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COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 172-176)

As atividades de subsistência da comunidade negra de Itacoã permitem categorizar três fases bem defi nidas e diferenciadas: produção, consumo e comercialização dos produtos cultivados ou coletados da natureza. Optan- do-se por uma estratégia ou outra, o consumo pode ser quase substituído completamente pela venda do produto, como ocorre com algumas frutas ou o carvão vegetal, ou, pelo contrário, a fase mercantil pode chegar a ser quase inapreciável, como é o caso da produção agrícola de subsistência ou da coleta dos frutos do açaí.

A Tabela 6.1 sintetiza, das informações sobre os maiores ingressos divulgados pelas famílias de Itacoã, como as atividades agroextrativistas tradicionais são uma das principais fontes de renda dos habitantes de Itacoã, especialmente a venda de frutas regionais e os sacos de carvão vegetal. Os cultivos de mandioca, milho e outras plantas anuais pertencem mais ao universo do autoconsumo, com exceção das folhas ou ramas de mandioca que são vendidas em grande quantidade nas festividades religiosas da cidade de Belém do Pará.4 Isso não anula o fato de a imensa maioria de famílias

(87%) continuar plantando uma pequena extensão de terra para o próprio abastecimento de farinha de mandioca, elaborada artesanalmente em “re- tiros” próximos a algumas moradias familiares, como ilustra a Figura 6.4.

Da mesma forma, conforme mostra a Tabela 6.1, pode-se deduzir a importância do extrativismo de frutas em Itacoã, sendo esta atividade tradi- cional uma das principais fontes de renda econômica para as famílias cam- ponesas negras, assim como ocorre em outras áreas rurais próximas situadas na bacia amazônica, ricas em planícies de inundação. Destaca-se que geral- mente o domínio da economia extrativista em áreas de várzea no estuário amazônico é propiciado não só pela inviabilidade de práticas agronômicas convencionais em solos pobres e freqüentemente inundados, mas também pela presença de fl orestas com uma elevada concentração de espécies econo- micamente rentáveis, assim como pelos ciclos curtos de coleta de produtos fl orestais (Anderson et al., 1985; Anderson, 1990; Anderson e Ioris, 2001).

4 As folhas de maniva são usadas para a elaboração de maniçova, prato regional presente no

cardápio dos paraenses nas festividades do Círio de Nazaré (segundo domingo do mês de outubro e Natal).

Tabela 6.1. Principal fonte de renda e sua distribuição familiar

Renda principal Atividade N. famílias % N. famílias % Cultivos de subsistência – – 78 82,98 Folhas de “maniva” – – 64 68,09 Carvão vegetal 21 22,34 53 56,38 Frutas regionais 28 29,79 82 87,23 Aposentadoria 16 17,02 22 23,40 Atividade comercial externa 9 9,57 9 9,57 Salário 7 7,45 7 17,02 Atividade comercial interna 4 4,26 4 4,26 Trabalho informal 7 7,45 7 7,45 Construção de casas 2 2,13 2 2,13 Total 94 100

Fonte: Pesquisa de campo (2004).

Em Itacoã, a colheita de frutos em áreas manejadas (quintais, jardins) ou silvestres (capoeiras, várzeas e igapós) tem dois destinos diferenciados nem sempre excludentes: consumo familiar ou venda em Belém. A decisão familiar por uma ou outra opção depende de quatro fatores interconectados e devidamente calculados: disponibilidade temporal do recurso, necessida- des de retorno monetário, valor do produto no mercado local e intenção de consumo doméstico.

Independentemente das atividades “tradicionais” de natureza agroextra- tivista, cabe ser destacada a tendência crescente de aumento da porcentagem do número de chefes de família que obtêm os seus principais ingressos monetários fora do universo da produção da natureza: aposentadoria e pensão (17,02%); trabalho assalariado (7,45%); atividades comerciais e de transporte (12,77%); e construção de casas (2,13%).

Historicamente, a comercialização de recursos naturais ou agrícolas na Amazônia contempla três fatores de desvantagem para os produtores primários. O primeiro refere-se ao caráter disperso dos recursos naturais comercializados, extrativos na sua maioria. O segundo, às longas distâncias a se percorrer entre a fonte de abastecimento e os lugares de venda. O ter- ceiro e último, trata do baixo nível de processamento do produto vendido e, como conseqüência, de seu baixo valor no mercado local ou regional (Homma, 1993; Anderson, 1994).

O cenário extrativista de Itacoã não cumpre com duas dessas três con- dições. Em primeiro lugar, a proximidade desta localidade com a cidade de Belém permite viagens contínuas em barco dos produtores ou comerciantes internos da comunidade negra ao Porto da Palha para comprar e vender mercadorias. Dessa maneira, é excluída a longa cadeia de intermediários e a manutenção do sistema de “aviamento” tão freqüente em lugares distantes dos centros urbanos, caracterizado por um intercâmbio desigual no qual os extrativistas recebem preços excessivamente baixos pelos produtos coleta- dos e pagam preços excessivamente altos pelos produtos que necessitam para a sua subsistência (Anderson, 1994).

Por sua vez, a clássica dispersão dos recursos fl orestais tem diminuído em numerosas comunidades locais, tais como as de Itacoã, pelas práticas de manejo agrofl orestal nos arredores das casas e nas áreas de planície aluvial. Com o passar do tempo e o aperfeiçoamento das técnicas de melhoramento e enriquecimento com plantas úteis, tem-se conseguido, nelas, aumentar a produção de alguns frutos silvestres, como o açaí (Anderson, 1994; Shanley e Gaia, 2004).

Portanto, o ponto crucial para a melhora das condições de comercializa- ção dos produtos primários em Itacoã e outras áreas próximas aos núcleos urbanos centra-se no controle e na forma de acesso aos mercados locais. De forma sintética, esses condicionantes estão associados a um excesso de

individualização comercial com a conseqüente predominância das vendas ao varejo, assim como a incapacidade técnica para produzir bens alimen- tícios processados, por falta de potencial tanto de tipo fi nanceiro como de infra-estrutura.

A diversifi cação da produção agroextrativista e as melhorias do controle e forma de acesso aos mercados locais garantem o abastecimento de bens alimentícios para o auto-consumo, assim como a geração de renda e compra de bens não alimentícios. No Baixo Acará a cadeia de intermediários é curta e menos desvantajosa, como já foi explicado, caracterizada, ademais, pela presença de transportadores internos, ou seja, de comerciantes que vivem na própria localidade. Em Itacoã, por exemplo, a relação estabelecida en- tre os produtores familiares, os barqueiros e os comerciantes locais não é estritamente econômica, haja vista os vínculos de parentesco amenizarem o intercâmbio comercial, como também ocorre em outras localidades da comarca (Shanley e Gaia, 2004).

Quadro 6.1. Estacionalidade das atividades de subsistência em Itacoã

Atividade Época do ano

Cultivo de subsistência Todo o ano, especialmente no verão Carvão vegetal Verão, fi nais do inverno

Folhas e ramas de mandioca Outubro, Natal Frutas regionais De dezembro a abril Colheita de açaí De junho a dezembro

A atividade mercantil na comunidade de Itacoã é irregular, descontínua e fl utua de acordo com o calendário de atividades próprias da estação do ano, como mostra o Quadro 6.1. O inverno amazônico5 (sobretudo de janeiro

a abril) é o período mais forte do ano, com grande fl uxo de transporte de mercadorias, especialmente de frutas regionais como cupuaçu, pupunha, biribá e uxí. Outro período com alto movimento comercial é o que abrange os 15 dias prévios ao Círio de Nazaré, graças a uma importante demanda de carvão vegetal, tucupi6 e folhas de mandioca da cidade de Belém. Se inter-

relacionarmos o Quadro 6.1 com a Tabela 6.1, comprovamos como esses dois períodos são também os que permitem maior entrada de ingressos monetários graças ao pico de comercialização gerado.

5 Em termos regionais, inverno é o período mais chuvoso do ano; na Amazônia oriental,

coincidiria com os primeiros seis meses do ano.

ORGANIZAÇÃO SOCIAL E NOVAS

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