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O dinamismo industrial de S João da Madeira: a chapelaria

PARA ALÉM DO TEXTO: A MEMÓRIA DOS UNHAS NEGRAS Ana Cláudia Salgueiro da Silva

2. A MEMÓRIA DOS UNHAS NEGRAS

2.5. O dinamismo industrial de S João da Madeira: a chapelaria

Uma das primeiras atividades industriais a fixar-se em S. João da Madeira foi a produção de chapéus, ficando a localidade conhecida pelo fabrico artesanal de chapéus de pano ou lã grossa, dos chapéus de aba larga usados no Alentejo e dos pequenos chapéus, de aba revirada, da Beira Litoral.

Durante o século XIX, com a influência adveniente da Revolução Industrial, assim como da excelência da qualidade de trabalho e tenacidade dos operários sanjoanenses, houve um grande desenvolvimento industrial e económico, o que favoreceu o aumento de fábricas e de pequenas oficinas de produção de chapéus, nesta cidade: em 1802, foi fundada a primeira fábrica de chapéus; em 1867, havia seis unidades fabris; em 1891, foi instalada a primeira fábrica com máquinas a vapor para produção de chapéus em pelo de coelho; em 1909, existiam cerca de doze fábricas e, em 1914, foi criada a Empresa Industrial de Chapelaria.

No romance Unhas Negras, João da Silva Correia também descreve o dinamismo associado a este desenvolvimento:

[…] As grandes chaminés a romper da montanha, na lonjura, pareciam centuriões de fábula. Vomitavam os seus rolos de fumo de algodão-em-rama, naquela serenidade e silêncio em que a distância sempre envolve o que apenas a vista alcança. O fumo alongava-se em linhas transversais e paralelas, ao sabor da viração, cada qual à sua altura […] (ibid.: 260).

A partir deste momento, a indústria da chapelaria conhece um grande crescimento, sendo que, atualmente, se mantêm, em laboração, duas unidades fabris ligadas ao setor. A Cortadoria Nacional de Pelo, criada em 1943, é a única fábrica do país que trabalha os pelos, concentrando todas as cortadorias particulares existentes. A Cortadoria dedica-se à preparação do pelo de coelho, lebre ou castor para a indústria da chapelaria, constituindo, hoje, uma das maiores empresas do setor a nível mundial, tendo obtido a Certificação de Nível Ouro para o pelo de coelho que processa, com vista ao fabrico de chapéus de feltro.

A outra empresa é a Fepsa, líder mundial no fabrico de feltros para chapéus, sendo criada em 1969, através da fusão de fabricantes e apropriagistas que se associaram, a fim de criar uma empresa especializada no fabrico do feltro que combatesse a crise instalada pelo desuso do chapéu.

De mencionar que o termo “apropriagistas” se refere aos revendedores que compravam, às fábricas, os chapéus em feltro e os acabavam e vendiam por conta própria, os quais constituíam, segundo o autor de Unhas Negras, “[…] a fidalguia da classe […]” (ibid.: 31). Um dos operários do acabamento de chapéus é Zé Tormenta, uma das personagens do romance, que apresenta “[…] as mãos de concha muito amarela, requeimada pelo elevado calor do quitólis […]” (ibid.: 186), contrariamente às mãos com unhas negras dos fulistas, “[…] figuras de fadiga mais apagadas, pálidas do vapor tóxico das fulas […]” (ibid.: 32).

Na Fepsa, é possível conhecer todo o processo de feltragem nas suas várias fases até ao controlo de qualidade. São várias as etapas, que passam pela transformação do pelo em feltro e da sua feltragem por compressão e vibração sob ação de água e calor, numa articulação equilibrada entre ser humano e máquina.

Citando João da Silva Correia,

[…] as peças, que tanta labuta e tantas atenções mereciam àqueles homens, eram os feltros. Saíam em primeira mão da complicada engrenagem do arco […], [que] é já hoje geringonça do passado, abolida em definitivo nas mais modernas instalações. Foi deposto por máquina de nome estrangeirado que produz o feltro em uma só peça, e com mais rapidez e perfeição […] (ibid.: 118).

Assim, começa uma importante história que levará, pelo mundo fora, os chapéus fabricados pelos chapeleiros sanjoanenses, desde os chapéus usados por motivos culturais (judeus, cowboys, australianos e tiroleses), passando pelos chapéus usados por motivos laborais (fardas da polícia montada canadiana, da polícia feminina inglesa, da força aérea neozelandesa, dos funcionários do metropolitano de Londres e dos carteiros suíços), até aos mais variados chapéus de uso quotidiano. Em Portugal, os mais populares são os chapéus etnográficos, não só do folclore, mas também das confrarias.

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CONCLUSÃO

Reinventado ao longo do tempo, patenteando uma multiplicidade de modelos, como as cloches e as cartolas, as capelines ou os cocos, o chapéu transformou-se num símbolo especial, emergindo como essência de singularidade e de autenticidade de cada indivíduo.

Nas palavras do escritor brasileiro Machado de Assis (1839-1908) (1884, p. 91), “[…] o chapéo é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab eterno; ninguém o póde trocar sem mutilação […]”, concedendo ao ser humano a capacidade de se poder distinguir.

Quem não se lembra da emblemática personagem de banda desenhada Lucky Luke, o cowboy de chapéu branco; do ator britânico Charlie Chaplin e da sua personagem Charlot, cuja imagem do chapéu de coco, juntamente, com os seus grandes sapatos e bengala, o tornou um ícone cultural; do chapéu floppy da atriz francesa Brigitte Bardot, que o popularizou, sendo reconhecido internacionalmente por ser utilizado entre artistas famosas de Hollywood; ou ainda, do pillbox, um chapéu feminino inspirado no estilo militar, que ficou celebrizado pela primeira-dama americana Jacqueline Kennedy Onassis?

Relembrando a relevância da chapelaria, como principal marca identitária de S. João da Madeira, ligada às máquinas e às memórias a elas associadas, Unhas Negras de João da Silva Correia afigura-se, por um lado, como elemento integrante do espólio cultural sanjoanense e, por outro, como perpetuador da memória daquelas gentes, ao relatar a realidade daqueles que entregaram a sua vida ao trabalho, “[…] fazendo reaparecer aquilo que desapareceu […]” (Connerton, 1999, p. 79).

Na verdade, o autor pauta-se pelas suas reminiscências para construir as personagens e narrar os acontecimentos, relativos a um período que ele próprio viveu e do qual ouviu contar, reportando-se à sua memória individual, assim como à memória coletiva sanjoanense.

Trata-se, por conseguinte, de uma obra que preserva a história local, que guarda as histórias que a memória salvou, histórias de tristeza e sofrimento que a memória não permitiu esquecer. São relatos de vidas duras e pobres, muitas vezes marcadas pela maldade, mas sublinhando também a determinação e a persistência dos chapeleiros e das suas famílias e passando a mensagem de dádiva, de fraternidade, de “um por todos e todos por um”.

É a escrita do passado ao serviço do presente, respeitador da memória dos seus antecessores, sendo

[…] justamente este entrelaçamento entre o passado e o presente que me leva a afirmar que, na reconstrução do passado, embora nós possamos nos esquecer de diversos detalhes sobre o que aconteceu no passado, guardamos dele aquilo que foi importante para nós e que ainda permanece importante para nós […] (Santos, 2003, p. 293).

Eternizando todos aqueles que estiveram relacionados com a indústria da chapelaria e defendendo a identidade, o património e as tradições de S. João da Madeira, o romance de João da Silva Correia enfatiza o

encontro do passado para preparar o futuro, prolongando no tempo uma memória que se reconstitui em palavras – a memória dos “unhas negras”:

[…] Unhas Negras, é certo; mas unhas que têm a sua história de sacrifícios; unhas que se queimaram, ao mesmo tempo que o coração, a trabalhar e a sofrer; unhas negras que constituem um título altíssimo de nobreza, cujos pergaminhos, principiando nas fulas, se explanam pelos tintos, pelas gomas, pelas apropriagens, e vêm a ter o seu epílogo nos cuidados femininos das acabadeiras […] (Correia, 1984, p. 53).