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UM VAZIO ENTRE OS DEGRAUS: O SILÊNCIO NA POESIA DE HILDA HILST E HERBERTO HELDER

3. O silêncio enquanto métrica

casos, o roteiro parece abrir em seu ponto final uma porta para uma nova passagem, como se, mesmo após a confissão transformada em poesia, faltasse um capítulo oculto.

Mais evidente fica a íntima relação entre os dois autores com a sequência de versos em que Helder admite que morte e amor têm naturezas essencialmente análogas. “Na memória mais antiga a direcção da morte / é a mesma do amor. E o poeta, / afinal mais mortal do que os outros animais, / dá à pata nos pedais para um verão interior.”

Destaca-se ainda a maneira pela qual Helder manipula a interpretação do leitor através da pausa em alguns versos. Na terceira estrofe de Bicicleta, inscreve: “De pulmões às costas, a vida é para sempre”; mais adiante, o segundo verso da última estrofe sugere: “é para sempre a morte”. É claro que a leitura completa dos versos anteriores e seguintes permitem cessar a dúvida imposta, porém, já que há uma pausa propositiva do poeta, é permitida a análise que destaca o verso do todo. Neste caso, duas conclusões metonímicas (e quase contra intuitivas) são possíveis: (i) a vida, assim como a morte, também se inscreve na eternidade; e (ii) a morte, enquanto instante que inaugura o vazio, também se imprime em temporalidade. Afinal, “(...) há quem morra / para ser de um mês (...)”.

3. O silêncio enquanto métrica

 

Para além da decisão temática dos autores em referenciarem-se ao silêncio como representação do inalcançável através das palavras ou do espaço vazio a ser ocupado, há uma instância métrica do vazio na poesia, o que intenciona-se tratar neste subcapítulo.

Nos versos do Roteiro de Silêncio, a representação menos evidente do silêncio – mas que mais nos interessa – aparece nos usos dos parênteses e colchetes durante as estrofes. Ambos os artifícios insinuam um paradoxo entre o que se pretende dizer e o que se deve calar. Em Hilst, estes sinais gráficos constituem o silenciar do eu-lírico em sua voz principal e agregam uma nota explicativa, quase que enunciada por um alter ego.

Os versos inscritos entre parênteses ou entre colchetes durante o Roteiro de Silêncio aparecem como a base que fundamenta a própria decisão de calar-se da autora. Lá estão as confissões mais despudoradas, que, no entanto, quando são transmitidas por dentro dos sinais gráficos, parecem apresentar-se embrulhadas, cobertas, ocultas, quase sussurradas, numa sugestão de que, ainda que devesse-se mantê-las silenciosas, é em sua revelação que estão – ao mesmo tempo – a necessidade do silêncio e a impossibilidade de guardá-las para si.

Destaco dois dos versos emoldurados para os analisar sob a explicação acima:

“As coisas que nos circundam / (Na aparência desiguais) / Conservam em suas essências / Ai, aquela mesma e triste / Parecença”. Sem o verso escrito entre parênteses, o efeito ambíguo que propõe Hilst – aparência

 

desigual, mas mesma e triste parecença – não teria lugar. Todavia, ao retirar-se os parênteses daquela linha, a mensagem ao leitor não apareceria com o efeito de confissão revelada. Em suma, a autora parece pretender esclarecer sua percepção de um mundo circundante homogêneo, destacando, porém, que o semblante com que as coisas se nos apresentam é deveras diverso. É na confusão das aparências (desiguais) que está o segredo do inconsciente do eu-lírico.

Vejamos agora o seguinte: “Tu que conheces melhor / As coisas do querer bem / (Porque até agora te quis / E antes não quis mais ninguém)”. Estes versos da Quinta Elegia revelam o ineditismo de amor inquietante, mas inacessível pelas palavras. Antes daquele a quem se dirige o poema, a poeta confessa não ter conhecido o desejo. É este mesmo sentimento que leva a autora a trilhar seu roteiro rumo ao silêncio. A confissão aqui talvez seja a chave para interpretar a epígrafe às Cinco Elegias: “É tempo de parar as confidências”. Se antes do “tu” a que se refere o poema, fazia-se fácil a revelação poética, o tempo depois dele “é tempo para calar / a estória dos meus roteiros”.

Já na obra de Helder, destacam-se três representações métricas do silêncio: (i) os inícios espaçados em determinadas linhas de Canção Despovoada, (ii) as lacunas gráficas que intermediam as palavras nos versos de Um Deus Lisérgico e (iii) a heterodoxa separação silábica em palavras-chave.

Sobre o primeiro ponto de atenção, inscreve-se abaixo as duas últimas estrofes do referido poema, respeitadas as impressões do autor:

“ Ah, um lírio é o que eu procuro nas ilhas tenebrosas. Por isso canta essa mulher desviada para a inocência de um tempo – mês

a respirar tão depressa, e a andar tanto, e a correr tão loucamente,

que não há mais do que em voz

em cadeira, num lugar do sono, à direita e à esquerda de uma ausência contra

a espuma.

Olha: eu queria saber em que parte se morre, para ter uma flor e com ela atravessar vozes leves e ardentes e crimes sem roupa. Existe nas ilhas um silêncio para

a poeira tremer, e o teu rosto se voltar lentamente cheio de febre para o lado de uma canção

terrível e fria.”

A construção destes espaços visuais é uma insinuação ao leitor: algo ali está em falta, algo ali carece de completude. Por que chegamos a esta conclusão? A mera quebra em versos já sugere um compasso ritmado e as pausas que dele são parte. A opção consciente do autor pelo enfático espaçamento presume uma interrupção

 

também mais aguçada na leitura. Um respiro, um fôlego para o que vem a seguir, um silêncio: seja o que for, exige- se do leitor o preenchimento deste vazio.

Já em Um Deus Lisérgico, Helder explora estas lacunas durante os versos:

“Ele viu, a muitas noites de distância o Rosto saturado de furos ígneos absorvido

em sua própria velocidade

ressaca silenciosa um rosto precipitado para dentro

noutro lado do que é visto nas formas:

lacunas, parêntesis desapossados, duas tensões de parte a parte da figura

- ferroadas brancas Ele viu (...)”

Os espaços entre “distância” e “o Rosto”, “ígneos” e “absorvido”, bem como os demais que seguem durante a estrofe talvez recomendem uma pausa mais larga do que as que se pretende na quebra entre um verso e outro, como se as palavras que sucedem a lacuna estivessem mais próximas do próximo verso do que daquelas inscritas anteriormente. Também é de se destacar a meta-narrativa em que se enquadra o núcleo temático do escrito: o poema imprime uma agonia (assim entendido o instante que precede uma morte) bifurcada entre o deixar(-se) morrer e o fincar(-se) em vida. A opção pelas lacunas que separam a primeira da segunda parte dentro do próprio verso insinua esta cisão. “Sobre o espaço maternal / uma coruscação”: o trovão que se ouve na passagem do estado líquido (“a matéria geral húmida: / água leite desordenado”) para o sólido (“força da Lua no Capricórnio / e tenacidade”). Viver, para Helder, é o líquido, o maleável, o móbil; morrer, ao contrário, é o solidificar- se na “energia dos pontos / fixos / curvas de aço (...)”.

Da instauração das “lacunas, parêntesis desapossados” em Um Deus Lisérgico emanam “duas tensões / de parte a parte da figura”. Seria cíclico o movimento da vida, uma vez que o encontro com Deus seria sua origem e também seu destino?

A terceira representação métrica do silêncio se dá na separação silábica nas duas sequências de versos que seguem:

“Entre as rimas e o suor, aparece e des aparece uma rosa. (...)”

(Bicicleta)

“ O tempo tem a sua

incli

nação perigosa: país de uvas negras e varandas sobre a candura.”

 

O que pretende o autor com tais rupturas? Quando separa o prefixo des- do radical aparece, Helder permite identificar um movimento cíclico de nascimento (aparece), morte (des-) e renascimento (aparece). A rosa que se afirma entre rimas e suor não finda seu percurso no desaparecer, porque seu autor clama ao leitor para que, no vazio estabelecido pela quebra, enfatize o ressurgimento da flor que aparece depois de des-.

Em Canção Despovoada, a cobaia da cirurgia poética é a palavra incli-nação. A inclinação é o movimento disruptivo de um processo linear, é o desvio, como da separação silábica, neste caso, pode resultar o rompimento do fluxo contínuo do verso. Mas é também a palavra nação que dita a temática do próprio poema: nação enquanto povo de um país de uvas negras e varandas sobre a candura. E quem seria o povo deste país chamado tempo? Ora, tudo o que é mortal vive sob a lei da temporalidade. Bem por isso a canção despovoada (terrível e fria) de Helder trata deste lugar onde “nasciam folhas de ouro se alguém, sorrindo, respirasse”. Este cemitério construído pelo autor português (um jardim-pomar repleto de rosas, peras, figos, uvas negras, lírios, glicínias, camélias monstruosas) é ao mesmo tempo habitado e despovoado.

4. Conclusão

O objetivo primordial deste ensaio residia na tentativa de analisar as representações poéticas do silêncio em duas obras escritas por Hilda Hilst e Herberto Helder, ao evidenciar as pontes e traços de identificação verificados nos poemas destes autores, bem como enumerar características bastante específicas de um e de outro, tanto no que se refere à representação do silêncio enquanto tema nuclear dos livros, quanto em relação às decisões métricas que visavam à instância sintática de tal representação.

Neste sentido, conclui-se que, se Hilst se aproximou da definição de Real desenvolvida por Jacques Lacan para expressar o seu silêncio (o inatingível pelas palavras, o desejo que não se configura em linguagem verbal), Helder reaviva a noção de vazio conforme enunciado por Epicuro enquanto o hiato por onde se movimentam os átomos.

Sobre a instância métrica do silêncio, desenvolvemos uma análise sobre a utilização dos parênteses durante os poemas de Roteiro do Silêncio, artifícios que ao mesmo tempo encobrem os segredos que concedem mais sentido ao emudecimento da autora e revelam o fio condutor do caminho por ela traçado.

Para a obra de Helder, destacamos o uso dos espaços gráficos no início dos versos, as lacunas entre palavras em uma mesma linha e as separações silábica bastante pontuais, o que nos permitiu delimitar a incompletude que a poesia do autor português emana e a qual exige participação ativa do leitor para preenchê- la.

 

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i Com efeito, a relação entre a confissão e o tratamento psicanalítico fora evidenciado por Michel Foucault no Volume I (A

Vontade de Saber) da História da Sexualidade.

DESVELANDO E ANALISANDO PROCESSOS DE