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Vinte anos depois: a necessidade de elaborar novas regras comuns

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 108-111)

Voltamos a analisar a situação das comunidades camponesas de Massaroca em 2003, vinte anos depois da criação da primeira associação comunitária e dez anos depois do nosso primeiro estudo sobre o fundo de pasto.

O programa de preservação dos fundos de pasto mostra uma limitação dos processos de diferenciação econômica e de exclusão social, preservando o sistema de produção fundado na pequena criação extensiva, protegendo varias famílias camponesas do êxodo. Mas foi apenas um prazo; outros questionamentos e desafi os apareceram.

Primeiro, houve o problema da cobrança de um imposto fundiário bem mais elevado para terras não cultivadas. Em decorrência de uma lei fede- ral das mais justas, destinada a combater a especulação e a existência de grandes domínios improdutivos, as terras não cultivadas como o fundo de pasto são bem mais taxadas. Em se tratando das terras de fundo de pasto recentemente atribuídas, tal majoração do imposto, obrigando os peque- nos produtores a pagarem por milhares de hectares de áreas comuns, é insustentável. Sua aplicação é irracional no contexto local, pois essas terras de pastagem natural são, freqüentemente, impróprias para a cultura de se- queiro. Há contradição entre a legislação federal e o uso local dos recursos, entre a lei e a prática no campo.

As conseqüências podem ser consideráveis. Para ter acesso aos emprés- timos subsidiados no âmbito da reforma agrária, as comunidades devem quitar o imposto fundiário. Às vezes, as dívidas atrasadas com o Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) são tão altas que o montante de imposto pode ser comparável aos empréstimos solicitados. Assinalado como uma constante por Bourbouze e Rubino (1992), trata-se “de uma profunda inadequação entre as legislações e as práticas realmente adotadas... sendo necessário ‘reavaliar, revisar, completar os dispositivos legislativos atuais denunciados como confusos, desiguais, inaplicáveis...’ é importante que um regime jurídico claro possa ser substituído por dispo- sitivos administrativos favorecendo a implementação de modos de gestão adaptados”.

Segundo, houve questões de identidade e de solidariedade de classe. De fato, as comunidades de Massaroca mobilizaram seu comitê em torno de problemas fundiários que não podiam ser resolvidos em nível local ou regional. O Comitê, até então, relativamente isolado e fora das grandes organizações sindicais e profi ssionais, endossou as reivindicações relativas à reforma agrária e ao crédito. E foi um choque para camponeses vaqueiros do sertão o fato de sentirem-se associados ao Movimento dos Sem-Terra durante os debates pela reforma agrária. Foi também uma ocasião para descobrir a força das articulações e o interesse para tratar as questões relevantes da jurisdição federal no âmbito apropriado, ou seja, por meio das instâncias profi ssionais nacionais, em Brasília. Para as comunidades de Massaroca, isso pode ser uma oportunidade de extensão da reciprocidade camponesa, motivada por um novo contexto, o de uma aliança necessária com um movimento social em escala nacional (Sabourin et al., 2001).

De modo geral, a reclusão de identidade em torno da propriedade, seja ela individual, familiar ou coletiva, constitui uma das formas de alienação das dinâmicas de reciprocidade que, para serem vitoriosas, devem ser gene- ralizáveis e ampliadas (Temple, 1997). Uma das razões que prevaleceram, até o momento, na manutenção da identidade familiar das comunidades é o temor de ver instalar-se no povoado um produtor de fora (com a che- gada da irrigação) ou um fazendeiro que reivindique o direito à apropriação individual de uma parte das terras de fundo de pasto.

Terceiro, os invasores não desistiram. Há casos de cercamento ilegal e de invasão (grilagem) por fazendeiros nos limites com as grandes propriedades vizinhas. Existem fugas e perdas de gado por roubo ou por fuga do gado da comunidade acompanhando a retirada dos animais de fora. Durante os períodos de seca houve convites para os rebanhos de parentes e com- padres distantes por sócios das associações. Em alguns casos, sócios das comunidades fi zeram negócios aceitando, contra remuneração, a entrada de rebanhos de grandes proprietários de áreas vizinhas. Por fi m, existem alguns casos de membros da associação que cercam a área, ultrapassando os seus limites individuais. De fato, o Comitê das Associações não sabe como limitar esses convites abusivos, por conta da tradição de hospitalidade e dos laços entre famílias.

Entretanto, um diagnóstico mais aprofundado mostra que os maiores questionamentos ligados ao manejo dos recursos forrageiros disponíveis são internos: em Massaroca, houve um aumento da pressão sobre o recurso comum, por meio do crescimento dos rebanhos (Tabela 3.4). Os fundos de pasto estão ameaçados de ser aproveitados de forma desigual pelas famílias com grandes rebanhos, se essas não autolimitam o seu acesso ou o número de animais. Existe uma grande diferença entre os pequenos criadores de Massaroca (50/60 ovinos ou caprinos) e as famílias que reúnem mil cabeças ou mais. De fato, o modelo dos grandes rebanhos associado às grandes fazendas continua sendo uma referência forte. Atualmente, cabe de novo negociar a mudança das regras de acesso e de uso dos fundos de pasto entre as associações e com as comunidades vizinhas, o que é seguramente o mais difícil. Algumas propostas estão sendo discutidas em Massaroca:

a) Cercar os fundos de pasto “por fora” do lado dos principais invasores e ao longo da estrada federal BR 154.

b) Reorganizar o regulamento e as normas de uso entre as famílias de uma mesma comunidade (no nível das associações) e entre as comu- nidades ao nível do Comitê, com controle do acesso.

c) Não autorizar o cercamento de áreas individuais quando impede o acesso dos vizinhos ao fundo de pasto.

Tabela 3.4 Estimativa de rebanhos por comunidade em 2000

Comunidade Área fundo de pasto Ovinos Caprinos Bovinos UA

Cachoeirinha 1.336 3.000 4.000 350 2.250 Caldeirão de Tibério 700 1.000 500 100 400 Canoa 120 700 1.000 40 380 Cipó 1.203 1.800 2.000 85 850 Curral Novo 1.394 3.500 2.500 400 2.100 Juá saquinho 500 3.000 250 Lagoinha 2.246 1.500 5.500 600 2.000 Lagoa Meio 2.500 2.000 3.000 500 1.500 Lagoa Angico 0 1.600 2.500 1.300 2.120 Total 9.499 15.600 24.000 3.300 11.600

Fonte: Diagnóstico rural participativo realizado pela Associação de desenvolvimento e Ação Comunitária, ADAC, junho 2000.

Em função das modifi cações do contexto (mercado, tecnologias, plu- viometria, pressão demográfi ca e carga animal), os criadores de Massaroca são novamente confrontados diante do dilema da gestão das pastagens comuns. Além do modelo da superexploração dos comuns estudado por

Hardin (1968), o desafi o é saber se mais uma vez as comunidades vão encontrar modalidades de regulação institucional por meio da elaboração de novas normas de compartilhamento do recurso ou de reciprocidade (Ostrom, 1998).

Permanência e transformação de uma

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 108-111)