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RECONVERSÕES IDENTITÁRIAS, MOBILIDADE E CAMPESINATO

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 32-36)

Abrimos a terceira parte deste volume com o artigo de Afrânio Garcia e Be- atriz Heredia, “Campesinato, família e diversidade de explorações agrícolas no Brasil”. Artigo denso e fecundo, por tudo o que nos faz pensar acerca das transformações do rural, da diversidade das formas de existência no e do mundo rural e sobre o conhecimento produzido das diversas situações. Os autores começam o artigo por um questionamento: “continuaríamos a ser prisioneiros da crença no caráter único e inexorável de apenas uma via de desenvolvimento do capitalismo no campo: a que privilegia os grandes estabelecimentos agroindustriais, hoje rebatizados de ‘global players’ [...]”, para desde o início apontar que devemos estar atentos à pluralidade do rural. Mostram como muitos dos atores sociais foram invisibilizados ao longo da história do nosso país e esquadrinhando a produção acadêmica

pari passu com as transformações políticas e sociais vividas no Brasil e como

estes mesmos atores foram emergindo; aos poucos, vemos não mais um mundo rural composto pela casa grande e a senzala, mas gradualmente surgem descrições e análises do campesinato marginal às áreas de grande plantação, surgem os sitiantes, os colonos, os posseiros, os arrendatários, os agregados, os moradores de engenho. Eles estavam lá, mas a representação construída sobre o rural impedia que eles fossem vistos.

Afrânio Garcia e Beatriz Heredia insistem na necessidade de se considerar o signifi cado das práticas usuais dos vários segmentos rurais e as categorias de pensamento que as acompanham; é assim que elaboram uma admirável análise da economia de pequenos produtores; é assim que questionam que sentidos têm o qualifi cativo familiar na expressão agricultura familiar e agricultor familiar e que usos e apropriações foram feitas dessas expressões, por vários agentes e pelo próprio Estado. O desenvolvimento do artigo foi levando o leitor a perceber os esforços empreendidos por grupos domésticos pela melhoria de seus padrões de existência, apontando a busca de “mo- dalidades próprias de reconversão de setores desfavorecidos”, no caso, os atores do mundo rural. Afrânio Garcia e Beatriz Heredia fi nalizam o artigo com indagações mais do que pertinentes no nosso momento atual, e as res- tituímos aqui: “A imagem de ‘maior celeiro do mundo’ servirá unicamente para reafi rmar a hegemonia do agronegócio, condenando, como no passado, o campesinato à ameaça de fome e à incerteza quanto à sua reprodução? Ou abrirá espaço para afi rmação da diversidade de explorações agrícolas no

campo, permitindo que, à fartura do aprovisionamento das casas, se agregue a possibilidade de elaborar verdadeiros projetos de futuro por estas famílias?”.

Os artigos de Parry Scott e Marilda Menezes destacam, entre outros pontos que comentaremos a seguir, tentativas de “reconversão” por meio da migração. O mundo camponês é um espaço de movimentos, deslocamentos que, em inúmeras situações, evidenciam lógicas de reprodução da condição camponesa. A análise da migração como estratégia de reprodução social é objeto dos clássicos do estudo do campesinato e obras de referência na literatura brasileira que os autores dos artigos que apresentamos adiante destacam no diálogo de pesquisa. Qual é o sentido da migração e qual é a especifi cidade enquanto estratégia? Os artigos de Parry Scott e Marilda Me- nezes descortinam essas realidades migratórias na perspectiva do Nordeste do Brasil. O primeiro realiza esse exame com base em quatro casos: a zona canavieira de Pernambuco, o agreste pernambucano, o Oeste maranhense e no rio São Francisco. Marilda Menezes elabora uma escuta atenciosa e interpreta as experiências de pequenos proprietários, moradores e rendei- ros nas micro-regiões do Sertão de Cajazeiras e agreste da Borborema, no Estado da Paraíba, nas décadas de 1980 e 1990.

Parry Scott, em seu artigo “Famílias camponesas, migrações e contextos de poder no Nordeste: entre o ‘cativeiro’ e o ‘meio do mundo’”, elabora a teia de relações sociais e signifi cados em que estão envolvidas famílias de cam- poneses que migram. Scott defende que por meio das migrações é possivel compreender estratégias de uso diversifi cado de mão-de-obra familiar, em tempos e locais diferentes. Nos anos 1970, a zona canaveira de Pernambuco mostra fl uxos locais e nacionais que os camponeses e trabalhadores nos engenhos de cana-de-açúcar representam pela expressão: “entre o cativei- ro e o meio do mundo”. Segundo o autor, o “Cativeiro e o Meio do Mundo

são duas opções domésticas entre as quais agricultores e trabalhadores rurais

nordestinos se articulam historicamente. Como “cativos”, colocam o seu trabalho à disposição de empregadores locais em troca do salário e de alguns “favores”. Como viajantes “no meio do mundo”, são móveis e disponíveis a empregadores em áreas mais dinâmicas, cada vez mais separadas das suas casas de origem. O trabalhador rural ou morador da zona da mata emprega essas noções para “referir-se às frustrações das suas tentativas de controlar a sua própria articulação da mão-de-obra familiar”, interpretado pelo autor como “a multiplicidade de contextos de poder nos quais o campesinato se insere”. Nos diversos “cativeiros”, encontram as limitações impostas pelo sistema de decisão sobre a disposição do trabalho familiar no contexto local. O “meio do mundo” oferece uma liberdade de movimento em busca de uma vida melhor em face das ameaças de fragmentação da unidade do grupo doméstico. O autor indica aqui que a migração pode constiruir-se em uma “estratégia de recomposição dos grupos domésticos” por meio dos contatos regulares mantidos entre os que fi caram e os que partiram, inclusive no auxílio à manutenção da família no seu local de origem.

No agreste pernambucano e no Oeste maranhense dos anos 1980 pre- dominam as migrações inter-regionais como uma estratégia doméstica de reprodução social. Indivíduos realizam migrações circulares, mantendo suas raízes nas localidades em que residem suas familias. Camponeses migrantes vão para o Centro-Sul provenientes do agreste pernambucano, e aqueles originários do Oeste maranhense enviam famílias para a fronteira amazônica. Nesse mesmo período, os camponeses – posseiros, meeiros e

irrigantes – da beira do São Francisco são removidos de suas localidades e,

forçadamente, tornados assentados. Assim, altera-se a sua maneira cotidiana de produzir e relacionar-se, transformando a sua própria campesinidade.

Menezes e Scott desenvolvem uma proposição comum ao destacarem a migração camponesa como processo histórico; ambos refl etem partindo de situações empíricas do Nordeste brasileiro. Em seu artigo “Migrações: uma experiência histórica do campesinato do Nordeste”, Marilda Menezes parte de três eixos de análise: migrações enquanto processo social de adap- tação permanente dos camponeses a contextos sociais que transformam as suas condições de existência; migrações e suas relações com a dinâmica da família, ou seja, com o ciclo de vida, gênero e idade dos fi lhos; e mi- grações como uma experiência inter-geracional do campesinato. A autora apresenta argumentos teóricos sobre a migração como estratégia familiar defendendo que “nem sempre expressam uma desintegração do campesi- nato”, mas, ao contrário, têm representado uma estratégia histórica de sua reprodução social. Na mesma posição analítica de Scott, destaca como os deslocamentos de indivíduos e famílias em busca de trabalho estão relacio- nados aos processos de diferenciação social do campesinato. A realidade empírica focaliza os rendeiros, moradores e pequenos proprietários no Sertão e agreste paraibanos. Para os pequenos proprietários, a migração alivia a pressão demográfi ca sobre a terra. “Para os moradores e rendeiros, é um sinal de libertação da relação de dependência personalizada do dono da terra”. Considerando a importância da mobilidade entre esses grupos de camponeses, a autora entende que as noções de redes familiares e de amizade parecem mais adequadas do que a de comunidade camponesa para compreender como o fl uxo de pessoas, objetos e símbolos articulam espaços sociais diferenciados. Esta noção de redes orienta o estudo dos itinerários migratórios, das relações de reciprocidade na família e entre amigos e vizinhos, da organização dos espaços para onde os migrantes trabalham e vivem, tais como os alojamentos em usinas de cana-de-açúcar, favelas e bairros populares das grandes cidades. A questão para a autora é a migração “como uma estratégia permanente de adaptação das famílias camponesas às condições insufi cientes de reprodução social”.

O artigo de Emília Pietrafesa de Godói segue tratando da mobilidade de atores sociais nos contextos rurais, mas, desta vez, é a “circulação de crian- ças” que está em análise. No artigo “Reciprocidade e circulação de crianças

entre camponeses do Sertão”, a autora parte do pressuposto de que os “termos lingüísticos correspondem a fatos de cultura e de conduta” (Mali- nowski, 2002 [1935]). Mostra-nos a importância de conservar a expressão local “fi lhos de criação”, pois esta, do ponto de vista dos camponeses, remete a condutas muito diferentes da “adoção”, entendida como transferência permanente e total de crianças a outra unidade familiar, também presente nas situações estudadas. Revisitando estudos realizados no universo rural em várias partes do mundo, a autora propõe que a circulação de crianças só pode ser entendida se inserida na rede de prestações de outras ordens que envolvem parentes, vizinhos e compadres, remetendo a questões referentes ao casamento, herança e sucessão e, por conseqüência, à reprodução da pró- pria existência social dessas populações. Emília Pietrafesa procede também a uma crítica às explicações deste fato social que se limita a relacioná-lo com a raridade ou a abundância dos recursos disponíveis e ao ajuste entre o número de pessoas ativas de uma unidade doméstica e sua produção, isto é, que a incorporação ou não de crianças por uma unidade doméstica esteja relacionada unicamente à pressão ecológica e a formas efi cientes de produção. Propõe que se veja essa prática como parte de uma ética que a concebe como generosa e obrigatória entre vizinhos, parentes e compadres.

No artigo que fecha este volume, “De sitiantes a irrigantes: construção identitária, conversão e projetos de vida”, Ramonildes Alves Gomes vai chamar a atenção para a intervenção de instituições, organizações políticas, na maioria das vezes, externas aos camponeses, que criam e recriam diversas categorias de classifi cação desses agentes sociais, pois, historicamente, o Es- tado revela a capacidade de nomeação dos sujeitos com base em suas ações políticas. No estudo realizado, é o processo de construção e legitimação da identidade de irrigante, o qual a autora vê como estratégia de resistência, que está sob análise. Essa categoria é criada para diferenciar os “agriculto- res da pequena produção que cultivam na faixa seca, dos agricultores das faixas úmidas de terras benefi ciadas pelo Estado com infra-estrutura para instalação dos projetos de irrigação”. Tal designação nomeia tanto grandes empresários do vale do São Francisco como agricultores familiares dos perímetros irrigados de municípios da Paraíba e encaixa-se em uma visão de ascensão social. O artigo de Ramonildes Alves sugere que a leitura dos processos desencadeados pela intervenção do Estado, em termos de classi- fi cação de grupos e pessoas, formas e modos de disciplinamento, situa uma perspectiva a ser aprofundada que remete a categorias e relações próprias de uma sociologia da intervenção. A autora insere observações sobre as condições em que se realiza o planejamento idealizado por políticas de desenvolvimento rural que produzem rupturas com “o passado camponês destas famílias representado pelos valores implícitos nos projetos de vida e nas expectativas em relação ao futuro, ou seja, libertar-se da sujeição do patrão, reproduzir o patrimônio e assegurar o futuro dos fi lhos”.

Esperamos que o conjunto dos artigos publicados nos volumes I e II consiga ajudar a restituir no debate acadêmico a Diversidade do Campesi- nato em suas várias expressões e suas muitas estratégias de reprodução e que respondam, de algum modo, às demandas de vários setores sociais por uma sistematização do conhecimento acerca destas populações.

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 32-36)