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A linguagem literária sob a perspectiva funcionalista

FUNCIONALISMO E TRADUÇÃO LITERÁRIA: REFLEXÕES SOBRE A TEORIA E A PRÁTICA

3. A linguagem literária sob a perspectiva funcionalista

Parte do problema em falar sobre a tradução literária sob a perspectiva funcionalista consiste em justificar a possibilidade de existência de uma distinção entre tradução literária e tradução não-literária no contexto de uma teoria geral, bem como em estabelecer diferenças entre essas duas modalidades tradutórias.

Nesse ponto convém dizer que, da maneira como o termo é aqui empregado, a tradução literária não se confunde com a simples tradução de textos literários. Uma vez admitida a possibilidade de diferentes escopos que atendam a diferentes necessidades comunicativas, a tradução não-literária de uma obra literária passa a ser viável, bastando que para tanto exista um contexto que a justifique: como exemplo, pode-se imaginar a tradução juramentada de uma obra literária apresentada como prova em uma ação judicial por plágio. No polo oposto, pode- se imaginar uma tradução que tenha aspirações literárias feita a partir de um original dotado de características que correspondam à ideia de literatura. Esta modalidade particular de tradução – a tradução literária de uma obra literária – passa a ser aqui chamada de tradução literária propriamente dita.

Para que se possa produzir uma tradução literária propriamente dita no contexto de uma teoria geral, essa teoria precisa oferecer ao tradutor o aparato necessário ao planejamento e à execução de traduções a que se possam atribuir qualidades associadas a obras de caráter literário na cultura-alvo e na língua-alvo. No caso particular da teoria do escopo, isso quer dizer que – como toda e qualquer tradução – as traduções literárias são também norteadas pelo escopo e encontram-se sujeitas a todos os demais procedimentos e métodos previstos na teoria geral: a produção de um texto-alvo com características literárias seria apenas um tipo particular de escopo, de maneira que a tradução literária propriamente dita estaria perfeitamente integrada à teoria geral. Quanto à necessidade dessa integração, Reiß afirmou:

A pesquisa tradutológica relacionada à literatura, cuja maior parte é praticada longe da disciplina em que a tradutologia se transformou, devia ser plenamente integrada à tradutologia, uma vez que não existe uma “ciência autônoma da tradução literária”.(REIß 2009, p. 6)

Nesse ponto torna-se forçoso discutir – ainda que de forma muito sucinta – os traços distintivos do texto literário.

Uma vez que este breve artigo não se propõe a fazer uma revisão da vasta bibliografia existente sobre a constituição e as características gerais da literatura, o que aqui se apresentam são observações feitas por teóricos afiliados à escola funcionalista de tradução que trazem pontos de vista relevantes para a discussão proposta. Essas observações dizem respeito às características da linguagem literária como um modo de escrita e àquilo que se entende por “informação” no âmbito do texto literário, cuja linguagem não é passível de uma simples redução ao conteúdo.

Em um esforço preliminar no sentido de aproximar-se das características que definem o literário, Nord afirma:

A despeito do que pensemos em relação às questões de definição, existe um pressuposto claro segundo o qual a linguagem literária reveste-se de um sentido particularmente conotativo, expressivo ou estético que lhe é próprio. (NORD 1997, p. 81)

Mesmo na ausência de uma definição precisa, aqui se concebe a linguagem literária como uma ação comunicativa desenvolvida no âmbito da estética, como acontece a qualquer outra criação de cunho artístico: a articulação de um modo de expressão subjetivo e estetizante seria o elemento imprescindível para o surgimento do texto literário. A presença marcante de elementos conotativos também é considerada uma característica fundadora dos textos literários por Reiß, quando esta afirma que “as associações de ideias são primordiais nos textos expressivos” (2009, p. 54).

Apesar disso, cabe assinalar que em diversos momentos da linguagem cotidiana é possível observar o surgimento ocasional de traços distintivos que caracterizam a linguagem literária. De maneira a estabelecer a possibilidade de uma diferenciação entre esta e aquela, Mary Snell-Hornby afirma que, embora os recursos empregados na esfera cotidiana e na esfera literária sejam os mesmos, somente veem-se levados às últimas consequências no caso da última:

A linguagem literária – e em particular a linguagem poética – preocupa-se com a exploração da capacidade integral de um sistema linguístico (…) e envolve não apenas desvios em relação a uma norma estática e prescritiva, mas a extensão criativa da norma linguística. (SNELL-HORNBY 1995, p. 51)

Uma vez estipuladas em linhas gerais as características da linguagem literária sob a perspectiva funcionalista, passa ser possível falar sobre as diferentes variedades literárias, ainda que estas se constituam

acima de tudo em função de características difusas, e não de marcas específicas que permitam uma descrição precisa. Nas palavras de Nord:

No campo dos textos literários as marcas convencionais não se mostram tão frequentes quanto nos textos não-literários. Denominações de gênero como romance, conto e anedota referem-se acima de tudo à expectativa de se encontrarem características comuns nos textos assim classificados, ainda que estas se relacionem principalmente a aspectos referentes ao conteúdo e ao tema (ex.: anedota vs. piada), à extensão (ex.: romance vs. conto) ou a uma época específica (ex.: novela vs. conto), ou ainda a certas propriedades de estilo (ex.: Sturm und Drang). (NORD 2009, p. 21)

Depois de se passar pelo tipo literário e pelas diferentes variedades textuais reunidas sob a designação de literatura, chega-se ao espécime textual único, a respeito do qual Nord afirma:

Em geral o texto literário em particular é visto como o resultado de um processo de criação individual que adquire significado (artístico) justamente por não reproduzir padrões preexistentes (…), e por assim mostrar-se “original” e portanto inovador. (NORD 2009, p. 21)

A ideia de que um texto literário se constitui a partir de um significado artístico que extrapola o conteúdo já fora explorada anteriormente por Vermeer e Reiß, que – em uma interpretação interessante e produtiva da palavra – incluem as características formais de um texto na definição de informação. Este conceito passa então a contemplar tudo aquilo que um texto traz em si, não apenas relativamente ao estado de coisas que descreve, mas também relativamente à maneira como o descreve:

O termo “informação” é empregado aqui como um supraconceito para as funções da língua na ocasião em que um emissor, tanto em termos formais como situacionais, comunica ao(s) (círculo de) destinatários pretendidos aquilo que diz e como gostaria que esse dito fosse compreendido. (VERMEER e REIß 1991, p. 61)

Em uma passagem logo adiante os autores deixam claro que mesmo elementos manifestamente formais são parte integrante da definição pretendida de “informação”:

A tradução “informa” a respeito de fenômenos presentes [no original], como p. ex. o sentido ou o efeito. Pode também informar a respeito da forma [do original] (se p. ex. hexâmetros forem traduzidos por hexâmetros). (VERMEER e REIß 1991, p. 66)

No que diz respeito ao modo como as relações entre o tipo, a variedade e o espécime textual se articulam a partir da perspectiva do tradutor, Reiß não deixa dúvidas quanto à importância do texto singular:

A “batalha decisiva” do tradutor é travada no campo do texto único, onde a estratégia e a tática a serem adotadas baseiam-se na análise do tipo e da variedade textual. (REIß 2000, p. 166)

Para que essa “batalha decisiva” possa resultar em uma tradução literária propriamente dita, passa a ser necessário que o tradutor identifique-se com as intenções artísticas do autor ao compor a obra literária original – e a esta altura torna-se oportuno retomar a noção de lealdade apresentada por Nord e propor uma aplicação desse construto teórico à manutenção das características de um tipo textual.