983), delimitação da parentela, da vizinhança, a “chapada” é o mundo a perder de vista, a terra de ninguém e, por conseguinte, de todos – com funções nem por isso

25 No Piauí, isto só viria a se concretizar na segunda metade da década de 1980 (MORAES,

2000).

Figura 5.5. Paisagem de incorporação das chapadas (cultivo de soja) por grandes projetos do complexo carnes–grãos.

menos básicas para essa economia e esse modo de vida. Aliás, no sistema antigo, a ”chapada” era um espaço de uso comum da “terra voluntária” (Moraes, 1999, 2000), sem cercamento.

Criatório, antigamente, era solto no mato, aí. Não tinha negócio de cercar, não. Eles [o gado] comiam na serra; no inverno, desciam para o baixão, bebiam e fi cavam na solta mesmo. Mesmo no verão, na serra tem sempre um lugar que fi ca mais frio e eles procuram. Nunca [o gado] foi [criado] eternamente cá no baixão, junto da aguada. Sempre ia procurar [comida] pra fora (...). Naquele tempo antigo, não tinha negócio de plantar capim. Era solto o gado, não tinha trabalho com criatório, não. Hoje em dia é que a gente tá tendo. Tinha muita terra e pasto à vontade. Hoje, [o gado] tem que ser preso: plantar o pasto, fazer a cerca primeiro, pra criar o gado preso dentro, na chapada ou no baixão. (F. S. L., camponês de Bananeira, Uruçuí, PI)

Essa mesma “chapada” é, também, uma terra misteriosa, com um imagi- nário rico e cheio de simbolismo, como referido na obra de João Guimarães Rosa, por exemplo. Nas narrativas de habitantes dos cerrados piauienses circula uma versão da “luz do campo”, ou “fogo do campo” (Moraes, 2000), sobre uma “bola de fogo” que aparece à noite, tida como a alma de falecidos donos de fortunas enterradas em locais inconfessados. Como essas histórias de fortunas enterradas em cumbucas são comuns no mundo rural brasileiro, vale a pena transcrever a fala de um ex-empregado de um grande projeto que afi rma ter visto a “luz do campo”, quando trabalhava à noite, na “chapada”:

A luz do campo: o pessoal comenta que diz que foi esse pessoal dos antigos que enterraram dinheiro nas chapadas, porque naquele tempo não tinha banco, né? Então eles enterravam, botavam numa cumbuquinha de cuia, aí enterravam. Aí, quando ia procurar o dinheiro, que chegava lá, não encontrava mais. Aí, depois, começou essa história aqui dessa luz do campo, começada disso. Ela é redonda, tipo um farol de carro. Só aparece à noite. Já vi. Eu tava trabalhando no campo, na época, num projeto, Projeto Merola, de frente à Saponga, plantando caju. Era uns quatro tratoristas, traba- lhando à noite. Aí, apareceu! Nós fi camos preocupados: de onde é essa luz? Aqui não vem carro aqui! Não era carro, porque lá nem estrada tinha! A luz saiu foi do mato! Aí, com pouco, a luz desapareceu. No dia seguinte eu falei pra o patrão: de noite, não trabalho mais! Todos quatro vimos. E já ouvimos falar dela na Fazenda Mafi sa, na Serra Branca, onde hoje é o Projeto Cotrirosa e em vários projetos! Motoristas de ônibus também diz que já viram ela. De longe, pensavam que era carro. Quando chegava perto, não era... Desaparecia! (G. S. B., trabalhador rural de Uruçuí, PI)

Na fala, destacam-se o relato factual de um fenômeno e a interpretação dele como indício da existência de dinheiro enterrado por antigos. Quanto ao primeiro ponto, esse tipo de visão é muito comum, e a “luz do campo” tem toda a aparência do fogo-fátuo, da “fata morgana”, da “bola de fogo” (na Amazônia) e de discos voadores (vistos por hippies no litoral baiano).26

26 “O fogo-fátuo é uma infl amação espontânea de gases emanados de sepulturas e de pântanos”

Quanto ao segundo, a associação a fortunas acumuladas em segredo e escondidas em locais ermos aponta para idéias como a marca da presença humana antiga assinalando, ao mesmo tempo, que esses locais são, de certa maneira, ermos e fi ns de mundo, com um matiz sobrenatural. Hoje, essas notas sobrenaturais de certa forma perseguem os peões noturnos ocupa- dos nas tarefas de incorporação das “chapadas’ pelos grandes projetos de modernização agrícola – como a lembrar que não são lugares vazios, mas cheios de mistério. Além disso, recordam, ainda, que acumular dinheiro – em vez de usar a riqueza para provisionar a vida – produz castigos per- manentes, ilustrados pelo possível destino das almas dos antigos – “almas penadas” – que, em vida, enriqueciam e não queriam partilhar a riqueza e a escondiam em cumbucas por eles nunca reencontradas. Aponta, pois, tais assombramentos, para punições morais ao mundo dos vivos, sob a forma de interditos do além.

Esse relato e sua interpretação, nos termos do imaginário rural, sugerem hipóteses como a de reação de trabalhadores agrícolas às condições de trabalho nos grandes projetos, incluindo-se o noturno, a cuja rotina não estavam habituados, e à própria incorporação das “chapadas”, que aparecem aqui como locais há muito tempo ocupados por donos simbolizados, cujas almas parecem acompanhar as fortunas enterradas.27

Essa “chapada” misteriosa oferece à economia camponesa dos cerrados uma pastagem natural constituída pelo capim “agresto” (Trachypogon sp.), que alimenta o gado no inverno e em boa parte do verão, e a “faveira” (Par-

quia platicefala), uma especifi cidade dos cerrados piauienses não encontrada

nos cerrados do Brasil central. O capim “agresto” recebe um manejo anual à base de queimadas:

O uso do capim agresto depende das época. A maioria, o pasto sai nas primeiras águas e fi ca até junho, julho. Algumas partes. Outras partes, já sendo agresto de dois anos, sem queimar, já no mês de junho, a gente taca fogo pra não criar cobra dentro daquele agresto... A gente não deixa muito por causa de não criar cobra pra morder os bicho [gado], evita os inseto se ajuntar e aí cria o pasto pro gado (...). A época de verão, de junho em diante, a gente usa queimar o mato para sair a babuja [folhagem] nova, num sabe?, pro gado se refrigerar. Aí, a gente começa em junho, julho, esse período, fazer queimada, pra fazer babuja pro gado. Aí, quando parte de agosto em diante, só toca fogo mesmo pra, de início de primeiras água, sair o pasto pro gado comer, porque, aí, não sai mais babuja nenhuma. Só faz queimar mesmo pra limpar, pra criar pasto novo. A maioria das queimadas a gente faz nesse tempo, mas não pra esperar pasto [imediato, ou seja, a babuja]. Pra esperar pasto [imediato] é de junho pra julho. Sempre não falta. Quando não tem pasto seco, tem o verde. As queimadas, a gente faz cedo, enquanto o terreno tá fresco [resto de umidade do inverno]... e tem o brejo que não seca muito... aí o gado desce. Eles vêm por conta 27 Essa interpretação é similar à que Taussig (1980) dá a certas crenças (pactos com o diabo,

por exemplo) como protestos contra o capitalismo, feitos em uma linguagem fetichista, pré-capitalista.

própria, pro brejo que não seca. Desce pro brejo, sobe pra chapada, pra comer a fl or do pequi, a fava-danta. (G. P. S., camponês de Sangue, Uruçuí, PI)

Na utilização do fogo para formação do pasto nas “chapadas” as árvores maiores são atingidas e, em parte, como dizem, “sapecam, mas brotam de novo”. Para evitar danos maiores à vegetação da “chapada”, fazem-se “aceiros” (faixas capinadas) em volta da área a ser queimada, para que o fogo não se espalhe.

Esse povo do cerrado utiliza-se, ainda, de uma enorme variedade de outras espécies vegetais encontráveis nos “baixões” e nas “chapadas”. Algumas são alimentares, como a cagaita (Eugenia dysenterica), a mangaba (Hancornia speciosa), a guabiroba (Campomanesia sp.), o pequi (Cariocar co-

riaceum), o bacuri (Platonia insignis) e o cajuí (Anacardium sp. – caju pequeno,

típico do cerrado). Outras são terapêuticas, como o angico (Anademanthera

macrocarpa), a catinga-de-porco ou pau-de-rato (Caesalpina pyramidalis), o

barbatimão (Stryphdendron coriaceum), a fava-d’anta28 (Dimorphandra gard-

neriana) e a pustemeira.29

Há, também, espécies fornecedoras de madeiras, como a massarandu- ba (Manilkara sp.), a sucupira (Bowdiochia virgilioides), a aroeira (Astronium

urundeuva), o pau d’arco amarelo (Tebebuia serralifolia), o pau d’arco roxo

(Tebebuia avellanedae), o angico (Anademanthera macrocarpa), a candeia (Pla-

thymenia reticulata), o jatobá (Himenaea sp.) e a caraíba (Tebebuia cariba). Al-

gumas delas se utilizam para outras fi nalidades, como a sambaíba (Curatella americana) ou “lixeira”, cujas folhas possuem grande concentração sílica e são usadas como buchas para lavar utensílios domésticos, o pau-de-terra (Qualea grandifl ora), que serve para lenha, o barbatimão, também usado para curtição de peles, e o tingui (Magonia glabrata), que tem serventia para a fabricação caseira de sabão.

Entres as espécies animais, há algumas de carne bastante apreciadas, como o tatu-bola (Tolypeutes tricinctus), o tatu-peba (Dasypus sp.) e o tatu- galinha ou verdadeiro (Dasypus novemcinctus), a ema (Rhea americana), a seriema (Cariama cristata), a perdiz (Rhynchatus rufenscens), a cutia (Dasyprocta

agouti), veados (Ozoteceros sp., Mazama sp. e Mazama gouazoubira), a paca

(Cuniculus paca) e a preá (Cavea operea).30

28 A fava d’anta é utilizada pela indústria farmacêutica na produção de medicamentos, sendo

recolhida pelas populações dos cerrados que a vendem a intermediários que negociam com os laboratórios, como o Merck, um dos compradores desta planta nos cerrados piauienses e maranhenses, no âmbito da farsa do manejo fl orestal sustentado (ANDRADE, 1995a, 1996).

29 A classifi cação científi ca da “pustemeira” – nome local de uma planta utilizada terapeutica-

mente para ferimentos – não foi localizada nem nas obras consultadas nem com biólogos e agrônomos com algum conhecimento da região.

30 Sobre as fontes da nomenclatura científi ca utilizada, ver Moraes (2000). A propósito, re-

gistro a colaboração de José Herculano de Carvalho, pesquisador do Centro de Pesquisa Agropecuária Meio Norte da Embrapa.

A “chapada” não é, pois, um espaço inútil ou desvalorizado pelos cam- poneses e camponesas, como pode parecer à primeira vista. De fato, essas populações desenvolvem entre “baixões” e “chapadas” suas estratégias de reprodução social, mas as limitações impostas à operacionalização do seu conhecimento tradicional baseado na existência de terras livres e abundan- tes, trazidas pela incorporação das “chapadas” pela moderna agricultura de grãos, induzem-nas a buscar novas soluções, com base no que Suarez et al. (1983) denominam processo cognitivo dinâmico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: “CRISE ECOLÓGICA”

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 151-156)