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de famílias % sobre total

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 179-186)

ORGANIZAÇÃO SOCIAL E NOVAS ESTRATÉGIAS PRODUTIVAS

N. de famílias % sobre total

0 a 1 salário mínimo 55 58,51 1 a 2 salários mínimos 27 28,72 2 a 3 salários mínimos 11 11,70 > 3 salários 1 1,06 Pensionistas e aposentados 17 18,09 Trabalhadores assalariados 7 8,51

Fonte: Pesquisa de campo (2004).

8 Estes dados de renda devem ser tomados de forma cautelosa e em termos aproximados,

porque a imensa maioria de unidades familiares carece de um método rigoroso e confi ável de contabilidade doméstica.

As circunstâncias atuais de maior dependência do mercado e baixa capacidade de geração de renda da comunidade negra, por meio das estra- tégias tradicionais de subsistência, forçaram a adoção de novas iniciativas econômicas, teoricamente mais intensivas em produção e mais rentáveis em termos monetários. As novas iniciativas de piscicultura, de manejo de açai- zais nativos na várzea e de criação de galinhas em granja vão nessa direção.

Os três projetos são de gestão e participação coletiva, ainda que restritos aos associados fundadores. A participação das famílias nestes novos proje- tos produtivos é parcial – menos de uma em cada duas famílias tem algum membro envolvido, e somente 31% dos novos empreendedores participam em mais de um projeto comunitário.

Em geral, nestas novas iniciativas produtivas, destaca-se uma elevada capacidade organizativa interna dos associados e uma regulamentação sistemática dos trabalhos coletivos a serem desenvolvidos. Apesar disso, atualmente, o funcionamento dos três projetos mostra difi culdades conver- gentes de execução: todos eles estão nas primeiras fases de implantação, os retornos econômicos são ainda baixos, e a assistência técnica tem sido, de momento, irregular, inefi ciente e pouco sistemática.

De fato, esses novos empreendimentos encaixam-se de maneira diferente na dinâmica organizacional das famílias. O projeto comunitário de manejo de açaizais, por exemplo, adapta-se razoavelmente bem à idiossincrasia do grupo humano. Não em vão, os quintais das casas são autênticos sistemas agrofl orestais e as novas técnicas silvícolas propostas para aumentar a produção da palmeira de açaí são convergentes com as utilizadas ances- tralmente pelas populações quilombolas da Amazônia nos arredores das suas residências.

Em contrapartida, os projetos de piscicultura e a criação de galinhas, embora sejam iniciativas com um grande potencial de geração de renda, são atividades dependentes de apoios externos, econômicos e técnicos, ante a incapacidade endógena de se investir em insumos externos (alimentação artifi cial) e a falta de experiência histórica do grupo humano com relação a elas. O seguimento de ambas as iniciativas permite confi rmar os fatores de dependência pela compra de ração e de assessoramento técnico, circuns- tâncias que as convertem em vulneráveis.

As melhorias nas condições de vida, a reprodução social e cultural do povoado e a manutenção de práticas agroextrativistas de baixo impacto ambiental não se desenvolvem de forma autista, alheias à sociedade maior que lhes rodeia. Desenvolvimento endógeno não é sinônimo de autarquia nem de endêmico. Daí, o signifi cado neste ensaio da relevância do apoio institucional nos processos de etnodesenvolvimento, em que as instituições públicas ou privadas devem erguer-se como agentes sociais estimuladores e catalisadores das ações levadas a cabo pelas famílias camponesas, sem cair em práticas paternalistas “de cima para baixo”, nem patrimonialistas.

Em teoria, as diretivas institucionais para se promover o desenvolvimen- to local nas comunidades rurais giram em torno de dois conceitos:

1) garantir os serviços sociais nos assentamentos locais sem os quais não há sociedade humana, pequena ou grande, que funcione; 2) apoiar econômica e tecnicamente, de forma efi ciente e profi ssional,

aquelas novas iniciativas produtivas requeridas ante as transformações ocorridas no mundo rural amazônico nas últimas três décadas. Em relação ao primeiro ponto, Itacoã, apesar de ser uma localidade carismática e, de certa maneira, privilegiada em investimentos públicos locais, apresenta defi ciências nos serviços sociais: assistência sanitária pre- cária, falta de recursos educativos de qualidade, transporte fl uvial irregular e privado, inexistência de rede elétrica e de saneamento básico e canalização parcial de água. A respeito do segundo ponto, como já foi mencionado, a assistência técnica dos órgãos públicos é defi citária pela sua inefi ciência e pouca sistematização. Estas duas disfunções das políticas institucionais não deixam de ser obstáculos para a implementação efi caz de políticas de desenvolvimento na localidade de estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O território, o manejo da biodiversidade e a organização social interna são os três pilares básicos para o desenvolvimento das comunidades rurais amazônicas. As três categorias interatuam e complementam-se formando um “tripé”, utilizando um símile, capaz de sustentar toda uma estrutura social organizada sempre e quando tais pilares não estão frágeis.

Em linhas gerais, a comunidade negra de Itacoã tem os “três pés” do “tripé” em condições aceitáveis. O território, no qual vivem há mais de 120 anos, foi recentemente reconhecido pelas instituições públicas competen- tes, sendo demarcado e titulado como propriedade coletiva. A riqueza de árvores frutíferas, a variedade de recursos potenciais existentes nas matas e o acervo cultural de plantas medicinais nos quintais das residências familiares mostram como a biodiversidade do lugar se encontra em bom estado de conservação. A mobilização política, a capacidade organizativa e as estreitas relações interpessoais de seus habitantes são bons indicadores da fortaleza e consistência das estruturas sociais da localidade em estudo.

Contudo, apesar de ser verdade que a comunidade negra de Itacoã apresenta, recordando o símile, um “tripé” com aceitável estrutura nos seus “pés”, é possível, por meio de uma análise mais profunda, detectar algumas fi ssuras em cada uma delas.

Com relação ao território, a localidade quilombola está densamente po- voada, ou seja, a relação entre o número de habitantes e a superfície espacial

é alta. As cifras demográfi cas manifestam uma tendência ao crescimento populacional para os próximos anos em razão da presença dominante de pessoas jovens, com idades compreendidas entre zero e 21 anos, ao passo que as dimensões da área titulada estão estabilizadas, sem aumentos pre- vistos para os próximos anos. Alguns sintomas de alerta apontam nesta direção: há propensão à baixa produtividade da terra por diminuição do tempo de repouso e aparição de confl itos de gestão familiar e comunitária da várzea, minoritária em extensão.

A respeito da biodiversidade, a ação conjunta de pressão demográfi ca e limitação territorial intervém contra o tradicional ciclo de fertilização da agricultura itinerante de “corte e queima” e pode chegar a comprometer a benevolência ambiental do sistema agrícola tradicional. Caso ocorra esta ameaça, a riqueza biológica do espaço de uso comum pode ser prejudicada de maneira especial, especialmente em alguns dos seus ecossistemas de “reserva”: várzea e capoeira.

Por último, a organização social da comunidade apresenta desconti- nuidades e diferenciações signifi cativas: apesar do elevado grau de parti- cipação política e organizativa do povoado, a presença não majoritária de famílias com algum membro insertado nas novas iniciativas econômicas e a constatação empírica de certo desequilíbrio social intracomunitário (nas condições econômicas, residenciais e, mesmo, de apoderamento simbóli- co) gera algumas incertezas acerca da extensibilidade das transformações socioeconômicas e políticas levadas a cabo pela associação comunitária, representante legal da comunidade e proprietária da terra.

Em relação à categoria de análise proposta no ensaio, a comunidade negra de Itacoã apresenta potencialidades e limitações ao etnodesenvolvimento. Um primeiro elemento potencialmente capaz de favorecer a melhoria das condições socioeconômicas e culturais da localidade é a estreita relação da sua população residente com a natureza.

As diferentes pesquisas etnobotânicas elaboradas na área de estudo confi rmam a magnitude e a relevância da sabedoria popular com relação ao ambiente natural e seus possíveis aproveitamentos em benefício próprio, como garantia de subsistência e reprodução social do grupo humano. O calendário das atividades produtivas de acordo com os ciclos naturais e a manutenção da biodiversidade nos quintais, áreas de várzea e capoeira, bem como a grande variedade de espécies vegetais úteis identifi cadas e coletadas (com 90 espécies de plantas medicinais e 48 árvores ou arbustos de interesse alimentício e/ou comercial reconhecidos), são alguns dos exemplos dessa manifestação epistemológica.

A comunidade negra de Itacoã apresenta um elevado acervo de plantas medicinais em seu território, especialmente nos quintais das casas, com a presença apreciável de plantas não autóctones em virtude da histórica comunicação com a metrópole e a elevada mestiçagem dos habitantes da

região. Destaca-se, fi nalmente, que o conhecimento botânico e medicinal das plantas está mais concentrado em algumas pessoas de idade mais avançada e do sexo feminino, porém se observa certa propagação cognitiva por toda a comunidade por meio da transmissão oral dos conhecimentos, intercâmbio não monetário e práticas cooperativas.

Nas últimas duas décadas, em Itacoã, à idiossincrásica capacidade de trabalho e sacrifício humano de seus habitantes tem-se unido uma sig- nifi cativa capacidade de organização e articulação política comunitária, constituindo um segundo fator potencial de desenvolvimento local. Atual- mente, o fortalecimento sociopolítico da comunidade é uma constatação empírica que impede práticas autoritárias e arbitrárias de agentes políticos e econômicos externos como a compra de terras e de votos e exige da administração pública competente o cumprimento da legislação vigente e dos direitos sociais constitucionalmente consensuados como universais pela sociedade moderna brasileira.

A proximidade da localidade de estudo com a cidade de Belém, apesar da relação dialética estabelecida entre ambas, apresentadas neste ensaio, é, em seu conjunto, outro fator catalisador dos processos de etnodesenvol- vimento. Isso se deve ao fato de se substituírem parcialmente as carências sociais presentes na comunidade, se diminuírem os efeitos prejudiciais da comercialização de produtos primários de baixo valor no mercado, se evitarem relações de dependência com agentes intermediários típicas de regiões rurais afastadas dos núcleos urbanos e de difícil acesso e, por últi- mo, se aproximarem geografi camente as instituições públicas envolvidas no desenvolvimento comunitário.

Entretanto, os vetores ambientais, socioeconômicos e políticos que atuam como fatores limitantes ao etnodesenvolvimento são também visíveis em Itacoã. A baixa produtividade da terra é um deles. As causas e conse- qüências desse fenômeno geram uma crise no modelo de auto-sufi ciência alimentar e de independência técnica dessas populações, acrescida ainda mais pela limitação territorial e o crescimento populacional.

As barreiras estruturais e sociais ao desenvolvimento são endêmicas na região amazônica e traduzem-se em carências nos serviços de saúde e educação, transporte irregular e privado e baixo alcance no abastecimento de água, luz e saneamento básico. Estas e outras funções são competência das diferentes administrações públicas, responsáveis também por apoiar fi nanceira e tecnicamente as novas iniciativas produtivas das comunidades rurais direcionadas para uma melhor inserção no mercado e maior grau de diversifi cação de suas atividades produtivas. As evidências de campo e a análise das atuações institucionais manifestam a necessidade de melhorias com relação à oferta de serviços públicos e assessoramento técnico.

As relações comerciais entre os produtores locais e o centro urbano são outro fator limitante no que diz respeito às estratégias produtivas orienta-

das para a venda de produtos naturais. O escasso controle dos preços das mercadorias vendidas, o caráter varejista da comercialização e a inviabili- dade efetiva de implantar sistemas de maior benefi ciamento dos recursos primários produzidos são elementos condicionantes que restringem a capacidade de geração de renda.

Por último, vale sublinhar que as intervenções realizadas pelas insti- tuições públicas e de direito privado em Itacoã não podem ser enquadra- das como políticas para o etnodesenvolvimento, não foram construídas juntamente com a comunidade local e desenvolvem-se sob o paradigma clássico de “cima para baixo”. Além disso, a contínua chegada de projetos à comunidade está carregando os seus moradores de obrigações, compro- missos e fi nanciamentos, provocando mudanças nos ritmos de trabalho e no calendário das atividades produtivas, o que está conduzindo a uma rápida tendência homogeneizadora do modelo de agricultura familiar.

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DESENVOLVIMENTO

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