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USO DO TERRITÓRIO E SUAS LIMITAÇÕES

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 167-169)

O fortalecimento da cultura e a biodiversidade por parte do campesinato não se entendem fora do contexto territorial. A relação íntima entre terra, biodiversidade e cultura explica a tipologia do sistema de produção tradi- cional de numerosas comunidades locais e mostra a importância da luta pela titulação coletiva das terras para esses grupos humanos (Escobar, 1999). Castro (1998) ilustra, neste mesmo sentido, como o território é considerado um espaço onde se integram atividades produtivas e sociais intimamente ligadas entre si e com uma signifi cação ritual e simbólica não baseada em relações de intercâmbio monetário.

O uso do território de Itacoã organiza-se espacialmente segundo as condições de uso do povoado e a geomorfologia do terreno. Do ponto de vista socioespacial, a localidade divide-se em duas zonas bem diferenciadas. Uma, o centro nevrálgico da comunidade e lugar de encontro social e comunitário, é conhecida com o nome de “Beira”. Nela se encontram as principais infra-estruturas3 do povoado e o porto fl uvial. Neste espaço as

casas estão bem próximas umas das outras, separadas unicamente pelos quintais e respondendo sua localização ao critério de proximidade familiar. A segunda, as zonas mais afastadas do porto e das principais infra-estru- turas comunitárias de acordo com a terminologia de uso comum, denomina- se genericamente como “Centro”. Neste vasto território, há poucas casas, sendo os ecossistemas dominantes os bosques de formação secundária (capoeiras) e as áreas abertas de cultivo agrícola (roça). Os habitantes de Itacoã utilizam esse território para desenvolver atividades tradicionais de subsistência: caça, pesca, agricultura itinerante, coleta de frutos etc.

Também existe outro tipo de divisão espacial relacionado com os aspectos geomorfológicos do solo que, por sua vez, determinam os usos que dele se fazem: terra fi rme e várzea. A primeira caracteriza-se pelas condições geofísicas do solo, as quais favorecem a drenagem da água da chuva e impedem o encharcamento estacional ou duradouro. A segunda caracteriza-se por ser área de planície aluvial sujeita a inundações periódi- cas devido à freqüente presença de solos argilosos com alta capacidade de retenção de água.

A localidade de pesquisa, em sua maior parte, é terra fi rme (87% do território), bastante frondosa e sombria graças à prática de manejo silvícola nos arredores das moradias, com a presença abundante de árvores frutíferas e plantas medicinais. Nas áreas mais distantes do povoado é onde normal- mente se pratica a agricultura itinerante de subsistência, com a plantação da mandioca como cultura dominante. A localidade de Itacoã inclui uma

3 A escola, a igreja, o posto de saúde, o campo de futebol grande, o salão de festas, o ginásio,

área de várzea paralela à margem fl uvial, de mais de 130 hectares, rica em palmeiras e árvores frutíferas, madeiras nobres e óleos essenciais.

Com o objetivo de superar essa dupla divisão territorial entre “Beira” e “Centro” ou terra fi rme e várzea, a comunidade de Itacoã organizou, tradi- cionalmente, o seu território para diferentes usos, sejam estes unifamiliares ou coletivos. Com a titulação e a demarcação das terras, no fi nal de 2003, a gestão comunitária do território foi incentivada, no entanto as áreas de uso familiar seguiram sendo respeitadas como garantia da reprodução sociocultural da comunidade.

As observações de campo permitem o estabelecimento de cinco cate- gorias de uso territorial diferenciado na localidade de Itacoã:

a) Terrenos de uso exclusivamente familiar, que incluem a moradia e os seus arredores, os quais recebem diferentes nomes no âmbito local: quintal, sítio, terreiro.

b) Áreas de uso comunitário e localizadas na “Beira” como as infra- estruturas sanitárias, educativas, religiosas e lúdico-esportivas. c) Cultivos trabalhados por pessoas unidas pelos laços de parentesco e

com fi ns produtivos nos distintos “Centros”. O seu uso é exclusiva- mente familiar e restringido aos espaços destinados à própria atividade de subsistência.

d) Áreas de trabalho comunitário para fins produtivos e de acesso restringido às pessoas associadas às novas iniciativas produtivas: piscicultura, manejo de açaizais, avicultura etc.

e) Terrenos de várzea e capoeira, de acesso livre, usados por seus habi- tantes de forma intermitente e indistinta para atividades extrativistas e cinegéticas.

A comunidade negra de Itacoã, após 23 anos de luta pela titulação da terra em que viviam há mais de cem anos (Marin, 2003), ostenta, na atualidade, a propriedade defi nitiva do seu território graças a um recente reconhecimento legal. A área titulada possui uma extensão de 968 hectares e um perímetro de 14.292,08 metros (conforme mostra a Figura 6.1), e nela habitava uma população de 405 pessoas no fi nal de 2004, distribuída em 82 casas e 94 famílias. Em nível demográfi co, destaca-se a juventude e o dinamismo populacional desta comunidade, com o crescimento do número de famílias de 22% em apenas cinco anos, com predomínio dos jovens com faixa etária entre zero e 21 anos.

Apesar da titulação coletiva das terras, a comunidade negra de Itacoã so- fre limitações de uso territorial. Se compararmos a extensão da área titulada com o número de habitantes, Itacoã pode ser considerada uma localidade densamente povoada, com aproximadamente dez hectares por família para o desenvolvimento de atividades de subsistência, que são consideradas superfícies de pequenas dimensões dentro do contexto amazônico.

Como conseqüência dessa pressão demográfi ca, as pesquisas de cam- po evidenciaram, entre outras, duas problemáticas relacionadas com essa restrição territorial:

a) os confl itos internos derivados da gestão comunitária da várzea, que é um ecossistema rico em espécies frutíferas, porém de extensão reduzida;

b) a baixa produtividade da terra resultante da diminuição do período de repouso no ciclo da agricultura itinerante por impedimento da recuperação natural da fertilidade do solo.

TRANSFORMAÇÃO DA NATUREZA E MANEJO

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 167-169)