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DE VIDA E CRISE ECOLÓGICA DE CAMPONESES ( AS ) NOS CERRADOS

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 132-137)

DO

SUDOESTE

PIAUIENSE*

Maria Dione Carvalho de Moraes

INTRODUÇÃO

P

ara falar de populações camponesas nos cerrados lembro, de saída, com Shanin (1980), Vincent (1987) e Godói (1999), que o conceito de camponês pode tornar-se uma abstração se não refere, empiricamente, o conjunto de práticas permeadas pelo universo simbólico, categorias e regras mediante as quais os sujeitos sociais aludidos vivem, sentem e pensam suas existências. A conexão entre as práticas e seus supostos funciona em um nível mais profundo do que revela a aparência imediata, interessando, aqui, como dito por Pierre Bourdieu, tratar do modus operandi de camponeses(as) que traga à tona o modo de engendramento dessas práticas, até por meio dos seus discursos sobre elas.

Os camponeses e camponesas referidos estão situados no Nordeste brasileiro, na região sudoeste do Piauí, está constituída, em seus aspectos naturais, pelo bioma cerrados (Figura 5.1). Tal região, nas três últimas dé- cadas do século XX, veio sendo paulatinamente incorporada pela moderna agricultura do complexo carnes/grãos para exportação,1 de modo que os

segmentos camponeses que ali desenvolvem a tradicional ancoragem de

* Artigo baseado na tese de doutorado de Moraes (2000) cuja pesquisa de campo foi realizada de 1996 a 2000, no sudoeste piauiense, com ênfase em Uruçuí, e em outras investigações que coordenei (MORAES e VILELA, 2003a) e de que participei (MORAES e VILELA, 2003b; 2003c), ambas no sudoeste piauiense, em Urucuí e Bom Jesus.

1 A respeito da incorporação do sudoeste piauiense ao “novo” Nordeste dos cerrados, (sul-

maranhense, oeste baiano e sudoeste piauiense) pela moderna agricultura do complexo carnes/grãos, ver Moraes (2000, 2002). Sobre o “novo” Nordeste dos cerrados, ver também Costa (1995).

vida entre “baixões” e “chapadas” se vêem envolvidos numa crise ecológica (Wolf, 1984) sem precedentes.

As pesquisas que deram origem a este artigo fl agram esse momento na vida dessas populações de pequenos(as) proprietários(as) e posseiros(as) com história de ocupação antiga na região em foco, essencialmente dedicadas ao cultivo da terra, tomando decisões relativamente autônomas nesse processo e empregando, tradicionalmente, o chamado sistema de roça-de-toco (Andra- de, 1984, 1995; Gutberlet, 1994; Toffoli e Oliveira, 1997). Trata-se de povos agricultores inseridos de maneira restrita no mercado de fatores (Ellis, 1988): a mão-de-obra é familiar, com raras contratações de trabalho por salário; a terra é, em sua maioria, “apossada”,2 raramente arrendada ou comprada; e

o emprego de insumos e instrumentos manufaturados é mínimo ou nulo. Também no mercado de produtos, tanto pela oferta quanto pela deman- da, a participação é parcial: nem todo produto ou mesmo sua maior parte chega ao grande mercado, circulando em mercados locais e regional, sendo o consumo de bens importados relativamente baixo. Utilizam-se esque- mas tradicionais de acesso à terra e ao trabalho (de parentes e vizinhos) e técnicas transmitidas em círculos personalizados, num sistema irredutível à dimensão estritamente econômica (Moraes, 2000). Na região, há 39.830 estabelecimentos (Tabela 5.1), o que, se multiplicados por seis (média de pessoas a cada um) dá um resultado aproximado da população diretamente envolvida com a agricultura familiar camponesa, considerando-se que o módulo fi scal nos municípios da região está em torno de 75 hectares.

Tabela 5.1 Estabelecimento por grupo de área

Mesorregião Menos de 10 ha 10 a 100 ha 100 a 200 ha 200 a 500 ha Total

Sudoeste

piauiense 19.750 15.267 3.056 1.757 39.830

Fonte: IBGE, Censo Agropecuário 95/96, Piauí, Tabela 4- Estabelecimento por grupo de área total, segundo microrregiões, mesorregiões e municípios.

Trata-se de um campesinato que visa o aprovisionamento material e a manutenção da posição social num círculo restrito de relações, no contexto de um contrato social fundado na reciprocidade como valor (Valensi et al., 1978; Woortmann, 1990; Sabourin, 2000), não se podendo falar apenas de pequenos produtores mas, sobretudo, de atores sociais e históricos como

homo moralis (Woortmann, 1990).3 Nesse sentido, terra, família e trabalho são

categorias centrais e relacionais, vinculando-se a valores e princípios organi-

2 “Terra apossada”, na linguagem local, refere-se ao vínculo com a terra por relações de posse

e de não-propriedade jurídica.

3 Sobre campesinato como ordem moral e a idéia de campesinidade em graus diversos de

zatórios como honra e hierarquia, ainda mais prescritivos nas situações de crise social, como ocorrem na região, devido ao processo de incorporação das terras de “chapadas” pelo agronegócio do complexo carnes/grãos, em que concepções da terra como valor se contrapõem, fl agrantemente, às utilitaristas mercantis.4

Compra e venda são limitadas e visam prover o grupo daquilo que ele não produz, a depender de circunstâncias como a carência de dinheiro em determinadas ocasiões e a quantidade de produto colhido em relação às necessidades anuais de consumo. De fato, trata-se de uma agricultura de aprovisionamento (Sahlins, 1983):5

Quando às vezes, a produção é boa, a gente tira uma parte [para venda] e, quando é fraca, às vezes não dá pra vender, encosta pra comer. A preocupação é essa! As outras coisas a gente vai tirando pra frente, levando a vida (...). (G.P.S., camponês de Sangue, Uruçuí, PI)6

Esses grupos camponeses organizam-se no quadro e nas condições oferecidos pela natureza, no sentido de uma simbiose (ecúmeno) (Men- dras, 1978) resultante de suas relações com o meio, num intercâmbio que adquire, ao longo do tempo, uma dinâmica própria e uma forma peculiar. Isto remonta ao habitat (Mendras, 1978), que supõe territorialidade e rela- ção com o lugar (Tuan, 1983; Augé, 1994), e, ao mesmo tempo, habitação (alojamento), refúgio, local de trabalho e limite de vida.

No conjunto das terras de moradia e de trabalho (cultivo, criações, extrativismo, caça, pesca), instituído ao longo do tempo pela coletividade camponesa, inscreve-se a organização social, a história do grupo humano que ali se estabelece e o modo como organiza e explora para uso próprio áreas cultivadas e ocupadas com habitação e criações, como lida com as reservas naturais, como pensa atuar em caso de expansão demográfi ca e como se vale de seu saber tecnológico e agronômico. Organização e saber que, por sua vez, remetem a um savoir-faire (Godelier [196-]), que faz fun- cionar sistemas de cultivo (Wolf, 1976; Mendras, 1978) aos quais subjaz determinado eco-tipo (Wolf, 1976). Esse intercâmbio adquire, ao longo do tempo, uma dinâmica própria e uma forma peculiar.

4 As categorias terra, família e trabalho não estão ausentes nas sociedades individualizadas e

voltadas para o mercado, mas estão separadas umas das outras, ao passo que nas camponesas não se separam, havendo aí, também, relações de oposição entre a arte de aquisição e de enriquecimento (WOORTMANN, 1990).

5 Isso não implica que os(as) camponeses(as) pesquisados(as) se caracterizem como as socie-

dades tribais estudadas por Sahlins (1983), que recorreu, em suas análises, à literatura sobre campesinato, em particular à de Alexander Chayanov, sobre o funcionamento de formas de organização da produção. A propósito, ver, ainda, Godói (1999).

6 As falas transcritas neste artigo são trechos de entrevistas e histórias de vida editadas em

Um sistema de cultivo pressupõe duas exigências de naturezas diferentes: uma de ordem técnica e a outra, social. Seus modelos tecnológicos impli- cam uma combinação de diversos elementos (ferramenta, planta, animal, técnica cultural) cujas interligações, tipos de arranjo e graus de liberdade supõem, ainda, determinada estrutura da sociedade agrária (Mendras, 1978). Entre camponeses(as) dos cerrados, por exemplo, a reprodução vincula-se estreitamente à apropriação das diversas possibilidades oferecidas pelos ecossistemas desse ambiente, as quais, como dito por Godelier ([196-]), são transformadas em “recursos”. Isto se dá, ressalte-se, numa agricultura que conjuga(va), tradicionalmente, sistemas de posse ou de pequena propriedade nos “baixões”, com sistemas de uso coletivo do solo nas “chapadas” cujo resultado é conhecido pela experiência e pelo habitus (Thompson, 1981; Bourdieu, 1994).

De fato, a utilização das diversas potencialidades do ambiente natural dos cerrados supõe um saber e um saber fazer, uma ciência do concreto (Lévi-Strauss, 1989), um sistema de conhecimento (Suarez et al., 1983) capaz de transformar possibilidades em recursos, num quadro de relações sociais cuja dinâmica determina as transformações nesse sistema. Claro que esse saber pode atuar como fator positivo de reprodução social ou como limite, dependendo do nível de desenvolvimento das forças produtivas. Mas deve ser pensado, sobretudo, como prática que, na lógica do habitus (Bourdieu, 1994), implica inventividade e criatividade e não se restringe à mera execu- ção repetitiva. Assim se compreendem as atualizações no modelo agrícola tradicional, mesmo quando contingenciadas por imposições do sistema dominante, como se dará com o cultivo do arroz de sequeiro na “chapada”.

Falo de camponeses(as) com uma economia que relaciona meios e fi ns num complexo sistema cuja racionalidade diverge da dos grandes projetos de agricultura intensiva e pode ser pensada com base em uma economia moral (Scott, 1976; Thompson, 1984)7 que orienta condutas pelas quais

“chapadas”, “buritizais” e “babaçuais” são, tradicionalmente, áreas consi- deradas de usufruto comum e integram o cálculo econômico camponês. Tal princípio foi, porém, subvertido pelos novos agentes sociais ocupantes dos cerrados, guiados pela lógica da apropriação privada e pelo uso intensivo de grandes áreas contínuas para o agronegócio do complexo carnes/grãos.

Embora os apossamentos comuns dos recursos naturais combinados com a apropriação familiar não sejam estranhos ao mundo rural brasileiro,8

essa prática tradicional do uso comum de terras de “chapada”, sem cerca-

7 Pela idéia de economia moral, Thompson (1984) critica o reducionismo do homo economicus,

opondo-lhe a noção de legitimidade. Scott (1976) trata de exploração e rebelião camponesa no Sudeste da Ásia, com base em concepções de justiça social, direitos e obrigações e reci- procidade.

8 A respeito, ver Sá (1975), Meyer (1989), Andrade (1984, 1995a, 1995b), Moura (1988),

mento, tem alimentado uma visão etnocêntrica de técnicos, planejadores e até pesquisadores, para quem tais áreas não eram utilizadas pelos cam- poneses e camponesas por lhes atribuírem “pouco valor” (Andrade, 1995), uma vez que, no sistema agrícola tradicional, a “chapada” não era lugar de agricultura. Dissemina-se, assim, o ideário produtivista da “chapada” como espaço vazio, justifi cando discursos de não expulsão de camponeses(as) dessas áreas pelos grandes projetos agropecuários.

Tal perspectiva revela-se, no entanto, limitada quanto ao conhecimen- to dos usos do “baixão” e da “chapada” pelas populações camponesas dos cerrados. Presa à dicotomia de atraso/progresso, ela deixa de captar a complexidade de sistemas operacionais agrícolas tradicionais e os seus processos de resistência e adaptação às transformações em curso, bem como os processos mais amplos de reprodução camponesa, a relação entre a terra, a família e o trabalho, os sistemas de produção – em especial quanto à relação com as variadas possibilidades agroecológicas que os diversos ecossistemas dos cerrados ofereciam aos(às) cultivadores(as) tradicionais, e os limites e favorabilidades da reprodução social dessas populações ante a incorporação das “chapadas” pela agricultura intensiva. Enfi m, assim referido, escapa a reorientação das estratégias de sobrevivência das ditas populações camponesas, guiadas pela lógica do aprovisionamento.

SENTIDOS DAS EXPERIÊNCIAS ENTRE

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