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FILME DE FERNANDO VENDRELL – A RECEÇÃO NOS MÉDIA

Luís Miguel Cardoso

Instituto Politécnico de Portalegre C3i – Coordenação Interdisciplinar de Investigação e Inovação do IPPortalegre CEC – Centro de Estudos Comparatistas da FLULisboa lmcardoso@ipportalegre.pt

Teresa Mendes

Instituto Politécnico de Portalegre C3i – Coordenação Interdisciplinar de Investigação e Inovação do IPPortalegre CEC – Centro de Estudos Comparatistas da FLULisboa lmcardoso@ipportalegre.pt

Resumo

Fernando Vendrell, em 2018, ousou desafiar os deuses da adaptação e levou para a tela o romance Aparição, de Vergílio Ferreira, com guião de João Milagre e Fátima Ribeiro. Com esta (re)criação estética e transmutação intersemiótica, Vendrell encarou enormes desafios: o universo pessoal e ficcional do autor, a labiríntica escrita interior, existencialista e de fulguração/absurdo, a metamorfose da palavra em imagem e a permanente dicotomia entre o transcendente e o imanente que marca o livro e que contagia o filme. O filme deve ser objeto de reflexão com o contributo de quatro níveis de análise : a) a relação de Vergílio Ferreira com o Cinema e as adaptações anteriores (Cântico Final de Manuel Guimarães e Manhã Submersa de Lauro António); b) a idiossincrasia do romance vergiliano e a mundividência existencialista; c) Aparição no contexto da produção do autor e a sua identidade; e d) os desafios

e as escolhas de Vendrell no processo de transposição para a tela de um dos romances mais emblemáticos da literatura portuguesa.

O lançamento do filme gerou nos média portugueses diferentes leituras, que pretendemos evidenciar.

Palavras-chave: Literatura, Cinema, Aparição, Vergílio Ferreira, Média

Abstract

Fernando Vendrell, in 2018, dared to challenge the gods of adaptation and took to the screen the novel Aparição, by Vergílio Ferreira, with screenplay by João Milagre and Fátima Ribeiro. With this (a) aesthetic creation and intersemiotic transmutation, Vendrell faced enormous challenges: the personal and fictional universe of the author, the labyrinthine interior writing, existentialism and fulguration / absurdity, the metamorphosis of the word into image and the permanent dichotomy between the transcendent and the immanent that marks the book and that infects the film. The film must be object of reflection with the contribution of four levels of analysis: a) the relation of Vergílio Ferreira with the Cinema and the previous adaptations (Final Song of Manuel Guimarães and Submerged Morning of Lauro António); b) the idiosyncrasy of the Vergilian novel and the existentialist worldview; c) Appearance in the context of the author's production and identity; and d) the challenges and choices of Vendrell in the process of transposition to screen one of the most emblematic novels in Portuguese literature. The release of the film generated in the Portuguese media different readings, which we intend to highlight.

Lauro António (1995) identifica quatro ligações principais entre a literatura e o cinema quando analisa a produção literária de Vergílio Ferreira: os comentários do escritor sobre cinema integrados na sua Conta-Corrente, o acompanhamento da transposição para a tela de obras suas, a elaboração de textos para documentários (como o que escreveu para a curta-metragem relativa a Júlio Resende) e a sua experiência como ator no filme Manhã Submersa (1980). A estes elementos acrescentaremos um quinto: a produção de textos de pendor ensaístico com incidência temática sobre o cinema. Conjugando estes cinco vetores de união entre a palavra e a imagem, iniciaremos um primeiro momento de reflexão sobre as relações de Vergílio Ferreira com o cinema. Numa segunda instância, tentaremos evidenciar a sua convergência e divergência na receção que foi feita pelos média portugueses ao filme Aparição (2018) de Fernando Vendrell, a terceira adaptação ao cinema de romances de Vergílio Ferreira.

Com a sua (re)criação estética e transmutação intersemiótica, Vendrell encarou enormes desafios: o universo pessoal e ficcional do autor, a labiríntica escrita interior, existencialista e de fulguração/absurdo, a metamorfose da palavra em imagem e a permanente dicotomia entre o transcendente e o imanente que marca o livro e que contagia o filme. Em síntese, há três questões chave que devemos avaliar: a visão espectral (a descoberta do “EU”), a fulguração (o milagre de estar vivo) e a condição humana (a inverosimilhança da vida face ao absurdo da morte). Como viu Vendrell estas questões? Como as (re)criou, em novo objeto estético, com independência semiótica e artística, de modo a ser analisado enquanto tal, sem o condicionalismo da fidelidade ao livro (Cardoso, 2016)? Como receberam os média portugueses este filme? Centraram-se nestas questões basilares? Comecemos por recordar o romance.

Num momento chave do romance Aparição, o narrador, em analepse, recorda o dia em que acordou e olhou para o espelho: «Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara» (Ferreira, 1998, p.70). É precisamente através do olhar que se dá o alarme para a existência, para a realidade de ser e de estar vivo. É neste diálogo ao espelho que o narrador se descobre, entre a palavra e a imagem. De forma similar, é também ao espelho que devemos percecionar a produção de Vergílio Ferreira, não só porque as suas palavras são o seu espelho enquanto homem, mas também porque é a sua imagem de homem que o inspira para criar as suas palavras. Mais ainda, este escritor revela alguns diálogos entre a palavra e a imagem, tanto como romancista como ensaísta. Esta visão espectral, de consciência do “EU”, também é levada para a tela por Vendrell, logo na abertura do filme, com Alberto Soares em voz off, a abrir a narrativa, e em momentos vários, como durante uma aula, em que alerta os alunos para a necessidade de auto-consciência, conjugando-se com a fulguração, o alarme de estar de estar vivo, que tem em Sofia a encarnação e em Carolino a distorção

destes princípios de matriz Existencialista, movimento que originou conexões criativas entre a literatura e o cinema, tal como aconteceu com o autor português.

O diálogo vergiliano entre a literatura e o cinema tem uma primeira face no conjunto de filmes e documentários que inspirou: Cântico Final (longa-metragem em 35 mm., a cores, realizada por Manuel Guimarães, para cinema, em 1975), Prefácio a Vergílio Ferreira (curta-metragem em 35 mm., a cores, realizada por Lauro António, para Cinema, em 1975), Vergílio Ferreira numa «Manhã Submersa» (média- metragem, em 16 mm., a preto e branco, introdução da série televisiva baseada no romance do autor, realizada por Lauro António, em 1979), Manhã Submersa (quatro episódios de 50 minutos cada, em 16 mm., a cores, realizados por Lauro António, para televisão, em 1979), ManhãSubmersa (longa-metragem, em 35 mm., realizada por Lauro António, para cinema, em 1980), e Mãe Genoveva (média-metragem, em 16 mm., a cores, realizada por Lauro António, para televisão, no âmbito da série «Histórias de Mulheres», em 1983). Para além das adaptações e documentários referidos, devemos ainda recordar que, em 1973, Quirino Simões pretendeu adaptar o romance Alegria Breve (Listopad, 1973); em 1978, Varela Silva quis adaptar o romance Aparição; e em 1988, o realizador alemão Wolf Gaudlitz, competindo com Lauro António, conseguiu adquirir o direito de adaptação do romance Até ao Fim, que não se materializou em filme. O Existencialismo conduziria a uma identificação de influências cinematográficas no romance, que incluíam o desejo de aproximação da palavra à imagem, numa clara tentativa de criar um romance com capacidade para visualizar parcelas da diegese. Esta influência foi destacada por autores como M. Lacalamita e Jean Bloch-Michel (Peña-Ardid, 1999), que defenderam, respetivamente, a existência de uma «visão cinematográfica» na Lost Generation, nos neorrealistas e pós-realistas, que se traduz na descrição externa das personagens, com o objetivo de evidenciar o seu retrato psicológico, e a utilização, em certos textos do Nouveau Roman, de descrições exteriores para estabelecer uma rutura com o retrato psicológico e avaliações subjetivas do autor.

É precisamente a visão de Lacalamita que encontramos em Malraux e em Vergílio Ferreira: o perfil exterior das personagens, descrito de forma «cinematográfica», concorre para a construção do seu perfil interior. Recorde-se a «visão» de Sofia em Aparição e a relação entre o retrato físico e a imediata construção do perfil psicológico:

O vestido de veludo negro, colado ao corpo, esticado até ao pescoço e até ao limite dos braços finos, iluminava-lhe a face jovem, a doçura quente da nuca sob os cabelos puxados para o alto, a fragilidade das mãos, tão brancas e subtis. Mas o que sobretudo se iluminava era o seu maravilhoso olhar, esse olhar de uma violência ingénua, secreto e húmido e fulgurante como um primeiro pecado. (Ferreira, 1998, 71)

Esta opção de Vergílio Ferreira pode constituir um exemplo – se bem que não possa ser visto como típico de uma sistematicidade absoluta e deliberada –, do que Jean Bloch-Michel identifica como uma