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SENTIDOS DAS EXPERIÊNCIAS ENTRE “BAIXÕES” E “CHAPADAS”

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 137-141)

A crise ecológica que atinge os povos dos cerrados (Figura 5.2)9 piauienses

está diretamente relacionada ao confl ito entre a monocultura dos grandes projetos agropecuários e à policultura camponesa que sempre articulou os usos dos “baixões” ao das “chapadas”. Esse embate se expressa no plano dos sistemas de usos da terra e dos demais recursos naturais – apoiados numa economia moral, da parte dos(as) camponeses(as), em oposição à apropriação privada do território e dos recursos naturais, pelos grandes empreendimentos agropecuários.

Segundo Andrade (1984), não há, na economia camponesa, espaço inútil ou vazio, como querem as narrativas mestras (Moraes, 2000) dos cerrados. De fato, camponeses e camponesas, no relacionamento com esse meio ambiente, elaboram uma complexa classifi cação dos tipos de terrenos exis- tentes, designando características relativas ao solo, clima e vegetação. Isso é feito pela relação entre as diversas formas de utilização desses espaços naturais, cujas potencialidades são acionadas como recursos, em função da

9 As fotos utilizadas neste artigo (fi guras 5.2, 5.3, 5.4 e 5.5) compõem o caderno fotográfi co

combinação do conjunto de atividades no qual sobressaem, dentre outros, o cultivo do “legume”(culturas), o “criatório” (gado), a “miúnça” (porcos, ovinos e caprinos), o “criatório pequeno” ou “criação” (aves), o extrativismo, a caça, a coleta de frutos, a pesca e o artesanato utilitário.

Figura 5.2. Família camponesa em frente da casa de morada, no interior. (Comunidade San- gue, Uruçuí-PI.)

Tal relacionamento ancora-se em um saber fazer que subjaz, por exemplo, a complexa classifi cação dos tipos de terrenos, associada ao importante par classifi catório “baixão/chapada”.10 Com base nesse contraste morfológico,

distinguem-se características de solo (barro, areia, vazantes e brejos), vege- tação (capim, mato, árvores altas, árvores baixas), clima (lugar úmido, fresco ou frio, seco), formações vegetais (buritizais, babaçuais e catingas,11 agreste,

carrascos e cerradões) e usos (agricultura, pecuária, extrativismo, caça).

10 Sobre a importância da relação “baixão/chapada”, ver Moura (1988) e Silva (1999), em

estudos realizados no Vale do Jequitinhonha, MG, e Godói (1999), em pesquisa feita no sertão semi-árido do Piauí.

11 Por “catinga” referem-se áreas de mata, nos “baixões” ou mesmo nas chapadas. Ferreira

(1999) registra as grafi as caatinga ou catinga. A defi nição de catinga utilizada pelos(as) camponeses(as) pesquisados(as) para referir-se a áreas de mata nos “baixões” se aproxima daquela dada por Carvalho (1924). Para detalhes, ver Moraes (2000).

Na taxonomia local, “chapada” ou “serra” designa os terrenos altos e planos de longa extensão, com solos “de barro” (maior teor de argila) ou “de areia” (mais arenosos) e o “clima seco”, com árvores esparsas e de porte baixo (cerrado), e um tipo de capim, o “agresto”, encontrando-se, ainda, ali, áreas de “carrasco”, o que corresponde a uma vegetação mais compacta, propícia para caça e coleta, e áreas de “cerradão”, com árvores mais elevadas, com madeiras consideradas nobres. Na economia camponesa tradicional, “chapadas” são áreas de caça, coleta de frutos, mel e plantas terapêuticas e de criação do gado e da “miunça” “na solta”.

Já o “baixão” ou interior12corresponde às terras baixas, com solos tidos

como mais ricos e úmidos que os da “chapada”, devido à presença de rios, riachos, lagoas e brejos. Aí, localizam-se áreas de “catinga”, matas com ár- vores de porte mais elevado, madeiras nobres como cedro (Cedrella odoratta) e pau-d’arco amarelo e roxo (respectivamente, Tebebuia serralifolia e Tebebuia

avellanedae). Há também dois tipos de terreno muito importantes: vazantes

(margens dos rios) e brejos (alagadiços), onde, fl orescem os buritizais e, nas imediações, os babaçuais, fundamentais nas atividades extrativistas. Os brejos (Figura 5.3) são estratégicos no rodízio inverno/verão:

No brejo, terra alagoada, faz uma vala no meio do brejo, a água encana ali e planta feijão, arroz... Arroz é em algum lugar, e é algum [camponês] que planta. Dependendo do brejo, planta a cana, a banana. Se ele não encharcar no inverno, planta a laranja, a banana, o ananás... O que alimenta o brejo é a chuva ou algum olho-d’água. Antigamente, era permanente, de seca a verde. Hoje, nós teve que abandonar o trabalho no brejo pra recuperar ele (...). Numa época de verão, o brejo secou, fi cou todo seco, aí todo mundo abandonou o brejo.13 Aí voltou [a ser como] o tempo antigo: juntar água, sustentar água, normalzinho. A gente hoje em dia abandonou o brejo e voltou a conservar a vertente. Se não conserva, apiora. Aqui, nesse brejo, é onde, pelo verão, quando tá um bicho meio magro, a gente coloca aqui dentro – porque aqui não falta o capim verde. A gente passa o verão botando [o gado no brejo] e quando é novembro, nas primeiras chuvas, a gente solta ele, cria na serra. (G. P. S., camponês de Sangue, Uruçuí, PI)

No “baixão” se dá o cultivo do “legume”, de verduras e frutas, e pastos, sendo também o lugar de assentamento e morada, embora seja comum a posse de uma segunda residência na sede do município, em bairros pe- riféricos, ambas as casas construídas pelos próprios grupos domésticos, seguindo-se, nas duas, o mesmo padrão de mobiliário e edifi cação – esta, com a utilização do adobe, com diferença apenas na cobertura; aquelas se cobrem de palha e as da cidade, de telhas. A residência citadina insere-se na

12 Sobre a relação entre o termo “interior” e o imaginário de sertão no Piauí, ver Moraes (2006). 13 As áreas de brejo vêm sendo postas em risco tanto pelo desmatamento indiscriminado

das “chapadas”, que compromete as nascentes, quanto pelo uso intensivo das populações camponesas, de modo que a percepção do risco tem levado camponeses(as) a serem mais cautelosos(as) com o uso dos brejos, nos “baixões”.

lógica camponesa de reprodução do grupo doméstico, também, do grupo de vizinhança do ambiente social da comunidade rural de origem, consideran- do-se parte das necessidades familiares a escola para os fi lhos, tratamento de saúde e o encaminhamento de toda sorte de providências cotidianas traduzidas como “negócios”: recados, encomendas, reuniões, transporte de pessoas e objetos, visitas a bancos, vendas e compras de produtos e, mais recentemente, as providências relativas ao “negócio do cerrado”.

A reprodução do grupo de vizinhança na cidade tem, assim como a segunda residência, importante função social, tanto na manutenção de padrões de sociabilidade, quanto em termos práticos de “tocar as coisas” no cotidiano, passando em alguns casos a ser residência principal de parte da família durante certas épocas do ano, mormente para aquelas cujos(as)

fi lhos(as), ainda pequenos(as), estudam na cidade e dependem da presença, notadamente, da mãe, sendo constante o ir-e-vir do chefe de família do “interior” para a cidade e vice-versa. Nesse sentido, a segunda residência é um prolongamento do “interior” e da comunidade original que funciona, de acordo com Mendras (1978), como a cápsula protetora do campesinato.

O ir-e-vir cotidiano desses sujeitos remete a espaços analisados, sobre- tudo pela literatura antropológica (Heredia, 1979; Soares, 1981; Godoi, 1999) – a casa e a roça –, como referências ao grupo doméstico camponês. Assim, a casa (no “interior” e na cidade) é a referência de assentamento da família, em estreita relação com a roça, espaço da produção do “legume”, base do aprovisonamento. O quintal (em ambas as casas, embora menor na da cidade e sem as mesmas funções que o da casa do “baixão”) é o espaço contíguo destinado ao cultivo de verduras, fruteiras e alguma roça menor (macaxeira, milho e feijão, para serem consumidos verdes). O “baixão” é também o lugar da “bateção” do feijão, onde se constroem os chiqueiros das aves, os fornos para confecção de bolos e biscoitos e se improvisam ou se edifi cam os banheiros: cercados de talos de buriti e sem cobertura. Nas casas da cidade, o quintal é uma réplica, em menor escala, daquele do “interior”, onde, geralmente, nos limites entre ele e a roça, são construídas as casas de farinha. Já o pasto (cultivado), no “baixão”, é um espaço contíguo à roça, cercado, no qual, na fase de formação, certos legumes podem ser consorciados com o capim. Mais recentemente, a “serra” designa o lugar do cultivo do “arroz da chapada”, o “negócio do cerrado” (Moraes, 2001).

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 137-141)